Marcelo Rayel Correggiari é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Às vezes, começo meu dia bem cedo por conta das atividades como tradutor e professor de Língua Inglesa. Talvez esteja, aí, o lado ruim de se trabalhar em casa, o lance de se ter horário para começar, mas não ter um horário para terminar. Acontece. Desafio dos novos tempos. Então, a rotina matinal tem essa ocupação de tempo. A Literatura, a escrita, costuma entrar mais à tarde num espaço mais espremido, porque tenho de sair para as aulas do final de tarde e da noite. Então, no caso da escrita, ou rola bem cedinho, ou depois das 23h, quando a casa está mais silenciosa.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Meu horário preferido é a madrugada. Descobri que curto o silêncio da madrugada, não tem TV ligada por perto, não tem telefone tocando, gente tocando campainha para pedir coisas… não têm muitas interrupções. E isso é um bálsamo. Pode parecer bobagem, mas o dia iluminado pela luz solar reserva toda sorte de interrupções. Quando você vê, não consegue ter “o jorro” que encontro, por exemplo, nas madrugadas. Dependendo do tipo de texto que estou escrevendo, saem umas vinte páginas numa tacada só! Ou mais! Prefiro mais a manhãzinha para não atrapalhar o horário de sono, porque quando se trabalha de madrugada o dia seguinte fica com gosto de guarda-chuva. Parece que você está no fuso horário da Rússia. Aí, sento lá e escrevo. Não me recordo de algum tipo de preparação, não. Às vezes, interrompo a escrita para a preparação de um suco, chá ou café.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando você não tem um amparo de um bom contrato, é possível escrever um pouco todos os dias. Contas pagas antecipadamente permitem esse ritmo diário. Porque a gente precisa de uma atividade profissional para pagar as contas, e o tempo que isso toma faz com que não sobre muito para a escrita. Acontece. Tudo depende do cronograma: se tenho um trabalho longo, duas a três páginas por dia. Só que não como obrigação diária. Sete dias vezes três dá um total de 21 páginas semanais. Só que tem noites que escrevo 25, o que dá a média diária e me permite ocupar os dias seguintes para me concentrar nas minhas atividades profissionais, que são as que pagam as contas. É óbvio que, nessas condições, finais de semana são bem mais produtivos e procurados do que os dias da semana. Ou seja, sem um bom contrato amparando, boa parte dos(as) escritores(as) acabam se tornando uma espécie de “weekend players”, o famoso artista de final de semana.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eita pergunta difícil! (risos) Cada trabalho é um trabalho. É muito caso a caso. Por exemplo, iniciei essa semana uma adaptação para o teatro de O Processo, do Kafka. Exige um outro circuito mental do que aquele que a gente tem quando se escreve um romance. Vivo isso nesse momento: uma adaptação para teatro e um romance literário ao mesmo tempo, e são coisas completamente diferentes. Então, vou me ater ao romance, porque meus demais trabalhos me guiam para abordagens diferentes. No caso do romance, é quase como o Chico Buarque, que escreve andando pelas ruas (risos). É sério! Crio romances andando. Crio histórias caminhando pelas ruas da cidade onde moro (Santos). Quando chego em casa, abro o computador e materializo a obra. É isso! Mas escr evo andando. Se ficar parado, não sai uma linha. Fica tudo guardado na cabeça, quando chego em casa, materializo o texto que já escrevi. Então, não tem notas. Tem sempre um moleskine por perto, no bolso, com uma caneta, apenas para pegar uma e outra ideia que seria interessante entrar na história. Mais nada. Mas sem esse rigor todo, pode ser guardanapo de bar, padaria, também. Sem neuras. Também não tem muita pesquisa. Quando precisa, vale tudo: filme, livro, podcast, blog, revista… visitas intermináveis, quando dá, a bibliotecas e hemerotecas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Fiquei velho, né?! É uma vantagem (risos). Quando se fica velho, perde-se a beleza, perdem-se certos orgulhos fora de hora e contexto… a gente lida com certos desafios, como não corresponder às expectativas, com um belíssimo de um dane-se! Na verdade, é um palavrão! (risos) Mas vou tentar me conter para não soar, aqui, como uma espécie de Dercy Gomçalves das Letras, o que nem sempre fica bacana (risos). Quando se fica velho, a primeira coisa que constatamos na vida é que a gente nunca corresponde à expectativa alguma! Então… dane-se! (risos). Quanto à procrastinação, isso numa cidade como a que moro, em Santos, chega a ser uma benção! “Quer procrastinar?! Show!” A gente vai par a a praia, toma mate gelado e caipirinha, toma sol, vê o movimento, corpos sarados de biquíni e está tudo certo! Ou vai para o cinema… imagina… no Posto 4 tem uma sala de cinema só com aqueles filmes chamados filmes de arte. Quer coisa melhor?! (risos) Tem de tudo! Então, num lugar como esse, procrastinação não é problema. Para bloqueio criativo, pode ser a salvação! Quanto a projetos longos, já fui mais ansioso. Como sou blogueiro e colunista também, é possível enfrentar um trabalho longo com a famosa média diária de produção, o que reduz bastante a tal ansiedade porque você acaba conhecendo qual sua capacidade real de produção. Então, em torno desses três aspectos, já tive dias piores. (risos) Hoje em dia, não tenho mais isso. É andar para escrever e sentar na fr ente do computador para materializar a obra. Nada mais!
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
De novo, caso a caso. No caso de postagem em blog e coluna, revisão quase zero. Uma vez só. Porque, no caso da coluna, é puxado, um texto inédito por semana e tem prazo, deadline. Então, é meio “jorro”, “vai que vai…”. É o tipo de trabalho bom para se fazer, porque se você é cheio de pruridos em torno de produção artística, tecido verbal, esses assuntos, você perde a ingenuidade com a velocidade da luz! Escreve, e põe na rua! Põe para bater! Depois vai dar uma caminhada, uma voltinha, para ver o quanto de afetos e desafetos você colecionou com o que escreveu naquela semana. É se jogar de trapézio em trapézio sem qualquer rede de proteção por baixo! O que ajuda no ente ndimento pessoal de qual sua capacidade de produzir coisa boa em curto espaço de tempo, o quanto você tem pontaria para coisas que vão mexer com seu leitor. Já no caso do conto, do romance literário, na situação de não ter prazo de concurso literário ou um contrato nos calcanhares, aí… fica bom, porque sobra tempo para uma revisão. Nessa situação, em torno de duas, três revisões. É possível se revisar uma quarta, quinta vez, só que, aí, você enxerga Literatura como se enxerga uma maionese: se errar na mão da revisão, desanda! (risos) Tenho amigos e amigas que são grandes escritores e escritoras que acabaram “fazendo bobagem” e, quando você vai passar a lupa para ver o porquê o trem deu errado, está lá: já estava na 10ª revisão! Aí… não tem jeito. Errou na mão! Então, no meu caso, duas a três revisões, com um bom intervalo entre elas. Num determinado ponto, é apertar o botão e passar para o editor. Se fica muito por perto por muito tempo, o risco da maionese desandar se agiganta.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Acho um tesão! Esse lance de e-book, curto pacas, tanto como leitor quanto como escritor. Acho muito bom! Hoje em dia, as plataformas de impressão de obras das principais gráficas estão todas na internet. Um paraíso! Você capricha na editoração do seu trabalho, do seu livro, faz o cadastro, envia os arquivos de miolo e capa, paga o pedido e só fica em casa esperando os exemplares. Tem coisa melhor?!? Um tesão! Tecnologia muda aquela coisa da casa editorial e do editor decidir quem nasce e quem morre no meio literário, e isso é revolucionário! Um tesão! Um troço! E-book, então, é libertador! Conheço novos nomes da Literatura sem ter editor e casa editorial mediando a coisa, vou lá e leio! Sabe?! Para quem gosta de garimpar, que é o meu caso, a tecnologia caiu bem. No caso de produção, é meio-a-meio. Pode ser no computador, pode ser no papel, sem problemas. Os dois continuam com o mesmo poder e relevância.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acho que o de sempre, como qualquer outro autor, pessoa: viajar, andar na rua, passear, ir ao cinema, teatro, ler livros, conversar com amigos, sair para beber, ir numa festa, trabalhar… tudo pode ser adotado como um cultivo de hábitos onde as ideias brotam. Todo ser humano em qualquer parte do mundo é criativo exatamente por conta das atividades que tem. Então, tudo pode ser hábito cultivado para que, lá pelas tantas, dê o “plim” e uma ideia surja. No meu caso, gosto de cinema, teatro e praia. Gosto das viagens, mas a crise financeira me levou de roldão, então… hoje em dia ficou mais complexo. Mas, em breve, retomo esse hábito.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Êêêêêiiita… mais uma difícil de responder! (risos) Bom… é aquela velha relação entre primeiro você ser leitor para, depois, ser escritor. Penso que é isso. E nesse caso o tempo mais cronológico, esse dos relógios, dos calendários, ajuda porque você acaba lendo mais coisas, mais textos, vivenciando mais coisas… e… então, sempre há um acúmulo de bagagem que dá certo lastro ao que você escreve no momento. Aí, com o passar do anos, o processo fica mais sossegado, enxuto, não há tanta ansiedade assim, e você acaba acertando mais na precisão daquilo que você quer, deseja, escrever. É mais ou menos isso. Você senta e escreve… e pronto! Materializa a obra com mais precisão. É isso! Até porque os cabelos brancos te permitem deixar de lado certas bobagens comuns da área e entregar a lista de leituras a títulos que você, mais jovem, tirava uma, tirava sarro daquele estilo literário, ou escritor. Quando você envelhece, você manda tudo e todos “para aquele lugar” e arrisca ler um (Nassim) Taleb, e descobre que o cara é genial! Isso é uma coisa que o passar do tempo te dá coragem de fazer e reflete na sua escrita, que acaba, de um jeito ou de outro, melhorando. Porque somem alguns preconceitos. É a vantagem de você mandar tudo “às favas” e não ficar mais colado às ideias de jerico produzidas pelos preconceitos de gente que nem é da área, nem é do ramo. Por isso que a escrita e o processo melhoram. Então, se pudesse voltar no tempo, diria a mim me smo algo assim… sabe?! “Vai! Escreve isso!”, “Escreve assim!”, “Escreve desse jeito, do jeito que você quiser!”. Não ficar tão preso a pruridos e classicismos. Sinto isso, sabe?! A coisa da fluidez…
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Isso me faz lembrar do (José) Saramago… quando li “Jangada de Pedra”, fiquei puto! (risos) Sério! Aquele lance do “… porque não tive essa ideia antes!”. A impressão que dava era a de que as melhores ideias para os melhores romances só ele tinha. Ele ia lá e roubava da gente! (risos) Quando li o “Ensaio Sobre a Cegueira”, aí, tive certeza! (risos) Bom… gracejo à parte, acho que é cinema. No caso do teatro, estou começando agora a adaptação de “O Processo” e já é algo para se aprender bastante, depois vale, até, compartilhar como foi a experiência. De coisa que nunca fiz, é o cinema. Só me faltaria tempo e uma disciplina que acho meio complexo no caso de se escrever roteiro de cinema. No caso do livro que ainda não ex iste, que eu gostaria de ler e ainda não existe, sei lá… não faço muito ideia, não! Até porque acho que, em termos literários, a “cabeça bateu no teto”. Em algumas artes, ainda há a possibilidade de você encontrar algo inusitado, novo, mas no caso da Literatura acho que a “… cabeça já bateu no teto”. Não sei, mas penso que essa discussão sobre “a crise no discurso literário” passa um pouco por isso… “… a cabeça bateu no teto”. Já não se tem mais algum tecido verbal “realmente novo” para se colocar na praça! Então, tudo o que precisou ser escrito já está na praça. Nesse caso, o da Literatura, a imaginação humana empurra novos títulos, mas a criatividade já não é tant a para que se possa ler algo que ainda não existe em termos de um tecido verbal realmente inusitado. Então… a probabilidade de ler algo que ainda não existe é quase abaixo de zero. Não deve pintar na área… pelo menos enquanto estiver vivo. Quanto a isso, já me preparei para ficar mais tranquilo. Só que as histórias, a ficção, estão todinhas aí para serem contadas. Hoje em dia, é isso que me move. “O que o autor tal, a autora tal, tem para me dizer… para me contar!”. E sempre tem coisas novas, às vezes, surpreendentes, apesar do tecido verbal, da estrutura da história, não ser inédita. É isso!