Marcílio Godoi é doutorando em Literatura Brasileira pela FFLCH/USP.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sete e meia. A hora da girafa, como aprendemos a dizer em casa, pois que, num antigo livro das crianças, havia um relógio desenhado na barriga de uma girafa que marcava exatamente sete e meia. Essa era a hora de acordar as crianças para a escola. Todo os dias. Agora, talvez por isso, independentemente da hora em que fui dormir, acordo às sete e meia. Não preciso de despertador. Nunca. Quando tenho que acordar antes disso, acordo sempre meia hora ainda antes e fico esperando o despertador me acordar, os olhos colados nele como se fosse eu o programado para despertá-lo.
Acordo invariavelmente com pedaços de falas, trechos de música, imagens do que sonhei ou do filme que vi na noite anterior ou mesmo a prosódia do texto que li antes de dormir rondando minha cabeça. É algo ruim, pois sempre tenho a sensação de não ter descansado o suficiente. É algo bom, pois basta começar a escrever que parece que tudo já foi de certo modo remoído, ruminado, pesado, pensado, martelado como um bife de segunda. Flui, embora não seja verdade, pois nunca reescrevo o suficiente, e sempre quero mexer no que já escrevi. É infernal. Reli este parágrafo agora e mexi nele outra vez. Por isso, quando me perguntam o que faço, sempre respondo: “mexo com literatura”. Como um chinês fazendo contas num ábaco, escrever pra mim é esse jogo de armar, desarmar, armar. Bem, para seguir em frente, terei que abandoná-lo como está aqui mesmo. Isso (precisava confessar isso um dia) me angustia um pouco. Tenho saudades dos parágrafos que deixo para trás na entrega. E, sem querer dramatizar, releio-os como quem acena um lenço.
Mas voltando ao começo do dia: muitas vezes é apenas uma palavra que me sobra, grudada em minha cabeça. Lembra quando éramos crianças e dormíamos com o chiclete na boca e ele acordava colado em nosso cabelo? É mais ou menos assim que acordo, com uma ideia, geralmente em forma de frase ou palavra apenas, mas que não me sossega enquanto não a tiro da cabeça com a tesoura urgente da criação, o que me arranca, invariavelmente, um naco de pele ou de cabelo.
Parado na pia, evito me olhar ao espelho pela manhã. Sou um ser atropelado pela noite. Não me dou bem com ela, penso que nela visito, passo em revista, muitos lugares em que já estive e estarei, de modo que dormir me cansa muito e esse sujeito que me aparece no espelho logo cedo não sou exatamente eu. Trata-se de um viajante exausto de sono, as olheiras fatigadas de horizontes comprovando, como dois tíquetes de trem, roxos, carimbados, a dura viagem.
Escovo longamente os dentes. Enquanto isso, com a mão esquerda, verifico no celular as mensagens de trabalho, a agenda do escritório. Os dias em que tenho entrega (tenho uma pequena editora de conteúdo editorial) ou reunião importante com clientes corporativos são aqueles em que mais produzo textos pessoais, de crônica e poesia. Deve ser algum mecanismo de birra introjetado que me faz subversivamente tirar a cabeça do trabalho formal. Ultimamente, tenho tido que brigar comigo para poder trabalhar nos projetos que pagam os boletos. Abusada, a poesia fica rebolando nua na frente dos aparatos editoriais. Um vexame.
Antes do meu café, dou comida a Zoé, minha cachorrinha. Era igual com o Chico, um cão companheiro, que me acompanhou pela casa por nove anos e meio. Menti. Como gosto muito de não ser metódico, às vezes, faço as coisas fora de ordem ou invertidas só para não me render a um processo pré-ordenado. Assim, não uso nunca a mesmo xícara, não repito a mesma cadeira, o mesmo pó de café, o mesmo pão, o mesmo lugar na mesa. Vario se queijo ou manteiga, dou a ração depois. Pago um preço caro por isso em algumas horas; noutras horas lupanares, ou seja, nessa zona, encontro, pela via do atalho ou do olhar inaugural, como um desenhista que opta por desenhar com a mão esquerda apenas para sentir novidade em seu traço, um plot para um texto ou poema. Funciono assim. O mais sem rotina que eu puder. Como se pode ver, sou meticulosamente desorganizado.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sou uma faca para escrever exatamente às onze horas da manhã. Isso dura aí até as treze ou catorze horas, quando, faminto, passo a ficar mais irritado do que propriamente criativo. Em outras palavras, escrevo melhor com uma certa fome. Como me conheço bem (essa é das poucas vantagens de envelhecer), quando chega uma da tarde e eu ainda não rendi o suficiente, tomo um café com um biscoito amanteigado que me leve até três, quatro da tarde. Na volta do almoço, bem, não conte comigo para nada muito brilhante. No meu escritório, há um sofá que se torna absolutamente irresistível nessa hora e com o qual já tive sérios embates e discussões. Inclusive já saímos no braço uma vez.
Por falar em rotina, passeio a Zoé todos os dias pela manhã. Com a guia na mão esquerda, levo o celular na direita, onde aprendi a zapear as redes sociais que costumam me levar eventualmente a alguma imprensa escrita ou canal do Youtube para uma análise complementar. Gosto de postar no Face ou Twitter sempre alguma anedota idiota que pensei sobre a conjuntura do país. Dá uma sensação, tola, eu sei, de que participo do mundo. O que é, tenho total consciência disso, uma bobagem.
Quando chego ao escritório, abro o computador para iniciar o trabalho. Mas a cabeça já se encontra fervilhando de coisas absolutamente disparatadas. Como zerar essa ideias para ordenar o texto? Certa vez, li em uma entrevista o Veríssimo (LFV) dizer que ficava uma meia hora antes de escrever jogando paciência no computador até que iniciava o texto. Com efeito, penso que devemos limpar a área, repousar a agitação dos neurônios, decantar a intensa movimentação das moléculas no fundo do cérebro para orquestrá-las depois, a contento.
O que fazer? Não tenho a mínima paciência para esses jogos. Tetris, Pac Man, Space Invaders, Fliperama, Snake, Pong ou Telejogo Philco não fazem a minha cabeça. Procuro então coisas bestas. Reportagens do tipo revista Superinteressante, National Geographic ou futebol. Torço para o Cruzeiro, gosto de ler as notícias do time. “Que coisa mais hétero!”, disse uma amiga, certa vez. Mas é assim, pela manhã, ler algumas notícias absolutamente dispensáveis sobre o time, próximos jogos, escalações, essas coisas, não dura nem cinco minutos, mas é algo que me ajuda a zerar o QI. E ir para a vida como se eu, definitivamente, pudesse fazer alguma diferença. Estou seguro de que não faço. Mas o QI zerado me ajuda a pensar: vai que…
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias. Escrever me acalma, ajuda a organizar as ideias, que sempre me chegam de forma muito confusa e desorganizada. Como sou uma espécie de criativo compulsivo, escrever me coloca ordem na casa, na causa. Tenho muita dificuldade exatamente nessa autodeterminação de prazos e nos volumes diários de textos dentro de um tema específico. Sou excessivamente disperso e isso me torna ainda mais relapso com a produção, obrigando-me a um planejamento que não é algo natural para mim; ao contrário, tenho séria tendência a divagação aleatória, na vida. Por isso, sou movido a projetos que me imponho como forma de organizar o tempo e dirigir a produção, sobretudo acadêmica, que não é minha natureza, embora eu goste muito de dar aulas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Sou um anotador compulsivo da realidade e da ficção. Meu bloco de notas no celular é uma coleção de obscenidades naturais, a vida como quero que seja. Muitas vezes uma só palavra catapulta um poema, que vira crônica, que vira, eventualmente, um conto. Minha pesquisa é 24/7, estou conectado o tempo todo com qualquer ruído, movimento do gato, vento na jardineira. Nesse sentido, minha cachorrinha, a Zoé, uma border collie, parece-se comigo. Quem manja cachorro sabe. Deveriam se chamar border-line: sua orelhinhas são antenas girando continuamente aos mais sutis movimentos, motoboys, aviões, um velho que tosse, uma criança que corre. Creio que a vida é a minha bolinha.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sou um escritor, digamos, outonal. Ou seja, comecei tarde, gastei anos sendo arquiteto, jornalista, editor. Isso quer dizer que liguei um foda-se tamanho GG para as expectativas. Sei que os projetos são cenouras bem amarradas num anzol diante do burro e entro na brincadeira de ir trotando atrás dela. Mas, no fundo, sei que o que me move é o prazer de estar trotando, ou seja, escrever, em si, é muito melhor do que ter o livro publicado, pronto, eventualmente vendido, aqui ou ali. Minha cenoura é só esse estar-me escrevendo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Escrever, para mim, é revisar. Esse santo que baixa feito um demônio incorporado no corpo do autor, essa psicografia que tentam colar no escritor, para mim, é balela. Escrever é uma oficina meticulosa e exige, como numa pintura, muitas visadas, muitas camadas, muitas demãos. Sou casado com uma revisora profissional. Isso quer dizer que ela sabe muito bem não se limitar à picuinha ortográfica e pronominal, preservando a valsa que todo autor dança com seu próprio texto. Sou um cara de sorte. Mas juro, casei-me por amor.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Durante muitos anos, no processo recente no qual vivemos o triunfo da digitalização no mundo, resisti ao computador no ambiente literário. Desenhava profissionalmente na tela, mas escrevia em bloquinhos moleskines tentando mudar minha letra bastão de arquiteto em uma manuscrita, de freira, caligrafia pela qual sempre fui apaixonado. Sou capaz de ficar horas decifrando um livro de horas. Certa vez, fiz um trabalho para umas irmãs de uma congregação religiosa e tinha que me policiar para não querer ler tudo delas pelo simples fato de estar escrito em lindas capitulares medievais. Hoje, rendi-me ao smartphone. Escrevo nele, como se em um computador de mesa, longos textos que, depois, em um programa adequado, naturalmente, reescrevo. E reescrevo. Há um tipo de crítica, a chamada Crítica Genética, que trabalha a evolução das correções, ajustes, cortes e acréscimos nos manuscrito de um autor ao longo dos anos. Eu iria fundir a cabeça desses caras, pois, a cada dia, dou uma nova roupagem aos textos, desfazendo-os em forma e conteúdo, numa prática mais divertida e insegura do que propriamente relevante.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Creio que sou do tipo memorialista. Tudo que escrevo, de certo modo, tem a ver com o passado, sua escritura, reescrita. E não só o meu passado, mas o tempo anterior das coisas, a infância do mundo. Minhas ideias vêm desse lugar ruim por ultrapassado e bom por inacessível, tornando-me livre para fazê-lo e refazê-lo a meu modo. Sou também do tipo anti-hábitos, o que me faz menos neurótico com a repetição, menos sistemático, mas me torna um tanto quanto frouxo. Enquanto estiver apaixonado pelo dia, me manterei criativo. Se um dia eu optar pelo escuro de dentro do quarto, podem saber que parei.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Comecei a me dar conta de que escrevia quando adolescente, ensaiando alguns poemas ruins, disfarçando neles minha incrível incompetência para viver neste mundo, minha inabilidade para estar nele instalado, dentro de suas normas e padrões. Nesse sentido, continuo absolutamente igual ao que era antes, escrevendo de modo hesitante, meio autoanalítico, meio amoroso. Eu não diria nada a mim mesmo quando jovem, mas olharia emocionado para aquele jovem besta, iludido, pois acho que ainda sou ele.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Queria muito ter fôlego e tempo para ler grandes clássicos que ainda não li. Nunca tive saco para o Ulisses, embora tenha gostado do Finnegan’s Wake, do mesmo Joyce. Nunca consegui encarar a Ilíada e a Odisseia, apesar de ser apaixonado pela cultura clássica e mitos em geral. No mais, estar lendo me arremessa na direção de outros, novos projetos. Gostaria de ler a biografia de minha mãe, que eu mesmo ainda não escrevi.