Como eu escrevo

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Como escreve Marcelo Labes

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Marcelo Labes é escritor, autor de Falações [2008], Porque sim não é resposta [2015], O filho da empregada [2016], Trapaça [2016] e Enclave [2018].

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?

Não consigo decidir se gosto das manhãs, e essa é uma luta que vem de anos e não parece perto de terminar. Houve um tempo dolorido em que me aterrorizava ver o amanhecer, porque não dormia e o dia seguinte não prometia muita novidade. Nos nove anos de funcionário público foi a mesma coisa. Não que não goste do dia, mas há esse nascer de novo que me custa muito. Sofro de insônia e penso que da mesma forma como o insone foge dessa morte cotidiana – e com isso me identifico muito, sobretudo se tenho algo sobre o que escrever e não consegui concluir a ideia ainda –, da mesma forma eu me recuso a renascer na manhã seguinte. Então não é possível haver rotina matinal para quem foge das manhãs. Mas se acontecer, mesmo por acidente, essa manhã será regada a café e terá um cheiro rançoso de cigarro, meu próprio cheiro.

Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?

Eu ainda não descobri como os poemas surgem, embora investigue isso pessoalmente já há alguns anos. Não gosto muito da visão proto-kardecista do poeta como um canal para as palavras de além-mundo. Então o que faço melhor durante o dia é colecionar incômodos – que podem ser linguísticos (um encontro consonantal, um ditongo aberto, uma cacofonia que me chamou atenção) e podem ser imagéticos, políticos, existenciais e da ordem do dia. Coleciono esses incômodos sem escrever sobre e deixo para o momento do gancho, quando a estrutura me surge, principalmente o ritmo, então coloco no papel tudo aquilo que eu vinha guardando. Se o incômodo resistiu ao tempo que ficou guardado, então ele merecia estar no poema.

Essa prática não é vivida por mim apenas como poeta. Ultimamente tenho tido a experiência de escrever um romance e vejo que a coleção de incômodos permanece, embora a prática seja outra. De qualquer forma, a preparação se dá na espera. Eu vivo de colecionar imagens, sons, palavras, angústias e neuroses, e seria fácil por tudo isso pra fora. No entanto, deixo ali fermentando. Uma hora estoura. E quando isso acontece é que surge o texto.

Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?

Uma vez, eu era guri, escrevi uma carta a um grande poeta. Dentro do envelope eu mandei um conto de minha autoria chamado “O fato”, e era uma história boba de amor que resiste à morte etc. O poeta me respondeu dizendo que havia visto qualidade naquele texto, mas que eu precisava praticar mais. Desde então a literatura tem ocupado meus dias de diversas formas, seja lendo, matutando versos, encaixando o roteiro de uma história a marretadas, mas ainda pensando e, por fim, escrevendo. Considero a escrita talvez a parte menos importante do fazer literário. O ato em si é valoroso, que é por isso que escritores existem, mas há a trajetória do texto, da obra, que é escrita sempre antes de se começar a desenhar as palavras de uma frase, de um verso.

Escrever, repito, é a menor parte do trabalho. Todo momento anterior a ela é que define o ato final, a escrita-em-si.

Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?

Tive um professor na faculdade de Ciências Sociais que nos dizia que precisávamos escrever para ler, e não o contrário. Ou seja: uma vez que temos ideia sobre o assunto, devemos começar a criação. Se faltar algo, uma informação, um detalhe, um som, então vamos à pesquisa. Não sei se concordo plenamente, mas acho interessante porque escrevo no impulso: não tenho muita preocupação com a relevância social do tema ou se o que escreverei agradará estes ou aqueles leitores. Em geral, um poema muito “curtido” nas redes sociais não está entre os que eu considero que merecem mais atenção.

E poesia é essa coisa estranha, escrita com poucas palavras e sempre pretendendo dizer muitas coisas. Por muito tempo comecei meus poemas pelo fim, pelo remate, geralmente uma frase de efeito ou dois, três versos que deviam chocar o leitor. Hoje abri mão disso, acho. Inicio o poema pelo começo, não pelo fim. Assim, claro, sigo buscando aquele momento de desencontro que o remate proporciona, mas tenho me utilizado de outras possibilidades, como um mesmo poema dividido em partes. Esse recurso permite independência rítmica e sonora de cada trecho e acaba fazendo vários poemas de um, aquele que se iniciou no primeiro verso. Mesmo assim vejo que independer rítmica e sonoramente as partes permite que o poema deixe de ser previsível. Acho que isso me interessa mais do que o resto, a questão da previsibilidade. Outro dia conversava a respeito: se tudo já foi escrito, ainda não foi escrito de uma certa forma. E é essa nova forma de redizer as coisas que tem me interessado por agora.

Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?

Tem aquele trecho de Drummond: “Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta?” Sempre me escondo e me acho nesse trecho. Quando vejo que faz tempo que não escrevo algo que preste, tento refazer o trajeto em busca de um motivo para essa distância. Em geral o problema é a falta de tempo – mas não tempo para escrever, para viver mesmo, olhar em volta, catar o poema que eu sei que venho fabricando às escondidas. É falta de tempo para olhar o mundo. Com alguém sempre sem grana como eu, arranjar dinheiro é o que me ocupa a cabeça desde cedo até a hora de dormir e até a hora da insônia. Contas em atraso e barriga com fome não rendem bons poemas, não há como romantizar isso. Considero um ato de maturidade não chorar o poema não escrito. Muitas vezes fui em busca de colegas escritores, poetas, dizendo que eu tinha perdido a voz poética, perdido a maneira com as palavras. Vejo, hoje, que a voz não vai embora – relembro Carlos novamente –, mas se aquieta. Um poeta que não escreve não deixa nunca de escrever. Ele faz isso sem papel, caneta ou teclado do computador porque opera com as palavras lá dentro dele.

Isso de expectativas é interessante. Às vezes o autor não é lido com atenção e passa despercebido. Vejo isso com livros que me chegam em casa, sobre os quais há poucas ou nenhumas resenhas sobre. Fico me perguntando o que terá havido para este ou aquele livro não terem sido lidos com atenção. Eu, quando publico, sofro como o diabo! Todo o processo é de sofrimento, desde a compilação até o livro estar pronto. Depois sofro com a minha grande expectativa de resenhas, leituras, vendas. Por fim, sofro com o livro em si – porque eles nunca estão terminados, pelo menos pra mim. É quando nos distanciamos e o sofrimento deixa de incomodar. Não aprendi a lidar com isso direito. Publicar no Brasil, a partir de Santa Catarina, é quase sempre uma aventura rumo ao desconhecido tão conhecido de sempre, ou seja: é o trabalho de um autor independente que precisa dele para ser levado adiante. O resto é romantização da função de poeta, escritor, o que seja.

Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?

Um poema nunca está pronto, tampouco um texto em prosa. São caminhos diferentes, mas que se juntam nessa falta de final. A respeito dos poemas, penso que uma hora eles precisam ser deixados de lado, à espera de uma leitura posterior, de outro poeta – e um outro eu, que no momento futuro sou também outro poeta. Com exceção de Enclave, meu último livro, e do romance que estou escrevendo, meus textos são tornados públicos tão logo eu os julgue prontos. Acontece que a ferramenta de edição do Facebook me faz voltar a alguns deles depois de passadas umas horas para arrumar um verso, uma rima etc. Meus leitores de confiança, grandes e atenciosos amigos, recebem meus originais para análise à espera de seus comentários, mas nem sempre. Gosto desse contato direto e aventuresco com o leitor, gosto desse risco de publicar sem uma leitura específica antes, embora às vezes eu deixe passar erros infantis e poemas ruins que acabam sendo publicados – às vezes até em livro – por conta da minha arrogância ao pedir ajuda na leitura e na construção da antologia.

Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?

Isso é bonito, porque gosto muito de escrever à mão. Como nem sempre é possível, acabo escrevendo direto no computador ou no celular (às vezes o poema precisa de velocidade na escrita). A página que mantenho, O poema do poeta, procura expor exatamente a relação dos autores com seus textos. É sempre uma surpresa ver que autoras e autores insistem no papel, no poema manuscrito. Tenho comigo um bloquinho e uma caneta para compilar ideias, dados para o romance, versos que eu acho que mereciam um lugar ao sol, essas coisas. E muita gente tem o mesmo hábito. A tecnologia nos ajuda muitíssimo, claro, mas ver que existe o carinho da escrita lenta e rudimentar, a escrita à mão, sempre faz parecer que não somos robôs, nós que lutamos com robôs todos os dias nas redes por aí afora.

De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?

Faz um tempo, descobri que não tenho muitos assuntos sobre os quais escrever. A busca é sempre pelo novo do antigo, uma nova faceta, um novo diagnóstico sobre um tema comum. Faz um tempo caí numas de nostalgia de que não tenho conseguido me libertar. Mas penso: o que eu tenho a oferecer com isso? A infância pobre, os pais separados, o duelo entre o alemão e o português nas conversas com meus avós paternos, a ausência do pai operário e alcoólatra, a distância da mãe empregada doméstica e depressiva, os irmãos, os amigos de infância… O que tudo isso tem de novo? Talvez nada e talvez esse seja o grande barato de trabalhar os temas sobre os quais me debruço: redizer o já dito, mas redizer da minha forma, à minha maneira.

De onde venho, muito poetas tentaram descrever o que é viver num [suposto] enclave germânico em território brasileiro. Da mesma forma, muitos tentaram e tentam explicar o que é Santa Catarina, este estado reacionário e desigual. Minha busca também se pretende regional, apesar de soar regionalista. Há imagens daqui que não chegam a quem é de fora. E por se tratar de um estado de interiores, como diz Gustavo Matte, é sempre importante que não há o catarinense, mas o italiano, o alemão, o polonês que residem em Santa Catarina.

Por outro lado, há a minha experiência direta. Venho de uma família de não leitores e isso sempre me custou muito caro. Comecei a escrever antes de ler direito (depois de gastar um exemplar de Espumas Flutuantes que encontrei empoeirado no meio do lixo), embora hoje essa situação esteja contornada. Vejo imagens comoventes que acho que preciso compartilhar, a fim de que as pessoas busquem nelas próprias as suas imagens. Não falo sobre a pobreza exaltando-a, mas sobre o que pode haver de comovente no ato de as pessoas limparem os sapatos sujos de terra antes de embarcar no ônibus do subúrbio, por exemplo. São cenas corriqueiras que se repetem, mas às quais precisamos dar a devida atenção. Outro dia, numa conversa com estudantes, acho que para ganhar atenção, disse que escrevia para me vingar. Creio ser verdade também. Mas pensando com calma, vejo que não há somente vingança – mesmo porque aqueles de quem me vingaria estão cagando para poesia –, mas há o sentido do abraço. Assim, posso dizer que escrevo para me vingar e para abraçar as pessoas. E sou mais bem-sucedido na segunda do que na primeira alternativa.

O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?

Meu primeiro livro de poemas, Falações, acabou de completar dez anos de publicação. Enclave, lançado em fevereiro de 2018, é o quinto livro, o terceiro de poemas. Me valho dos dois para uma comparação. Se no Falações eu ainda buscava uma voz, essa me parece falar bem claro em Enclave. Se no Falações eu pretendia chamar atenção para o fato de ser um jovem perdido, em Enclave eu consigo ser dissimulado a ponto de as pessoas me ouvirem com atenção. As buscas, as neuroses, os medos são praticamente os mesmos. O que muda, sem dúvida, é o peso da bagagem que tratei de juntar nessa década de distância entre um e outro livro. Não quero dizer que escrevia muito mal dez anos atrás, porque é claro que isso acontecia, mas também não quero dizer que hoje eu seja um poeta pleno e saiba exatamente o que estou fazendo, porque não sei. Há semelhanças e distâncias enormes entre um livro e outro, como há similaridades constrangedoras, ou seja: muitos daqueles poemas não se repetem apenas porque já foram escritos. Então penso que existe este processo de reescrever o mesmo poema até o seu esgotamento – que não virá, eu sei – mas que sigo buscando.

Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?

Um projeto que eu gostaria de fazer, que já comecei e nunca acaba é o meu livro, meu último livro, ou a síntese de tudo que já escrevi e ainda não dei jeito de dizer da melhor forma possível.

Quanto ao livro que eu gostaria de ler, tenho certeza que ele existe. Que eles existem. E certamente está para chegar pelo correio, enviado por uma amiga, um amigo, doado, vendido ou emprestado, publicado por uma editora independente ou por uma das grandes. Esses livros já existem, mas preciso sair um pouco do computador para descobri-los ali na minha estante.

* Entrevista publicada originalmente em 20 de agosto de 2018, no comoeuescrevo.com (@comoeuescrevo).

Arquivado em: Entrevistas

Sobre o editor

José Nunes é editor da Colenda.

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