Marcio Couto é escritor, autor de Crônicas do Abismo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho uma rotina matinal porque acordo tarde. Sou muito notívago. Quase sempre acordo já tendo que me aprontar pra abrir a galeria de arte onde trabalho, em Copacabana.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo no escritório da galeria onde trabalho, gosto por ser um espaço confortável e reservado. Em geral, o faço depois do expediente. Não tenho um ritual de preparação, a não ser que conte precisar de café sempre, caso contrário, meu foco evapora na primeira meia hora de texto.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Me obrigo a escrever diariamente, nem que seja um pouquinho de nada, um parágrafo que seja. Mas se for um daqueles dias, aqueles em que a gente acha tudo que já escreveu uma merda, prefiro não trabalhar. Hoje, não gosto de me exigir mais que o necessário, pois já tive problemas com isso. Tenho uma natureza meio compulsiva, e no passado eu não conseguia arredar a bunda da cadeira antes de me exaurir nalgum trecho que depois, fatalmente, acabaria tendo de mexer outra vez… centenas de vezes.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não sou muito organizado. Simplesmente começo a escrever e deixo que o texto me guie. A única vez que usei notas (inclusive, muitas delas) foi mais recentemente, num projeto que venho desenvolvendo: um romance de estrutura bastante complexa, toneladas de personagens, monólogos mentais imensos, e uma relação objetiva com outro romance meu, ainda sem editora. Por ser meu projeto mais ambicioso, fiz (e faço) centenas de notas. De modo que até esse romance vem se desenrolando caoticamente: não é raro eu escrever trechos quilométricos fora de ordem, levando somente em consideração minhas notas referenciais. Até quando tento ser organizado acabo cagando tudo. Sendo que no fim costuma dar tudo certo. Hoje considero ser necessário esse momento de criação anárquica, já aceitei que faz parte do processo criativo tanto quanto a procrastinação. Eu repito pra mim: “Cacete, Marcio! Que zona!”, mas na sequência digo, “Ah dane-se! Depois me preocupo em montar esse Frankenstein”.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Todo escritor nutre uma relação de amor e ódio com a procrastinação. Penso que ela se faz necessária como parte do processo de maturação, mas o escritor deve se obrigar à ruptura quando se sentir imerso num ciclo de postergação. Sei que é clichê, mas no fim se trata mesmo daquela máxima do “estar parado é diferente de fazer nada”. No tocante a travas, nenhuma delas se deu por bloqueio criativo, mas possibilidades de forma e estilo. Meu problema é com a auto rigidez exacerbada, o que me faz escrever o mesmo trecho de incontáveis formas diferentes (sendo muito comum optar pela ideia original). Isso dito, não lembro da última vez que tive problemas criativos, posso demorar uma hora, mas sempre sai alguma coisa, nem que seja aquela frase que faltava para encorpar o parágrafo. Precisamos estar abertos a isso. O tempo no processo criativo é ingrato: algumas vezes demoramos séculos pra suar uma palavra, e noutras um monólogo inteiro escorre pelos dedos com facilidade. É assim mesmo, se estressar só piora tudo. Já em relação a projetos longos, o que faço é o seguinte: trabalho em várias coisas ao mesmo tempo, aquilo que for de maior urgência ou necessidade vai acabar ficando pronto antes, ao passo que as superproduções hollywoodianas precisarão de mais tempo, e é isso, não há outra maneira. Projetos têm seu período de gestação proporcionais à complexidade exigida. Quando o arrasa-quarteirões tiver de sair, ele mesmo vai me avisar. Se eu for me matar de ansiedade, não faço nada, absolutamente nada. Já ando angustiado demais com as vertigens da vida pra me estripar com uma das únicas coisas que ainda tenho absoluta certeza que preenchem positivamente minha existência.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A conta exata não existe. Meu último romance, aquele ainda sem editora, seguramente foi revisado mais de oitenta vezes. Já o Crônicas do Abismo, por volta de cinquenta (e ainda assim considero a versão publicada bastante longe da definitiva). Por outro lado, escrevi recentemente um livro de contos pra enviar a premiações e o revisei pouquíssimas vezes. O mesmo quanto aos Relatos do Subterrâneo, que publico no Facebook. E por aí vai. Cada livro tem sua cota de revisões particular. Em relação à segunda pergunta: sim, sempre tento mostrar meus trabalhos a quem admiro. Noutro dia enviei um conto pro Villa-Forte e a resposta foi muito positiva. O Daniel Ribas é outro a quem sempre consulto. Gostava muito também das opiniões do Victor Heringer, mas com essas, infelizmente, não poderei mais contar. Adoro que me leiam e deem seu feedback, preciso desse termômetro justamente pra firmar pé nesse chão movediço que é o mercado literário.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Desde meu primeiro PC que só escrevo no computador. Antes disso, somente escrevi uma novela de fantasia erótica toda à mão, mas faz muito tempo. Minha relação com a tecnologia é ótima, também trágica. A internet é uma ferramenta espetacular, mas também não há nada que me faça desviar tanto do foco que essa desgraça. Inclusive, sou terrivelmente viciado em YouTube. Sério. Posso varar a madrugada vendo as coisas mais estúpidas, e outras nem tanto, nos canais do site. De modo que a tecnologia me auxilia muito mais que me atrapalha. E se me atrapalha, penso que a culpa é minha mesmo. Sou eu quem deixa ser levado pelas bobagens da rede.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias vêm da minha experiência diária. Escrevi meu segundo romance muito inspirado por um relacionamento amoroso que vivia na época, também pelas coisas que andava lendo e as angústias que me remoíam no início da fase adulta, meio que uma crise mesmo. Os Relatos do Subterrâneo são sobre minhas andanças no metrô (embora muita gente até hoje pense que os casos são fantasiosos, algo que me aborrece um pouco). O novo romance é sobre os contrastes sociais que atravessam minha rotina entre a zona sul e a zona norte do Rio. O livro de contos que acabei de terminar também pega carona nessa ideia, mas a abordagem é mais cínica e se foca nos estereótipos da geração que ascendeu após as manifestações de 2013. Já quando escrevi o Crônicas do Abismo estava entrando no mercado de trabalho, a ideia de um leviatã devorador da individualidade e da consciência humana me assombrou de tal forma que povoei um livro inteiro com metáforas sobre o sistema. Assim, posso dizer que meu único hábito é permanecer atento ao que os dias me reservam, visto que as perturbações de nosso tempo fornecem tudo o que preciso para escrever.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos?
Escrevo mais atento e cometo menos erros. Por outro lado, o estresse só aumentou. As obrigações da vida adulta arrasam com meu processo criativo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho um projeto de novela que a priori se passaria na revolução francesa e que envolve um grupo de órfãos cuidando de uma lebre, mas talvez mude a época da ambientação para durante alguma das guerras mundiais ou algum outro momento conturbado da história europeia. Quero muito trabalhar nisso futuramente. Também tenho um outro projeto baseado na cultura hiper-capitalista norte-americana do início dos anos 90, algo que englobaria a febre dos shopping malls, os slackers e, naturalmente, o grunge. Esse livro teria uma atmosfera delirante, lisérgica mesmo, e se focaria em situações absolutamente absurdas, que não fazem o menor sentido. Será meu próximo projeto. Adorei a segunda pergunta; pensando assim, rapidamente, diria que gostaria de ler meu segundo romance, devidamente publicado e existindo em corpo físico (cheguei a escrever uma outra resposta quilométrica, na qual eu dizia que gostaria de ler um livro contando sobre uma vindoura “nova fase de ouro do Brasil”, cuja efervescência cultural seria exportada e consumida pelo mundo inteiro, mas achei muito cafoninha, então apaguei tudo e decidi deixar como está).