Márcio ABC é jornalista e escritor, autor de Estado Bruto.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu ofício de escritor é bastante complicado. Como eu vivo da atividade jornalística, a escrita precisa fazer um enorme esforço para encontrar seu espaço. Acho que para escrever é necessário rolar uma conjunção de energias. Além da inspiração, você precisa de concentração, de tempo suficiente para se cercar dos objetos de estudo ou dos mecanismos inerentes à sua ficção, você precisa estar disposto para a entrega que é escrever, e por aí vai. Quando você consegue viver da literatura, esse universo me parece ser mais acessível. Já quando você desenvolve a escrita paralelamente a outra atividade de seu dia a dia, que é o meu caso, as coisas se complicam um pouco. Não digo que seja mais difícil, pois escrever é, pra mim, um ato fisiológico, é algo como mijar, por exemplo. Eu preciso mijar. Eu preciso escrever. Mas, de fato, a circunstância de ter que escrever ao mesmo tempo em que se é consumido por outra atividade torna a tarefa mais complexa. Minha rotina, portanto, é bastante caótica. Em certas ocasiões, eu escrevo horas seguidas sem parar. Em outras, fico semanas sem abrir esse portal, digamos assim. Escrevi um dos meus romances (Pater, em 2012) em quarenta dias. Foi uma mijada furiosa. Outro romance (Desrumo, 2010) eu levei vários anos. Foi praticamente de gota em gota. Em resumo, minha rotina de produção literária é não ter rotina. E isso não é uma escolha. É uma necessidade. Porque preciso sobreviver. E essa sobrevivência é bancada pela profissão de jornalista.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Em razão dessa circunstância, na qual meu ofício literário briga braçada a braçada com minha atividade no jornalismo, acabei me acostumando a escrever à noite e de madrugada. Às vezes, consigo me isolar um pouco também nos fins de semana, quando é possível ocupar vários horários com a escrita. Houve períodos em que eu tive mais tempo para escrever literatura, e mesmo assim eu desenvolvia melhor a narrativa no período noturno. Depois, durante o dia, eu me sinto melhor fazendo revisão, reparos, alterações, mas já com a base do texto consolidada. Quanto ao ritual de preparação, acho que não tenho nada específico, a não ser pelas questões sobre as quais me referi antes (estar num momento inspirado, ser capaz de se concentrar, ter tempo e disposição). Deve acontecer com muita gente que escreve, claro, mas o que eu sinto é que eu não paro de escrever nunca. Há dias em que eu acordo com algo encaminhado na minha cabeça, às vezes até sonho com aspectos que se encaixam perfeitamente ao projeto no qual estou trabalhando. Também me caem ideias a partir de acontecimentos do meu dia a dia. Ou então estou escrevendo um texto, e uma simples ação ao meu lado pode se enquadrar ao ambiente, uma frase dita na padaria, um gesto de uma pessoa atravessando a faixa de pedestres, o garoto que está pedindo na esquina, a mulher sentada na calçada à espera de ajuda com os filhos pequenos ao seu redor, a moça tímida que se senta sozinha no restaurante para comer de cabeça baixa, cenas do cotidiano capazes de despertar a escrita. E desse modo vou escrevendo em minha mente, escrevendo, escrevendo. Assim como nem tudo que escrevo é publicado, nem tudo que escrevo mentalmente vai para o papel ou para um arquivo digital.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu já li vários depoimentos de escritores, muitos dos quais consagrados, cujos conselhos apontam na direção de uma sequência diária: mesmo que seja apenas uma linha, escreva diariamente. Como eu disse, para mim não há uma alternativa nesse sentido. Eu não tenho como escolher período ou definir uma escrita diária. Eu tenho desejos. Quero começar logo a escrever o romance cuja espinha dorsal já está consolidada na minha cabeça. Quero continuar os dois romances que comecei e precisei interromper em razão das exigências naturais do trabalho do qual eu sobrevivo, que é o jornalismo. Quero concluir aquele texto que só precisa de um arremate. São metas que perambulam entre minha consciência de que preciso continuar a trabalhar para me sustentar e os sonhos quase utópicos de que um dia poderei largar tudo para me dedicar exclusivamente à literatura. O caso é que a consciência sempre se sobrepõe ao sonho. Já não tenho mais vinte e tantos anos, quando se pode errar várias vezes o caminho e voltar várias vezes para tomar outro. Depois dos cinquenta, você encontra poucos atalhos e também é mais difícil levantar depois dos tombos. Assim, eu procuro controlar minha mágoa de não poder mergulhar fundo naquilo que mais me dá prazer.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Embora eu seja jornalista, minha literatura é basicamente ficcional. Claro que há inserções relacionadas à realidade. Uma das minhas linhas de trabalho, aliás, é situar meus romances dentro de um universo histórico palpável. Meu primeiro romance (Parabala) interage com um ambiente do início do século passado. Depois, em Desrumo, eu me adianto à metade do século vinte. Pater se materializa nos anos que envolvem a chamada “Era Collor”. Em seguida, eu trabalho um ano emblemático da vida nacional, 1976, em Na pele dos meninos. Em Estado Bruto, o mais recente, as camadas de tempo se sobrepõem umas às outras em alguns momentos tensos da vida nacional, como o fim dos anos sessenta, a retomada do período democrático e os dias atuais. Portanto, também pesquiso e procuro me abastecer de informações suficientes para levar à ficção um ambiente mais real possível. Só que na maioria dos casos, essa pesquisa é complementar ao que quero narrar. A pesquisa, muitas vezes, surge no decorrer do processo criativo, e não antes. Eu não junto todas as notas e informações que possam ser necessárias à narrativa. Eu simplesmente começo a narrativa. Senão, ao menos no meu caso, eu corro o risco de perder o ritmo que quero imprimir ao texto. Sei que, na literatura, é preciso frear o ímpeto, mas também é preciso cuidar para não matá-lo. Então, pesquisa e escrita evoluem ao mesmo tempo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho que o escritor que não sente medo e ansiedade diante de seu projeto corre o risco de ser artificial. Não posso imaginar uma escrita sem medo e ansiedade. Quando escrevo, principalmente nos casos de romances, cujos períodos de dedicação são mais longos, não sei para onde estou indo, não sei o que os personagens vão fazer de mim, por assim dizer. Por mais que, na concepção da linha básica do romance, eu possa ter determinado um provável destino ou mesmo características de seu comportamento ao longo da narrativa, o personagem pode não concordar. Esse é apenas um dos medos. Mas acho que é o principal. Porque é um medo que causa grande ansiedade, no entanto eu sei que é um medo necessário, e até fundamental para o andamento do projeto. Os demais medos, que estão mais vinculados ao resultado propriamente dito, ou seja, ao livro que vai para as mãos do leitor, esses medos podem ser, digamos, apaziguados quando constato as distorções que podem agir sobre a trajetória da obra. Hoje é bastante natural observar que as grandes editoras estão mais preocupadas com os reflexos midiáticos que uma determinada publicação pode provocar. Isso, muitas vezes, em detrimento da própria obra. É a ditadura cruel do chamado “mercado”. É um ciclo irresistível. O que está por trás da obra importa mais do que a obra. Esse aspecto é alimentado durante o caminho do livro. Conheço pessoas capazes de ir a um lançamento porque é na Livraria Cultura e porque lá encontrará gente famosa. Mas nem sabem direito qual o livro, que também não pretendem ler, mas ter em sua estante. Quando vejo essa pequena farsa que envolve interesses prioritariamente econômicos e o bom e velho público afeito às futilidades do nosso cotidiano, caio na real quanto à triste realidade de um país cada vez mais analfabeto em todos os sentidos, e isso me leva à expectativa de que meus livros cheguem a quem realmente se interesse por eles, e não por mim ou por qualquer coisa que seja alheia a eles, os livros.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
O processo de revisão é longo e cansativo. Porque eu escrevo e, pouco tempo depois, releio para, entre outras coisas, revisar. Digo “entre outras coisas” porque a releitura inclui também outras avaliações e impressões. Antes mesmo de concluir o texto, eu faço várias revisões e releituras. Depois, quando concluído, envio a escritores com os quais me relaciono por meio da literatura e especialmente a profissionais que fazem uma leitura crítica da obra. Só depois desse intercâmbio é que me sinto seguro para submeter o texto para avaliação de editoras ou engavetá-lo até uma próxima oportunidade (ou para sempre). Não sei quantas vezes eu reviso e releio meus romances, mas sei dizer que depois de publicados eu já mal posso olhar para eles, de tão cansado que fiquei deles, de seus malditos personagens sanguessugas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sou um cara que começou a ler tarde, e mais tarde ainda comecei a escrever. Conheço gente que desde os primeiros anos de vida lê muito. E vejo escritores que começam antes dos vinte. Minha origem é rural. Não havia tantos livros disponíveis para que eu me apaixonasse por eles. No ensino fundamental e no que chamávamos de “colegial”, fui apenas um leitor médio. Comecei a ler de verdade já com vinte e sete, vinte e oito anos, quando conheci minha ex-mulher, ela sim uma dessas “ratas de biblioteca” desde a infância. Aprendi a ler com ela. Depois, num lance casual, acabei me propondo a escrever um romance. Isso foi em 1998. Tínhamos acabado de comprar um computador. E foi nesse computador que comecei a escrever pra valer. Antes, numa pequena Olivetti, eu havia rascunhado alguns textos, mas que não vingaram. Então, criei o hábito de escrever diretamente no computador. Isso não quer dizer que eu não utilize outras ferramentas quando é preciso. Às vezes, acordo no meio da noite com uma ideia ou mesmo com uma frase, um fragmento de texto, e imediatamente puxo o caderninho e ali faço as anotações que depois podem ou não ganhar uma chance.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Tenho a impressão que as ideias vêm do barril de pólvora que vou construindo dentro de mim ao longo dos anos, seja por meio das experiências vividas e observadas, seja a partir da leitura. Acho que para escrever é preciso ler. Não ler para escrever. Ler para viver. Quanto aos hábitos para me manter criativo, acho que a ação do eu escritor é muito dependente das concessões do eu jornalista. Este eu jornalista leva uma grande vantagem por se tratar do sujeito que, digamos, sustenta a casa. O eu escritor quase sempre precisa se contentar com as migalhas. Principalmente migalhas de tempo. A impressão que eu tenho é que o eu escritor vive planejando secretamente pequenas vinganças contra o eu jornalista. Porque, de fato, como eu também já disse, em certos momentos até mesmo sonhando eu estou escrevendo literatura. Acho que essa briga contra o eu jornalista motiva o eu escritor a não arredar pé de seu propósito de chegar lá, de algum modo reunir forças para se manter materializado, para não enlouquecer dentro de um casulo administrado pelo eu jornalista. Tenho uma vaga ideia que é dessa inquietude que vem a energia criativa, pois sob a pele do eu jornalista a alma do eu escritor trava uma luta intensa para ter seu espaço próprio.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que me tornei menos afoito e espalhafatoso. Acho que com o tempo a gente percebe que escrever literatura nem sempre é botar todas as palavras na frase, nem todas as frases no parágrafo ou todos os parágrafos no livro. E também acho que me conscientizei de que literatura é uma lenta construção cujos pilares precisam ser estabelecidos sobre um terreno árido onde muitas vezes a areia também se move. Tento ser um pedreiro da escrita. Cada livro (ou cada texto de alguma forma publicado) é um tijolo assentado. Estou construindo uma casa. Mas, embora eu já esteja morando ali, sei que ela talvez nunca esteja pronta. E é isso que me move na literatura: a felicidade de saber que nunca, mas nunca, nada estará pronto.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho vários projetos iniciados. Sempre tenho a sensação de que todos eles são os projetos que eu gostaria de fazer, até surgir o próximo, então o próximo também ganhará esse status, numa sequência ininterrupta até que chegue o último, imprevisível. Acho que uma das grandes motivações de quem escreve literatura é nunca saber exatamente onde vai chegar, por quais caminhos terá que passar, que personagens encontrará, quais serão os destinos a serem encarados, se chegará inteiro ou não, se a mãe literatura vai matar com crueldade ou com suavidade.
Sobre algum livro que eu gostaria de ler e que ainda não existe, confesso nunca ter pensado em algo assim. E a despeito do conselho de Nelson Rodrigues sobre ficar lendo e lendo o mesmo livro, minha grande angústia na condição de leitor é exatamente a certeza de não poder ler todos os livros que já foram escritos e eu gostaria de ler. Mesmo assim, espero que jamais criem qualquer mecanismo sedutor capaz de enfiar na minha mente, de modo rápido e indolor, o conteúdo de todos os livros que eu gostaria de ler.