Marcelo Labes é escritor, autor Enclave (2018).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não consigo decidir se gosto das manhãs, e essa é uma luta que vem de anos e não parece perto de terminar. Houve um tempo dolorido em que me aterrorizava ver o amanhecer, porque não dormia e o dia seguinte não prometia muita novidade. Nos nove anos de funcionário público foi a mesma coisa. Não que não goste do dia, mas há esse nascer de novo que me custa muito. Sofro de insônia e penso que da mesma forma como o insone foge dessa morte cotidiana – e com isso me identifico muito, sobretudo se tenho algo sobre o que escrever e não consegui concluir a ideia ainda –, da mesma forma eu me recuso a renascer na manhã seguinte. Então não é possível haver rotina matinal para quem foge das manhãs. Mas se acontecer, mesmo por acidente, essa manhã será regada a café e terá um cheiro rançoso de cigarro, meu próprio cheiro.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu ainda não descobri como os poemas surgem, embora investigue isso pessoalmente já há alguns anos. Não gosto muito da visão proto-kardecista do poeta como um canal para as palavras de além-mundo. Então o que faço melhor durante o dia é colecionar incômodos – que podem ser linguísticos (um encontro consonantal, um ditongo aberto, uma cacofonia que me chamou atenção) e podem ser imagéticos, políticos, existenciais e da ordem do dia. Coleciono esses incômodos sem escrever sobre e deixo para o momento do gancho, quando a estrutura me surge, principalmente o ritmo, então coloco no papel tudo aquilo que eu vinha guardando. Se o incômodo resistiu ao tempo que ficou guardado, então ele merecia estar no poema.
Essa prática não é vivida por mim apenas como poeta. Ultimamente tenho tido a experiência de escrever um romance e vejo que a coleção de incômodos permanece, embora a prática seja outra. De qualquer forma, a preparação se dá na espera. Eu vivo de colecionar imagens, sons, palavras, angústias e neuroses, e seria fácil por tudo isso pra fora. No entanto, deixo ali fermentando. Uma hora estoura. E quando isso acontece é que surge o texto.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Uma vez, eu era guri, escrevi uma carta a um grande poeta. Dentro do envelope eu mandei um conto de minha autoria chamado “O fato”, e era uma história boba de amor que resiste à morte etc. O poeta me respondeu dizendo que havia visto qualidade naquele texto, mas que eu precisava praticar mais. Desde então a literatura tem ocupado meus dias de diversas formas, seja lendo, matutando versos, encaixando o roteiro de uma história a marretadas, mas ainda pensando e, por fim, escrevendo. Considero a escrita talvez a parte menos importante do fazer literário. O ato em si é valoroso, que é por isso que escritores existem, mas há a trajetória do texto, da obra, que é escrita sempre antes de se começar a desenhar as palavras de uma frase, de um verso.
Escrever, repito, é a menor parte do trabalho. Todo momento anterior a ela é que define o ato final, a escrita-em-si.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Tive um professor na faculdade de Ciências Sociais que nos dizia que precisávamos escrever para ler, e não o contrário. Ou seja: uma vez que temos ideia sobre o assunto, devemos começar a criação. Se faltar algo, uma informação, um detalhe, um som, então vamos à pesquisa. Não sei se concordo plenamente, mas acho interessante porque escrevo no impulso: não tenho muita preocupação com a relevância social do tema ou se o que escreverei agradará estes ou aqueles leitores. Em geral, um poema muito “curtido” nas redes sociais não está entre os que eu considero que merecem mais atenção.
E poesia é essa coisa estranha, escrita com poucas palavras e sempre pretendendo dizer muitas coisas. Por muito tempo comecei meus poemas pelo fim, pelo remate, geralmente uma frase de efeito ou dois, três versos que deviam chocar o leitor. Hoje abri mão disso, acho. Inicio o poema pelo começo, não pelo fim. Assim, claro, sigo buscando aquele momento de desencontro que o remate proporciona, mas tenho me utilizado de outras possibilidades, como um mesmo poema dividido em partes. Esse recurso permite independência rítmica e sonora de cada trecho e acaba fazendo vários poemas de um, aquele que se iniciou no primeiro verso. Mesmo assim vejo que independer rítmica e sonoramente as partes permite que o poema deixe de ser previsível. Acho que isso me interessa mais do que o resto, a questão da previsibilidade. Outro dia conversava a respeito: se tudo já foi escrito, ainda não foi escrito de uma certa forma. E é essa nova forma de redizer as coisas que tem me interessado por agora.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Tem aquele trecho de Drummond: “Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta?” Sempre me escondo e me acho nesse trecho. Quando vejo que faz tempo que não escrevo algo que preste, tento refazer o trajeto em busca de um motivo para essa distância. Em geral o problema é a falta de tempo – mas não tempo para escrever, para viver mesmo, olhar em volta, catar o poema que eu sei que venho fabricando às escondidas. É falta de tempo para olhar o mundo. Com alguém sempre sem grana como eu, arranjar dinheiro é o que me ocupa a cabeça desde cedo até a hora de dormir e até a hora da insônia. Contas em atraso e barriga com fome não rendem bons poemas, não há como romantizar isso. Considero um ato de maturidade não chorar o poema não escrito. Muitas vezes fui em busca de colegas escritores, poetas, dizendo que eu tinha perdido a voz poética, perdido a maneira com as palavras. Vejo, hoje, que a voz não vai embora – relembro Carlos novamente –, mas se aquieta. Um poeta que não escreve não deixa nunca de escrever. Ele faz isso sem papel, caneta ou teclado do computador porque opera com as palavras lá dentro dele.
Isso de expectativas é interessante. Às vezes o autor não é lido com atenção e passa despercebido. Vejo isso com livros que me chegam em casa, sobre os quais há poucas ou nenhumas resenhas sobre. Fico me perguntando o que terá havido para este ou aquele livro não terem sido lidos com atenção. Eu, quando publico, sofro como o diabo! Todo o processo é de sofrimento, desde a compilação até o livro estar pronto. Depois sofro com a minha grande expectativa de resenhas, leituras, vendas. Por fim, sofro com o livro em si – porque eles nunca estão terminados, pelo menos pra mim. É quando nos distanciamos e o sofrimento deixa de incomodar. Não aprendi a lidar com isso direito. Publicar no Brasil, a partir de Santa Catarina, é quase sempre uma aventura rumo ao desconhecido tão conhecido de sempre, ou seja: é o trabalho de um autor independente que precisa dele para ser levado adiante. O resto é romantização da função de poeta, escritor, o que seja.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Um poema nunca está pronto, tampouco um texto em prosa. São caminhos diferentes, mas que se juntam nessa falta de final. A respeito dos poemas, penso que uma hora eles precisam ser deixados de lado, à espera de uma leitura posterior, de outro poeta – e um outro eu, que no momento futuro sou também outro poeta. Com exceção de Enclave, meu último livro, e do romance que estou escrevendo, meus textos são tornados públicos tão logo eu os julgue prontos. Acontece que a ferramenta de edição do Facebook me faz voltar a alguns deles depois de passadas umas horas para arrumar um verso, uma rima etc. Meus leitores de confiança, grandes e atenciosos amigos, recebem meus originais para análise à espera de seus comentários, mas nem sempre. Gosto desse contato direto e aventuresco com o leitor, gosto desse risco de publicar sem uma leitura específica antes, embora às vezes eu deixe passar erros infantis e poemas ruins que acabam sendo publicados – às vezes até em livro – por conta da minha arrogância ao pedir ajuda na leitura e na construção da antologia.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Isso é bonito, porque gosto muito de escrever à mão. Como nem sempre é possível, acabo escrevendo direto no computador ou no celular (às vezes o poema precisa de velocidade na escrita). A página que mantenho, O poema do poeta, procura expor exatamente a relação dos autores com seus textos. É sempre uma surpresa ver que autoras e autores insistem no papel, no poema manuscrito. Tenho comigo um bloquinho e uma caneta para compilar ideias, dados para o romance, versos que eu acho que mereciam um lugar ao sol, essas coisas. E muita gente tem o mesmo hábito. A tecnologia nos ajuda muitíssimo, claro, mas ver que existe o carinho da escrita lenta e rudimentar, a escrita à mão, sempre faz parecer que não somos robôs, nós que lutamos com robôs todos os dias nas redes por aí afora.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Faz um tempo, descobri que não tenho muitos assuntos sobre os quais escrever. A busca é sempre pelo novo do antigo, uma nova faceta, um novo diagnóstico sobre um tema comum. Faz um tempo caí numas de nostalgia de que não tenho conseguido me libertar. Mas penso: o que eu tenho a oferecer com isso? A infância pobre, os pais separados, o duelo entre o alemão e o português nas conversas com meus avós paternos, a ausência do pai operário e alcoólatra, a distância da mãe empregada doméstica e depressiva, os irmãos, os amigos de infância… O que tudo isso tem de novo? Talvez nada e talvez esse seja o grande barato de trabalhar os temas sobre os quais me debruço: redizer o já dito, mas redizer da minha forma, à minha maneira.
De onde venho, muito poetas tentaram descrever o que é viver num [suposto] enclave germânico em território brasileiro. Da mesma forma, muitos tentaram e tentam explicar o que é Santa Catarina, este estado reacionário e desigual. Minha busca também se pretende regional, apesar de soar regionalista. Há imagens daqui que não chegam a quem é de fora. E por se tratar de um estado de interiores, como diz Gustavo Matte, é sempre importante que não há o catarinense, mas o italiano, o alemão, o polonês que residem em Santa Catarina.
Por outro lado, há a minha experiência direta. Venho de uma família de não leitores e isso sempre me custou muito caro. Comecei a escrever antes de ler direito (depois de gastar um exemplar de Espumas Flutuantes que encontrei empoeirado no meio do lixo), embora hoje essa situação esteja contornada. Vejo imagens comoventes que acho que preciso compartilhar, a fim de que as pessoas busquem nelas próprias as suas imagens. Não falo sobre a pobreza exaltando-a, mas sobre o que pode haver de comovente no ato de as pessoas limparem os sapatos sujos de terra antes de embarcar no ônibus do subúrbio, por exemplo. São cenas corriqueiras que se repetem, mas às quais precisamos dar a devida atenção. Outro dia, numa conversa com estudantes, acho que para ganhar atenção, disse que escrevia para me vingar. Creio ser verdade também. Mas pensando com calma, vejo que não há somente vingança – mesmo porque aqueles de quem me vingaria estão cagando para poesia –, mas há o sentido do abraço. Assim, posso dizer que escrevo para me vingar e para abraçar as pessoas. E sou mais bem-sucedido na segunda do que na primeira alternativa.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Meu primeiro livro de poemas, Falações, acabou de completar dez anos de publicação. Enclave, lançado em fevereiro de 2018, é o quinto livro, o terceiro de poemas. Me valho dos dois para uma comparação. Se no Falações eu ainda buscava uma voz, essa me parece falar bem claro em Enclave. Se no Falações eu pretendia chamar atenção para o fato de ser um jovem perdido, em Enclave eu consigo ser dissimulado a ponto de as pessoas me ouvirem com atenção. As buscas, as neuroses, os medos são praticamente os mesmos. O que muda, sem dúvida, é o peso da bagagem que tratei de juntar nessa década de distância entre um e outro livro. Não quero dizer que escrevia muito mal dez anos atrás, porque é claro que isso acontecia, mas também não quero dizer que hoje eu seja um poeta pleno e saiba exatamente o que estou fazendo, porque não sei. Há semelhanças e distâncias enormes entre um livro e outro, como há similaridades constrangedoras, ou seja: muitos daqueles poemas não se repetem apenas porque já foram escritos. Então penso que existe este processo de reescrever o mesmo poema até o seu esgotamento – que não virá, eu sei – mas que sigo buscando.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um projeto que eu gostaria de fazer, que já comecei e nunca acaba é o meu livro, meu último livro, ou a síntese de tudo que já escrevi e ainda não dei jeito de dizer da melhor forma possível.
Quanto ao livro que eu gostaria de ler, tenho certeza que ele existe. Que eles existem. E certamente está para chegar pelo correio, enviado por uma amiga, um amigo, doado, vendido ou emprestado, publicado por uma editora independente ou por uma das grandes. Esses livros já existem, mas preciso sair um pouco do computador para descobri-los ali na minha estante.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Eu acho que não sei lidar com tempo livre. Mesmo enquanto escrevo um romance preciso fazer diversos outros trabalhos para conseguir dinheiro (desde revisão de trabalhos acadêmicos a edição de livros, desde leitura revisão crítica de livros a algum eventual ghost-writing que me aparece), então me acostumei com a bagunça. Sorte é ter tempo e tranquilidade para escrever o que eu quero. Em geral, é tudo ao mesmo tempo.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Cada projeto é um projeto, então acho que não é possível responder genericamente. Paraízo-Paraguay foi escrito sem projeto. Eu sabia de onde partir, mas não tinha ideia de onde chegar. Talvez isso tenha a ver com o fato de ser um romance de memória mais que um romance histórico. Mesmo a questão da Guerra do Paraguay foi surgindo na história conforme ela era escrita. Três porcos, meu segundo romance, já foi bem melhor planejado. Desde o início, eu sabia onde queria chegar, sabia que o romance culminaria na vingança do personagem, e precisava guiar a história até aquele final. Na verdade, escrevo sem fórmula. Como cada projeto é único, e é preciso saber que estratégia utilizar em sua escrita.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Escrevo no meu “escritório”, que é também a sala de estar do meu apartamento. Como não há mais cômodos além do quarto e da cozinha, preciso escrever aqui, não tenho saída. Gosto de ouvir música enquanto escrevo. Mas também depende. Tenho pra mim que há momentos distintos na escrita de um romance. Há momentos que exigem muita concentração, e durante a escrita desses prefiro o silêncio. São aqueles momentos gozosos, quando eu penso que estou escrevo algo importante. E há os momentos de escrita protocolar, como chamo, que são os caminhos que a história toma até alcançar novamente um ápice, outro gozo, e nesses momentos gosto da distração da música.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
A técnica mais importante é lidar com a culpa. Tenho formação cristã protestante. A culpa, aqui, sempre tem a ver com trabalho: é preciso trabalhar, é preciso trabalhar, é preciso trabalhar… Para lidar com isso, passei a pensar que mesmo quando não estou trabalhando de fato, ou seja, sentado à mesa escrevendo, estou juntando material para escrever. E isso vai além de ler, pesquisar, imaginar que rumos tomar na história. Enquanto escritor, e talvez por conta da poesia, decidi que estou trabalhando mesmo que esteja distante do texto. Porque descobri (ou passei a acreditar) que o momento final de escrita, quando sento diante do computador para digitar palavras, ocupa o menor tempo na construção da história. O romance acontece durante o dia, enquanto vou ao mercado, aos correios, ao banco; enquanto caminho a esmo pelo centro da cidade; enquanto encontro um amigo para tomar café. Nesses momentos todos, estou pensando no que escrevo, ainda que não tenha consciência disso no momento. Mas enquanto não estou de fato escrevendo, estou pensando nele (ou minha cabeça está), e se há algo ainda não resolvido a respeito do que fazer ou do que evitar, não é preciso ficar somente diante do computador encarando o texto. É possível deixar o texto quieto e ir fazer outras coisas, porque a cabeça, essa nunca se aquieta.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Depende o tipo de trabalho de que falamos. Paraízo-Paraguay deu trabalho no encadeamento das épocas, na continuidade de personagens, nos registros de épocas distintas, pois se trata de uma história que percorre mais de 130 anos. Então foram muitas anotações, muitos cálculos, muita coisa reescrita porque havia calculado mal a idade de uma personagem em tal e tal momento. Três porcos, por sua vez, me custou a sanidade. Diferente de Paraízo-Paraguay, Três porcos é um romance confessional, uma autoficção em que são debatidos temas como a formação da masculinidade num homem abusado sexualmente quando criança e a formulação de uma possível vingança contra seus abusadores. A escrita de Três porcos quase me custou minha sanidade, porque me levou a situações das quais eu consegui me manter distante por todos esses anos. No entanto, precisava falar sobre isso, precisava desenterrar esses fantasmas. Então, novamente, cada romance é um romance; aqui, falo de dois livros complemente diferentes tanto em linguagem como em propósito. Acho que me orgulho dos dois por razões distintas: Paraízo-Paraguay não fala por mim, mas por um povo, representa os descendentes de teuto-brasileiros e suas famílias, traz à tona questões caras ao conservadorismo sulista, como a escravidão, o genocídio indígena, a pobreza e a ignorância desse povo de olhos azuis, e ainda a participação de imigrantes na Guerra do Paraguay. Já Três porcos fala de pedofilia e vingança, e representa muitas pessoas abusadas durante a infância, homens e mulheres, e que tiveram suas vidas esculhambadas por isso. São pesos diferentes, são trabalhos diferentes, e são diferentes formas de orgulho.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Antes, penso se vale a pena. Se terá algum valor para além do meu ego. Se ensinará algo a alguém. Se poderá servir para um encontro ou se poderá permitir uma busca por quem o ler. A partir disso, dessa “descoberta” (o livro servirá para isso ou aquilo) empreendo a escritura já sem pensar onde quero chegar, porque o que de maior existe por trás do livro já está definido. Então, não escrevo em busca de algo, pois esse algo já foi pré-definido. O que não quer dizer que o livro se limite ao que eu defini previamente como um objetivo. Às vezes, ocorre de o livro alcançar outros lugares, e isso passa também pela experiência de leitura que se faz dele, depois.
O leitor ideal sou eu mesmo, em geral. Primeiro, porque minha autocrítica e minha insegurança quase me fazem desistir de meus projetos enquanto eles ainda estão em andamento. Então escrevo para mim, pensando se eu gostaria de ler aquilo que vai ali sendo escrito, se seria uma boa experiência de leitura. Não quer dizer que ignore as pessoas à minha volta, mas o papel delas virá depois, quando o livro começar a ser lido ainda no original, e criticado, e revisado. No momento do ato, prefiro não pensar em quem não está aqui. E quem está aqui sou sempre eu.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Depois da última palavra, no primeiro final. Digo “primeiro” porque o texto nunca fica pronto, sempre há o que refazer, reescrever, editar etc. Mas há um cansaço aí, também. Então quando coloco o ponto final no que me parece ser o último capítulo, sinto segurança para mostrar a primeira versão a amigas e amigos escritores (que vou nominar por amor e respeito: Amanda Vital, Daiane Oliveira, Caio Augusto Leite, Carlos Henrique Schroeder, Eduardo Sens, Gustavo Matte, Juliana Maffeis, Matheus Guménin Barreto e Rodrigo Sarubbi, principalmente).
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Eu escrevo desde cedo, publiquei meu primeiro livro de poemas em 2008. Comecei a escrever “profissionalmente” quando vim morar em Florianópolis; primeiro, escrevendo memoriais familiares sob encomenda. Depois foi que comecei a escrever Paraízo-Paraguay e, em dado momento, quando não tinha dinheiro para o aluguel ou as contas todas e continuei escrevendo o livro, foi ali que vi que tinha virado mesmo escritor. Como se se tratasse de uma decisão diante da vida, algo como “ou arrumo um emprego formal, de carteira assinada, ou termino de escrever essa história”. Terminei de escrever o livro, montei minha editora, e agora vivo de ler, editar, revisar e escrever – quando sobra tempo para isso.
O que ninguém me contou é que o glamour em torno da literatura é uma farsa; não há nada de sublime, como faz crer certa parcela blasé de escritoras e escritores. A escritura é uma profissão como as outras. Tem suas peculiaridades, claro, mas tem suas dificuldades também. E disso, das dificuldades, pouca gente fala ou tem coragem de assumir.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Diz Marcelo Mirisola em uma entrevista ao Antonio Abujamra que é preciso permitir que autoras e autores que lemos e de quem gostamos falem através de nós, naturalmente, porque em algum momento essas vozes vão silenciando, e o que resta é o nós mesmos temos a dizer. Acredito nisso. Tanto que enquanto escrevo meus livros não leio nada parecido com o que estou escrevendo. Prefiro ler outras coisas, em outras linguagens – porque ler é necessário, sempre –, para que essa leitura não interfira diretamente no meu processo de escrita. Trago comigo os autores que me formaram enquanto leitor: Sartre, Camus, Saramago, García Márquez, Cony, Godofredo de Oliveira Neto e o próprio Mirisola; mas também trago os nomes de escritoras e escritores que me formam ainda, porque essa constituição não termina nunca: Amanda Vital, Samantha Abreu, Anne Karine, Maria Valéria Rezende, Micheliny Verunschk, Mar Becker, Gustavo Matte, Caio Augusto Leite, Marcelo Pierotti, Matheus Guménin Barreto e mais um monte de gente importante.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Desde que terminei a leitura de Do lado de dentro do mar (Patuá), de Daniela Stoll, tenho exigido que as pessoas à minha volta o leiam. Este é o romance de estreia de Daniela e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2019. É um livro de estreia de uma autora que parece fazer isso há muito, muito tempo. Também tenho dito às pessoas para lerem Coração fodido (Caiaponte), do poeta Heyk Pimenta. Sobre o Heyk, de quem sou fã, nem falo nada. Mas sobre o livro que ajudei a editar, esse Coração fodido, morro de orgulho de tê-lo ajudado a vir ao mundo.