Marcelo Torelly é doutor em direito pela Universidade de Brasília.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Nunca tive controle sobre minha rotina. Sempre trabalhei em lugares e projetos onde ou outras pessoas eram necessárias para minhas atividades, ou eu era necessário para as atividades de outras pessoas. Quando posso, gosto de começar o dia revisando notas, e-mails e documentos relacionados com aquilo que farei a seguir, ao mesmo tempo em que tomo café ou chá. Mas poucas vezes é assim que o dia começa…
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu me sinto melhor para escrever determinadas coisas em determinados momentos. Por exemplo, prefiro trabalhar com tarefas de escrita fragmentária, como pareceres, projetos longos (com orçamento, matriz lógica e afins) ou análises técnicas quando já estou mais cansado, pois são formatos de escrita mais padronizados e que serão revisados por mim e por terceiros. Quando tenho de escrever algo mais autoral, prefiro estar com a mente limpa. Isso não significa começar cedo pela manhã, mas sim começar relaxado, depois de fazer algo prazeroso ou ler algo inspirador. Igual, já aprendi faz tempo que às vezes é melhor usar um dia ruim para começar algo que depois será refeito do que esperar o dia seguinte, quando outras coisas que você não controla acontecerão.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrever é meu trabalho, o que quer dizer que escrevo todos os dias em que trabalho, geralmente de segunda a sexta-feira, às vezes nos finais de semana. A questão para mim é em qual projeto estou trabalhando cada dia, e em que momento do dia trabalharei cada parte de um projeto, qual a melhor oportunidade para iniciar algo novo e assim por diante.
No trabalho que faço, tenho um pouco de dificuldade em compreender a ideia de um colega que não escreva alguma coisa todos os dias – você escreve aulas, palestras, pareceres, peças, artigos, capítulos, teses, livros, responde e-mails com conteúdo, discute o planejamento de um trabalho coletivo que depois precisa virar uma planilha… isso tudo é escrita, isso tudo é trabalho e isso tudo faz parte de um todo que, às vezes, termina publicado.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Poucas vezes tive o privilégio de passar grandes períodos de tempo preparando a escrita. Sempre estive envolvido em mais de um projeto ao mesmo tempo e isso demanda fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo. O tempo médio de duração de um projeto, com bom financiamento, é de 6-18 meses. Alguns projetos com grande impacto social precisam ser concebidos e executados em menos de meio ano. É muito menos tempo do que a maioria das pessoas leva para fazer um mestrado, tendo controle total sobre a agenda – e é por isso que acho inconcebível que a maioria dos programas de pós-graduação não se preocupem em ensinar a fazer pesquisa.
O que me parece importante é entender que a pesquisa é um ofício como qualquer outro. Tem suas peculiaridades, também como qualquer outro, mas não é algo em si especial. Já deixei de aceitar convites para projetos nos quais gostaria muito de estar pois avaliei que não teria condições de realizar o necessário no tempo proposto. Outras vezes aceitei e me arrependi, pois não consegui entregar algo realmente interessante. O problema de passar da pesquisa para a escrita, geralmente, é um problema de planejamento, não de inspiração.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Essas são preocupações que tenho antes de começar a escrever, raramente durante o processo. E acho que se referem a dimensões diferentes do nosso ofício.
Tenho muito claro que, sendo a pesquisa um ofício como qualquer outro, dias melhores e dias piores virão, mas seu trabalho seguirá sendo sempre o de tentar fazer o melhor possível em um contexto real e contingente. É assim que eu lido com a expectativa. Se sou convidado para escrever em um livro de referência para o campo, só aceitarei o convite se tiver condições de escrever algo digno de ser referência para o campo. A postura é diferente quando estou escrevendo ou organizando uma obra cuja função é oferecer uma provocação pontual ou simplesmente sistematizar informações. Outras vezes, por dever profissional, tenho de entregar algo em um tempo não ideal. Nesse caso, não vejo qualquer problema em registrar isso no próprio trabalho, para que o leitor saiba em que contexto aquilo foi desenvolvido e quais as limitações daquela contribuição.
Muito da expectativa que sinto nas pessoas com quem convivo está relacionada com uma certa egolatria, e uma das coisas mais interessantes nesse projeto, “como eu escrevo”, é desnudar isso. Se você sabe para quem você está escrevendo, é relativamente fácil entender qual contribuição pode dar e estabelecer uma interlocução. O problema é quando você está escrevendo para si mesmo, seja porque “precisa publicar” e está disposto a submeter para o público algo que não adiciona nada, seja por ter uma apreensão exagerada sobre sua importância no mundo, não se vendo como mais uma pessoa contribuindo, com fortalezas e limitações, para a construção de algum campo de conhecimento. Essa segunda dimensão é válida tanto para quem tem o ego inflado e tem medo de se expor, quanto para quem é inseguro e esquece que a meta não é disputar um prêmio Nobel mas sim oferecer alguma contribuição, que pode ser pequena e pontual, para a construção de algo.
A procrastinação é uma coisa completamente diferente disso e que, normalmente, tem relação com a falta de objetivos claros. Você trabalhar de modo um pouco randômico até decidir em que direção quer seguir não é uma forma de procrastinação. Ao contrário, pode ser produtivo parar para ler algo, ouvir algo ou pensar em algo diferente quando se está com dificuldade de definir uma prioridade. Outra coisa bem diferente é não conseguir pensar por onde seguir por não saber aonde quer chegar. E isso, novamente, guarda relação com ter consciência daquilo que você pode oferecer e planejar para fazer o seu melhor.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Meus piores textos são aqueles que escrevi mais sozinho. São piores no conteúdo, piores na forma, piores no uso da língua portuguesa.
Sempre que posso, discuto o trabalho em oficinas, eventos ou, pelo menos, com alguns colegas. Tenho muita dificuldade em conceber uma publicação em sentido “tradicional”, como um artigo ou capítulo, sem que os pares tenham podido contribuir antes. Um trabalho acadêmico não é um romance autoral e, mesmo que fosse, sempre se beneficia do olhar externo. Por isso, admiro muito os colegas que mantém, seriamente, blogues e outros meios de discussão de ideias “em construção”.
Para mim, esse diálogo é o melhor caminho para a construção de um trabalho efetivamente relevante para o campo, e é o modelo que eu vejo funcionar. Conheço poucos grandes trabalhos que tenham surgido fora de contextos que na academia deveriam ser frugais mas são, na prática, raros: grupos de pesquisa, oficinas de discussão, ou qualquer outro processo de mediação onde as qualidades e os limites do pesquisador são confrontados e estimuladas pelo coletivo.
A ausência desses espaços fortalece uma lógica torta de que o pesquisador é uma espécie de Robinson Crusoe, lutando sozinho contra “nativos” e “canibais” em busca de redenção. O fato de alguns pesquisadores terem medo de suas ideias serem “furtadas” não chega a ser infundado, mas é revelador de quão individualistas nos tornamos no processo de produção do conhecimento.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Diariamente escrevo pequenas notas e observações à mão, nunca mais do que isso e nunca pensando em as ter publicadas. Minha escrita à mão se resume a uma caderneta que mantenho como espécie de diário profissional, onde tomo nota de todos os eventos e reuniões nos quais participo, quem mais estava lá e se algo de relevante aconteceu ou foi dito.
Isso me ajuda a manter a vida organizada e resgatar informações – por exemplo, voltar nas questões que me foram feitas em um evento quando estou revisando o trabalho apresentado. Salvo raras exceções, essas notas não têm mais que meia página.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acho que a ideia de criatividade geralmente é mobilizada como uma fuga. Se você quer fazer uma boa pesquisa você deve iniciar revisando a literatura que já existe. É chato e não tem nenhum glamour, mas uma das piores coisas para mim é começar a ler um artigo que aborda seu problema sem considerar de forma mais ou menos sistematizada aquilo que já foi feito antes. É algo de uma arrogância brutal e, como regra, a primeira coisa que me faz recusar um texto quando recebo para uma avaliação cega.
Um segundo passo é identificar questões relevantes que ainda precisam ser respondidas, ou os temas que precisam ser problematizados e assim por diante, e dizer claramente o que você pretende adicionar ao campo. A criatividade só tem algum papel em complementação disso, mas tenho a sensação de que muita gente acha mais importante ter uma ideia genial do que escrever um trabalho simples e honesto.
Dito isso, talvez, para mim, “criatividade” seja apenas uma mistura entre concentração e inspiração. Geralmente me inspiro lendo o trabalho de quem admiro e me concentro procurando me desligar das questões estranhas ao que preciso fazer. Para isso, posso caminhar, ouvir música, ler alguma coisa aleatória. Acho que isso é o mais próximo que posso chegar de uma resposta aqui.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Não faz tanto tempo assim que terminei minha tese, mas um dos meus grandes aprendizados foi ouvir. Lembro de uma vez que fui conversar com a professora Vicki Jackson, contei durante vinte minutos o que estava fazendo e, ao final, ela me disse: “gostei muito de conhecer você e aprender sobre isso, sugiro marcarmos um horário daqui a quinze dias para eu lhe dizer o que penso sobre o tema pois agora eu preciso receber outro estudante”.
Depois desse dia passei a sempre carregar um resumo de uma página, em bullet points, com os principais pontos da tese. Quando ia conversar com alguém entregava isso e não usava mais do que dois ou três minutos para apresentar minhas ideias. O doutorado é um momento de aprender, não de ensinar e, às vezes, ficamos tão intoxicados com nossas próprias ideias que esquecemos disso.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou mais preocupado em terminar os projetos nos quais já estou metido…