Marcelo Ariel é escritor, autor de Com o daimon no contrafluxo (Patuá, 2016).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa com o estabelecimento das fronteiras desguarnecidas entre o mundo dos sonhos e o nosso mundo, todos nós temos essa dupla vida e podemos ser agentes duplos do mundo onírico, que me parece ser a fonte de muitos poemas que escrevi. A escrita para mim deve se aproximar do transe do sonhar. Tenho uma disciplina que se relaciona com isso, pratico contemplação ativa do mundo e da natureza, esta é a energia que engendra o processo de sair da frente do poema.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu gosto muito de escrever durante a madrugada, gosto desse torpor da insônia, de caminhar com a potência de um semissilêncio e de um semivazio. Escrevo anotando mentalmente e deixando o texto mental se aproximar da lembrança de um sonho e depois faço uma espécie de lapidação com a memória. O processo de escrita é para mim uma reescrita do que já foi elaborado mentalmente antes. É um trabalho de escuta da interioridade pensada exteriormente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
O meu tempo, o tempo que uso para escrever, não é o tempo cronológico, às vezes meu dia noturno de escrita dura uma semana no tempo cronológico, é um tempo elíptico e onírico, mas não entro no autismo, é exatamente o oposto disso. Como me mantenho acordado, é como um prolongamento da lucidez diante do vazio de um outro tempo, mais orgânico e que aceita o caos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meus primeiros livros se alimentavam de notas de um caderno, mas com o tempo percebi nisto um comportamento cênico que convocava a um eterno retorno de temas e criação de um estilo controlável e permanente. Hoje me interesso mais pela metamorfose e pela mestiçagem, por uma metafísica da mistura no ato de escrever e não anoto praticamente nada, embora escreva mentalmente e depois trabalhe este conteúdo mental como quem tenta anotar os sonhos. Quando digo mestiçagem quero dizer um hibridismo como método, hibridismo entre os processos de pensamento filosófico e poético.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Estou escrevendo uma novela chamada Breu Sufinambà que, de certo modo, foi sonhada primeiro e depois pensada como um ensaio e a seguir trabalhada como se fosse ficção, tento criar algo híbrido de poema, ficção e ensaio, a ficção abarca tudo o que existe como uma malha, um véu e retirar esse véu ou costurá-lo com outros tecidos é uma das minhas ambições. A trava como você a chama é parte do processo, procuro me mover na direção do vazio e tento na maior parte do tempo não escrever, o fracasso da tentativa resulta em diversas notas que forma um livro, mas, repito, o que me interessa é sonhar e não escrever, e não existem travas para o sonho, mesmo na insônia sonhamos de algum modo, de um modo sutil.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não reviso meus textos e considero o erro parte importante deles. Gosto de publicar esboços no meu blog Teatrofantasma e em outros blogs que mantenho.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo direto no computador, é algo que aproxima meus textos do sonho e, no sentido mais pragmático, os arquivos ficam prontos para serem enviados para os coletores (editores).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Sou como um DJ, minhas ideias vêm de diversas fontes híbridas. Concebo a escrita como a criação de uma tessitura mestiça de realidades diversas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
O que mudou é que confio cada vez mais na improvisação intuitiva como forma de chegar a um frescor do pensamento por trás do poema e do ensaio e cada vez menos na memória. A experimentação é o que me move. Parto da palavra para a não-palavra e depois de volta até a palavra, desta vez modificada de algum modo pela não-palavra. Assim, existem nos textos que se escrevem por mim, muitas linhas de força.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Há anos penso em escrever uma refutação das Cartas a favor da escravidão, de José de Alencar e uma Crítica da razão mística, que será uma continuidade da Crítica da razão negra, de Achille Mbembe.