Márcia Guimarães é escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo entre cinco e seis horas com três pares de olhos me cobrando o café da manhã: meus três gatos. Assisto o noticiário, leio os jornais, tomo uma ducha e saio para trabalhar. Só escrevo – quando posso ou quando não estou fisicamente exausta – depois das nove da noite, ao voltar do trabalho.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo a qualquer hora, se possível. Não tenho ritual nenhum. A preparação é sempre interna e antecede o ato de escrever. Percebo que fico em estado de alheamento. Uma espécie de “andar nas nuvens”, avoada, fora do ar. Aí já estou em trabalho de parto. Escrever é uma espécie de lancetar a veia, sangrar, botar o bicho pra fora.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho meta de escrita diária e sequer escrevo todos os dias. Passo longas temporadas escrevendo apenas “na cabeça”. Em períodos concentrados, quando preparo um livro, posso escrever compulsivamente, sem parar, desde as primeiras horas da manhã até a boca da noite. Ou noite adentro. Assim foi com A Grande Marcha do Coronel Baldomero Sampaio. Durante um mês, isolada em uma casa no alto de São Pedro da Serra, sem telefone ou qualquer comunicação com o exterior – não havia nem celular, nem computador à época – escrevia desde o cantar do galo até as primeiras sombras da noite. Uma situação excepcional que consegui estabelecer durante as férias, único período do qual podia dispor integralmente. Não havia luz elétrica ao anoitecer. Era incerta, acendia, apagava, piscava como luz de vela. Dormia em torno das oito ou nove da noite. Acordava às cinco da manhã, preparava café com pão e manteiga, e ocupava a máquina de escrever – sim, escrevi em uma Olivetti portátil – até o meio-dia. Intervalo para ovos com linguiça, e depois retomava o trabalho, initerruptamente, até às cinco ou seis da tarde. Ao anoitecer, enormes ratazanas tomavam o forro da casa em escandalosas orgias. Daí a necessidade da Jacutinga, cachaça boa, que tomava enquanto escutava, no rádio, A Hora do Brasil. Um anestésico eficaz no controle do pavor.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo é semelhante ao dos bois. Rumino. Mastigo. Transformo a ideia inicial em uma pasta de sensações, emoções, desdobramentos, reflexões até que forma-se um bolo onde todos os elementos estejam perfeitamente harmonizados. Daí, regurgito. Interessante observar que o excesso de pesquisas e notas compiladas, no meu caso, prejudica a escrita. Elas me engessam, me impedem de correr livre, me obrigam a paralisar o galope. Me engasgam. Prefiro me atirar ao desconhecido e à medida que vou avançando no trabalho, confirmar ideias e tirar dúvidas pontuais. Acumulei uma imensa pesquisa sobre a belle epoque e não consegui sair das primeiras páginas de um romance. Sabia demais, desde estatísticas sobre mortalidade infantil, à instituição da Roda dos Enjeitados, dos escândalos dos primeiros orfanatos, a casas de prostituição e ópio, do cinematógrapho de Paschoal Segretto ao Teatro de Revista, da indústria fonográfica iniciada por Chiquinha Gonzaga e Fred Figner ao tratamento do Dr. Philippe Pinel. Virou um vicio. O trabalho seguinte foi esquecer tudo que li sobre a virada do século. Ainda estou me desintoxicando.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não escrever é um tormento. Passo longas temporadas sem escrever uma única linha. Morta, como falava Clarice Lispector. Não lido nada bem com esses intervalos, embora não se passe um só dia que não pense em literatura. Há um permanente sentimento de culpa, espécie de espada de Dâmocles sobre a cabeça. A luta é comigo mesma, em enfrentamento com incontornáveis rotinas de sobrevivência. As razões são muitas e a guerra é travada nos escondidos do inconsciente. Há, sim, um medo quase irracional de não corresponder às minhas próprias expectativas, implacável que sou comigo mesma. As expectativas alheias não me dizem respeito e não creio que existam. Não me interesso por elas.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso dezenas de vezes, até mesmo depois de publicado. Cortar, cortar, cortar. Tenho compulsão pelo texto, obsessão pela perfeição e, na contramão, uma queda infame para o beletrismo. Amo palavras. Como no título do admirável livro de Myriam Campello, acredito que “Palavras são para comer.” É sensorial, sensual, prazeroso mastigar palavras, saboreá-las, sentir sua carne, triturar seus ossos, lamber sua gordura. Portanto, tenho um trabalhão para podar o excesso de galhos. Não gosto de mostrar meu trabalho a ninguém, enquanto eu mesma não o considere pronto. Deixo descansar muito tempo na gaveta, até que possa ter um olhar novo sobre meu próprio trabalho. Essa é uma das razões de publicar tão pouco.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Já fiz anotações em guardanapos, papel de embrulho, maços de cigarro. Já esbocei ideias e personagens em cadernos pautados. Já construí enredos, organizei épocas e datas em blocos colegiais. Há um prazer quase pictórico entre o punho, a caneta e a folha. Ainda faço anotações a mão, em caráter de urgência, feito touro bravo batendo a pata antes de arremessar-se. Mas é raro. É no computador, hoje, que escrevo direto, o primeiro copião, o esqueletão do início ao fim.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Vem de uma frase musical, uma palavra ouvida de passagem, uma reflexão, um ponto de exclamação, uma dor interna subitamente compreendida, um clarão. Vem quando estou lendo, vendo tevê, andando no calçadão, na praia, no supermercado, na avenida. Da observação da vida. Certa vez acompanhei uma mulher durante vários quarteirões em Paris, porque cismei que era Anastácia. Fiquei obcecada pela figura de traços eslavos, uma nobreza na postura ereta, contornos cansados, envelhecidos, gastos. A ideia vem quando estou atenta ou distraída. Agarra-se à pele, cola-se à pulsação. Deixo quieta. Volta. Incomoda. Incha. Morde a consciência, não me deixa em paz. Se não escrevo, cresce feito massa com fermento. Até que a alturas tantas, sem poder fugir, sento e escrevo. É assim.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou a densidade, o mergulho. A construção formal da frase. Tenho, ainda, algumas anotações da juventude, aquelas que fiz em cadernos pautados, cheios de esboços. Volto a eles, muitas vezes, para revigorar cansaços. Redescubro-me na ingenuidade e no frescor dos primeiros anos. Então reescrevo devagar, eu- mulher-feita corrigindo a garotinha que fui – e sou – sem deixar que o riso infantil se perca. Gosto muito de brincar comigo mesma. São textos inéditos. Nunca tive pressa. Não tenho agora. Publicar é secundário.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Há anos venho fazendo anotações sobre a belle époque no Brasil, época que me fascina imensamente. A ideia original, em esqueleto, é um romance com personagens já esboçados com seus entrelaçamentos, caracteres, enredos, tramas e desfechos. Comecei e parei um par de vezes. Algumas tentativas desembocaram em contos. Que se há de fazer? O ritmo se impõe. Não adianta controlar o desdobramento. Sei quando é um conto. Sei quando o fim vai chegando de mansinho. Antes de terminar já tenho a frase final martelando na cabeça. Não adianta continuar. É ponto final. Então começo de novo. E de novo.
O livro que gostaria de ler e ainda não existe, é esse mesmo. O romance que venho esboçando há anos e não escrevi. E nem sei se escreverei, embora ande por um Rio de Janeiro inexistente ao lado de personagens que ainda não criei.