Marcelo Labes é poeta e escritor, autor de “Paraízo-Paraguay” (Caiaponte, 2019), romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura em 2020.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Eu acho que não sei lidar com tempo livre. Mesmo enquanto escrevo um romance preciso fazer diversos outros trabalhos para conseguir dinheiro (desde revisão de trabalhos acadêmicos a edição de livros, desde leitura revisão crítica de livros a algum eventual ghost-writing que me aparece), então me acostumei com a bagunça. Sorte é ter tempo e tranquilidade para escrever o que eu quero. Em geral, é tudo ao mesmo tempo.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Cada projeto é um projeto, então acho que não é possível responder genericamente. Paraízo-Paraguay foi escrito sem projeto. Eu sabia de onde partir, mas não tinha ideia de onde chegar. Talvez isso tenha a ver com o fato de ser um romance de memória mais que um romance histórico. Mesmo a questão da Guerra do Paraguay foi surgindo na história conforme ela era escrita. Três porcos, meu segundo romance, já foi bem melhor planejado. Desde o início, eu sabia onde queria chegar, sabia que o romance culminaria na vingança do personagem, e precisava guiar a história até aquele final. Na verdade, escrevo sem fórmula. Como cada projeto é único, e é preciso saber que estratégia utilizar em sua escrita.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Escrevo no meu “escritório”, que é também a sala de estar do meu apartamento. Como não há mais cômodos além do quarto e da cozinha, preciso escrever aqui, não tenho saída. Gosto de ouvir música enquanto escrevo. Mas também depende. Tenho pra mim que há momentos distintos na escrita de um romance. Há momentos que exigem muita concentração, e durante a escrita desses prefiro o silêncio. São aqueles momentos gozosos, quando eu penso que estou escrevo algo importante. E há os momentos de escrita protocolar, como chamo, que são os caminhos que a história toma até alcançar novamente um ápice, outro gozo, e nesses momentos gosto da distração da música.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
A técnica mais importante é lidar com a culpa. Tenho formação cristã protestante. A culpa, aqui, sempre tem a ver com trabalho: é preciso trabalhar, é preciso trabalhar, é preciso trabalhar… Para lidar com isso, passei a pensar que mesmo quando não estou trabalhando de fato, ou seja, sentado à mesa escrevendo, estou juntando material para escrever. E isso vai além de ler, pesquisar, imaginar que rumos tomar na história. Enquanto escritor, e talvez por conta da poesia, decidi que estou trabalhando mesmo que esteja distante do texto. Porque descobri (ou passei a acreditar) que o momento final de escrita, quando sento diante do computador para digitar palavras, ocupa o menor tempo na construção da história. O romance acontece durante o dia, enquanto vou ao mercado, aos correios, ao banco; enquanto caminho a esmo pelo centro da cidade; enquanto encontro um amigo para tomar café. Nesses momentos todos, estou pensando no que escrevo, ainda que não tenha consciência disso no momento. Mas enquanto não estou de fato escrevendo, estou pensando nele (ou minha cabeça está), e se há algo ainda não resolvido a respeito do que fazer ou do que evitar, não é preciso ficar somente diante do computador encarando o texto. É possível deixar o texto quieto e ir fazer outras coisas, porque a cabeça, essa nunca se aquieta.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Depende o tipo de trabalho de que falamos. Paraízo-Paraguay deu trabalho no encadeamento das épocas, na continuidade de personagens, nos registros de épocas distintas, pois se trata de uma história que percorre mais de 130 anos. Então foram muitas anotações, muitos cálculos, muita coisa reescrita porque havia calculado mal a idade de uma personagem em tal e tal momento. Três porcos, por sua vez, me custou a sanidade. Diferente de Paraízo-Paraguay, Três porcos é um romance confessional, uma autoficção em que são debatidos temas como a formação da masculinidade num homem abusado sexualmente quando criança e a formulação de uma possível vingança contra seus abusadores. A escrita de Três porcos quase me custou minha sanidade, porque me levou a situações das quais eu consegui me manter distante por todos esses anos. No entanto, precisava falar sobre isso, precisava desenterrar esses fantasmas. Então, novamente, cada romance é um romance; aqui, falo de dois livros complemente diferentes tanto em linguagem como em propósito. Acho que me orgulho dos dois por razões distintas: Paraízo-Paraguay não fala por mim, mas por um povo, representa os descendentes de teuto-brasileiros e suas famílias, traz à tona questões caras ao conservadorismo sulista, como a escravidão, o genocídio indígena, a pobreza e a ignorância desse povo de olhos azuis, e ainda a participação de imigrantes na Guerra do Paraguay. Já Três porcos fala de pedofilia e vingança, e representa muitas pessoas abusadas durante a infância, homens e mulheres, e que tiveram suas vidas esculhambadas por isso. São pesos diferentes, são trabalhos diferentes, e são diferentes formas de orgulho.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Antes, penso se vale a pena. Se terá algum valor para além do meu ego. Se ensinará algo a alguém. Se poderá servir para um encontro ou se poderá permitir uma busca por quem o ler. A partir disso, dessa “descoberta” (o livro servirá para isso ou aquilo) empreendo a escritura já sem pensar onde quero chegar, porque o que de maior existe por trás do livro já está definido. Então, não escrevo em busca de algo, pois esse algo já foi pré-definido. O que não quer dizer que o livro se limite ao que eu defini previamente como um objetivo. Às vezes, ocorre de o livro alcançar outros lugares, e isso passa também pela experiência de leitura que se faz dele, depois.
O leitor ideal sou eu mesmo, em geral. Primeiro, porque minha autocrítica e minha insegurança quase me fazem desistir de meus projetos enquanto eles ainda estão em andamento. Então escrevo para mim, pensando se eu gostaria de ler aquilo que vai ali sendo escrito, se seria uma boa experiência de leitura. Não quer dizer que ignore as pessoas à minha volta, mas o papel delas virá depois, quando o livro começar a ser lido ainda no original, e criticado, e revisado. No momento do ato, prefiro não pensar em quem não está aqui. E quem está aqui sou sempre eu.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Depois da última palavra, no primeiro final. Digo “primeiro” porque o texto nunca fica pronto, sempre há o que refazer, reescrever, editar etc. Mas há um cansaço aí, também. Então quando coloco o ponto final no que me parece ser o último capítulo, sinto segurança para mostrar a primeira versão a amigas e amigos escritores (que vou nominar por amor e respeito: Amanda Vital, Daiane Oliveira, Caio Augusto Leite, Carlos Henrique Schroeder, Eduardo Sens, Gustavo Matte, Juliana Maffeis, Matheus Guménin Barreto e Rodrigo Sarubbi, principalmente).
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Eu escrevo desde cedo, publiquei meu primeiro livro de poemas em 2008. Comecei a escrever “profissionalmente” quando vim morar em Florianópolis; primeiro, escrevendo memoriais familiares sob encomenda. Depois foi que comecei a escrever Paraízo-Paraguay e, em dado momento, quando não tinha dinheiro para o aluguel ou as contas todas e continuei escrevendo o livro, foi ali que vi que tinha virado mesmo escritor. Como se se tratasse de uma decisão diante da vida, algo como “ou arrumo um emprego formal, de carteira assinada, ou termino de escrever essa história”. Terminei de escrever o livro, montei minha editora, e agora vivo de ler, editar, revisar e escrever – quando sobra tempo para isso.
O que ninguém me contou é que o glamour em torno da literatura é uma farsa; não há nada de sublime, como faz crer certa parcela blasé de escritoras e escritores. A escritura é uma profissão como as outras. Tem suas peculiaridades, claro, mas tem suas dificuldades também. E disso, das dificuldades, pouca gente fala ou tem coragem de assumir.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Diz Marcelo Mirisola em uma entrevista ao Antonio Abujamra que é preciso permitir que autoras e autores que lemos e de quem gostamos falem através de nós, naturalmente, porque em algum momento essas vozes vão silenciando, e o que resta é o nós mesmos temos a dizer. Acredito nisso. Tanto que enquanto escrevo meus livros não leio nada parecido com o que estou escrevendo. Prefiro ler outras coisas, em outras linguagens – porque ler é necessário, sempre –, para que essa leitura não interfira diretamente no meu processo de escrita. Trago comigo os autores que me formaram enquanto leitor: Sartre, Camus, Saramago, García Márquez, Cony, Godofredo de Oliveira Neto e o próprio Mirisola; mas também trago os nomes de escritoras e escritores que me formam ainda, porque essa constituição não termina nunca: Amanda Vital, Samantha Abreu, Anne Karine, Maria Valéria Rezende, Micheliny Verunschk, Mar Becker, Gustavo Matte, Caio Augusto Leite, Marcelo Pierotti, Matheus Guménin Barreto e mais um monte de gente importante.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Desde que terminei a leitura de Do lado de dentro do mar (Patuá), de Daniela Stoll, tenho exigido que as pessoas à minha volta o leiam. Este é o romance de estreia de Daniela e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2019. É um livro de estreia de uma autora que parece fazer isso há muito, muito tempo. Também tenho dito às pessoas para lerem Coração fodido (Caiaponte), do poeta Heyk Pimenta. Sobre o Heyk, de quem sou fã, nem falo nada. Mas sobre o livro que ajudei a editar, esse Coração fodido, morro de orgulho de tê-lo ajudado a vir ao mundo.