Marcelo Mourão é professor, poeta, escritor e crítico literário.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Depende muito da minha agenda no dia seguinte. Se preciso acordar cedo para realizar minhas atividades usuais, não-artísticas, acordo de manhã e saio para trabalhar. Se não é necessário despertar cedo, fico a noite toda estudando e escrevendo. Adoro o silêncio da noite para poder pensar, ler, estudar e escrever.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Durante a noite. Um ritual? Não, não chega a isso. Mas preparo, sim, o meu espaço, as minhas acomodações. Vou para o meu escritório, que é um lugar muito iluminado e onde guardo todos os meus livros, cadernos e o laptop, coloco uma música bem suave – geralmente um jazz, tipo Coltrane, Miles Davis, Chet Baker etc -, e, a meu lado, umas duas garrafinhas de água bem gelada. Pronto, está criado o meu ambiente de trabalho.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Leio e escrevo todos os dias, e eu geralmente chamo isso de trabalho de formiguinha ou trabalho acumulativo. É tal e qual o velho ditado popular: “de grão em grão a galinha enche o papo”. Depois de muitos dias, tenho quase um livro inteiro em mãos. Por outro lado, não é a quantidade, mas principalmente a qualidade dos escritos que importa: é bom escrever todo dia, porque, primeiro, eu adoro e, em segundo lugar, acho muito importante ficar burilando o texto sem pressa para acabar. Uma coisa posso dizer: nunca as primeiras versões do texto são as últimas. Eu mexo e remexo demais em meus escritos, até chegar a um ponto em que me dá a impressão de que já não há mais nada a ser acrescentado neles. É o processo sempre necessário de maturação de uma obra, seja ela qual for. Pode ser um texto em prosa, um poema, um livro, uma pintura, uma escultura etc.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Depende muito… Se for poesia, hoje em dia até pesquiso bastante e planejo demais antes de escrever. Mas nem sempre poemas nascem a partir de leituras prévias e pesquisas. Agora, quando vou escrever monografias, ensaios, artigos, críticas literárias, aí, sim, eu preciso ler bastante e fazer mil e uma anotações. O único romance que escrevi também necessitou de bastante pesquisa, já que o seu tema tocou na questão dos casais sorodiscordantes, ou seja, aqueles em que um é HIV positivo e o outro não. Daí, eu precisei fazer muitas e muitas pesquisas.
Mas costuma funcionar assim: primeiro leio zilhões de textos, vejo uns trocentos vídeos, e, dependendo da pesquisa, entrevisto inúmeras pessoas. Daí, quando sinto que já domino o assunto, eu sento e escrevo. Então, eu misturo meu texto com minhas anotações e vai saindo um resultado bruto que, depois de inúmeros consertos, vai ganhando a sua redação final. Já fiz tantas e tantas vezes isso que peguei muita prática. Não tem mais como errar ou ficar temeroso de não saber fazer.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
O mantra que sempre repito para mim mesmo é: “eu não devo jamais me desesperar ou ficar angustiado”. Já estou há muitos anos nessa estrada e conheço todos – ou quase todos – os caminhos. Se em um dia a inspiração não surge, em um outro, ela, com certeza, vem. Não tenho esse medo não.
Procrastinação às vezes acontece, sim. Mas não posso correr para escrever sem inspiração alguma ou sem vontade. Isso só não ocorre – me dar ao luxo de escrever se me der vontade – quando faço trabalhos por encomenda ou obrigatórios com prazo, por exemplo, aquelas tarefas pedidas pelos professores da faculdade.
Medo de não corresponder às expectativas? Não, não possuo esse temor. Até porque já me habituei aos meus critérios de escrita e ao meu público alvo. Sei muito bem como gosto e quero escrever e para quais tipos de pessoas eu costumo direcionar a minha escrita.
Ansiedade de trabalhar em projetos longos? Também não tenho. Estou escrevendo muito lentamente o meu próximo livro de poemas e isso não me incomoda nem um pouquinho. Até gosto mais de projetos longos, demorados, nos quais vou maturar o material até o máximo possível. Livros têm que buscar sempre ser impecáveis e, na medida do possível, originais. Livros ruins existem aos quilos no mercado. Meu medo, esse sim grande, é publicar mais um desses que vão cair nas estantes empoeiradas do esquecimento.
Quantas vezes você revisa os seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Inúmeras e incontáveis vezes. Brincadeirinha. (risos) Mas, sério, há em mim uma busca quase insana pela perfeição. Tenho quase certeza de que isso é um transtorno obsessivo compulsivo (TOC) meu. (risos) Para você ter uma ideia, o Máquina mundi, meu último livro de poemas (lançado no final de 2016), foi corrigido 36 vezes! Mas depois desse parto difícil, tive a imensa alegria de vê-lo ganhar o prêmio de melhor livro de poesia do ano de 2016, dado pela União Brasileira de Escritores (UBE). Então, acredito que é um sofrimento que vale a pena.
Eu tenho o Clube dos 5. (risos) São cinco que sempre leem. As pessoas nesse grupo, de um livro para o outro, até mudam, mas a quantidade fica. Sempre cinco. Digo isso porque em todo livro meu há pessoas que escrevem o prefácio, as duas orelhas, a quarta capa e tenho mais um amigo que entra nesse bolo, e todos eles leem e eu peço que, se tiverem alguma crítica – seja ela positiva ou negativa –, que fiquem bem à vontade para me falar. Isso sem contar comigo, que sou o meu primeiro leitor e crítico ácido. Minha experiência de dez anos como crítico literário já me dá bastante segurança para avaliar o meu próprio material. Porém, devido ao meu envolvimento psicológico (e sentimental) com o que escrevo, acho muito importante que outros possam ler e me dizer aquilo que acharam. São pessoas não-envolvidas intimamente com o material, daí que é muito importante a visão que elas possam ter sobre aquilo que leram e que possam opinar sobre a obra. E, claro, busco sempre profissionais das letras e da literatura para lerem. Mas confesso que esse número de pessoas está caindo de trabalho para trabalho, justo porque cada vez mais a segurança e a autoconfiança são maiores.
Como é a sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação é muito boa com as tecnologias. Mas, poemas eu ainda costumo escrever à mão, depois é que passo para o computador. Os outros gêneros literários escrevo todos diretamente na máquina. A poesia possui uma aura diferente, uma magia, um desenhar e ver as palavras nascerem, brotarem uma a uma no papel em branco. Além disso, adoro corrigir, passar a toda hora a borracha, reescrever e ficar olhando, apreensivo geralmente, para o papel em branco.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Elas vêm de todos os lugares e direções. Geralmente tenho muitas ideias a partir de conversas com amigos e tomando banho. (risos) Ou seja, sintetizando, eu tenho ideias seja na companhia de alguém ou em solidão. Daí ser usual também ter insights em viagens solitárias de ônibus e caminhando distraidamente na rua. Há ideias que também nascem a partir de leituras ou de alguma aula que dei ou recebi. Enfim, ideias não possuem hora nem lugar específico para aparecerem.
Os hábitos que mantenho para me manter criativo? Ler exageradamente todos os dias, ver inúmeros vídeos e filmes, escutar milhares de músicas, conversar bastante com as pessoas e observar ao meu redor, os ambientes político e social. São esses os meus hábitos para me manter tendo mil e uma ideias.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Tive, ao longo, dos anos, várias mudanças nos meus métodos de criação. Foram tantas modificações que eu poderia escrever um livro inteiro sobre elas, detalhando minuciosamente tudo que foi acontecendo e as alterações que foram se dando. Eu escrevo desde os meus 13 anos… Então, é uma história bastante longa de encontros e desencontros com a escrita. De tanto que mudei e experimentei novas formas de expressão, eu acabei por ganhar a alcunha de artista-camaleão. A figura desse bichinho e o que ele representa se ajustaram demais à minha personalidade artística. Tanto que resolvi até fazer uma logomarca associando o meu nome a ele.
O que eu diria a mim mesmo se eu pudesse voltar à escrita de meus primeiros textos? No momento em que me encontro, só posso dizer a mim mesmo: “Siga em frente que seu tema de pesquisa, além de inédito e muito instigante, ainda vai lhe render vários excelentes frutos, tanto na vida acadêmica quanto na artística. Vai fundo, garoto!” (risos)
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de me dedicar muito mais ao romance, ao conto e, principalmente, à crônica, que é um gênero que muito me agrada. Futuramente, eu dispondo de mais tempo livre, com certeza, isso irá acontecer. Não tenho dúvidas quanto a isso. Já me exercitei em tantos estilos e gêneros, mas faltam estes que enumerei acima. Meu grande desafio é tentar dominar a escrita de todos os tipos de textos, poder lançar livros em todos – ou quase todos – os gêneros e me fixar naqueles que eu apresentar maior facilidade de domínio e talento na sua produção.
Respondendo à sua segunda pergunta, seria um sonho ler o livro da vida e da morte. Só que nem a vida nem a morte podem caber de forma plena, total, completa em um livro. Não há meios para se transportar para o interior de um livro a realidade exatamente como ela é. E, é bom lembrar que esse foi justamente o maior erro cometido pelo Realismo, ou seja, o de querer dar conta totalmente do real através da escrita, da pintura, do cinema ou de quaisquer outras artes nas quais ele apareceu como um estilo. Toda vez que se escreve sobre a realidade é sempre uma visão específica sobre ela. Isso porque levar o real para o livro depende da ponte humana, ou seja, de quem escreve. Ou seja, passa pela subjetividade de alguém, o que acaba se constituindo apenas numa representação da realidade e não a própria, aquela que ocorre no nosso mundo concreto. No fim das contas é apenas um simulacro e não a realidade nua e crua transposta para a obra de arte, seja um livro, uma pintura, uma escultura ou até uma fotografia. Mas, olha, bem que eu queria ler o livro da vida e da morte. Pena que não existe e jamais existirá.