Marcelo Adifa é jornalista e roteirista, autor de Exílio e Saltar Vazio.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acredito que nunca tive uma rotina definida. Sempre fui errático em meus horários e hábitos e isso acaba influenciando e inundando a minha produção. Com o tempo e o aparecimento de problemas de saúde, acabei me apegando a um único elemento como obrigatório aos meus dias – e com horário definido. Começo, portanto, meu acordar, tateando prateleiras atrás dos comprimidos para hipertensão, sem os quais beiro o fundo do poço durante horas. Sou um escritor levado ao caos não pela bebida ou as drogas. Aliás, quase não bebo e nunca fumei. Minha família já fez isso por mim. Pai e tios fumantes, alcoólatras e drogados já cumpriram a nossa cota de vícios nesse plano. Vivo de observar o ambiente, as ações e passos dos outros. Sentir e imaginar as pessoas e coisas se movendo sem pressa. Um escritor é isso; o observar do que vive e o viver através dos outros.
Durmo pouco, acordo cedo para produzir conteúdo para o jornal do meio dia de uma grande emissora de rádio. Pelo hábito, tenho conseguido acabar cada vez mais rápido, o que deixa o restante do dia livre para minhas outras atividades. De certa forma, literalmente vivo da escrita, da produção de conteúdo jornalístico, de roteiros para comerciais, campanhas políticas, enfim, tudo o que dependa de uma estrutura de texto enquanto alicerce. A literatura é a parte de mim que sangra, mas financeiramente ainda não ocupa parcela fundamental das minhas finanças.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu separo a minha produção literária, feita com prazer e necessidade de expressão, da outra, a profissional, feita sob encomenda. Para os textos jornalísticos, os roteiros publicitários e as campanhas, não existem horários. Trabalho quando e enquanto me pagam, operário que sou, cumpridor de prazos e acenos. Já para a produção literária acredito que trabalho melhor de madrugada, em que o único barulho seja o meu pensamento ou algum filme na televisão. Preciso de barulho, mas que seja um ruído aceitável, oportuno, como se o som me ligasse a outra dimensão. Uma inquietação como a que procuro produzir a cada texto. Palavra vazia não tem razão de ser. Assim é com tudo o que tenha forma de texto. Livro que não dialoga com o leitor não precisava ter sido escrito e não poderia ter sido editado e publicado nunca. Levo isso para minha produção, para as poesias, contos e romances, para a edição das revistas Chorume (Chorume Brasil! e Chorume Futebol) que faço com o Astier Basílio; Luciano Portela, Giordano Andriola, Samuel Malentacchi, Bruno Sanctus e uma porção de colaboradores geniais como o Fernando Chuí, de quem sempre fui muito fã – é dos artistas mais completos do Brasil, do talentoso Raphael Borges, e outros que vão chegando na caminhada.
Embora eu prefira a madrugada, escrevo em outros horários. Sou apenas um condutor da palavra, assim que ela bate à porta eu abro o caminho e a deixo livre. Não há preparação específica, não faço massagens, não tomo leite ou cerveja, não mergulho no crack ou em drogas baratas. Apenas deixo que a escrita possa fluir. Já fiquei dias, semanas, sem produzir um poema e já despejei um livro inteiro, indigesto como o Exílio, considerado um soco no estômago, em apenas alguns dias. Em alguns momentos a literatura escolhe ser acúmulo. Escrevemos no amor, na dor, no ódio. É quando estamos cheios que explodimos. Isso pode ser notado facilmente. O leitor nota, não é tolo. Percebe quando o escritor brinca de fazer poeminhas para obter curtidas nas redes sociais e quando ele pariu de fato, com todas as dores e alegrias de um descobrimento, um novo material. Não importa se o texto é sujo, áspero. Vale a dor e satisfação, aquela sanha insaciável de nos livrarmos de nossas inquietações.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo enquanto for requisitado pela palavra, enquanto for escravo do verbo. Não há meta diária, mas sempre procuro escrever. Literatura é exercício prático, tanto a leitura quanto a escrita. Enquanto escrevo sou abduzido para uma outra realidade; dimensão dos seres estranhos a quem a sociedade chama de escritores. Geralmente escrevo muito mais do que consigo publicar. Aqui destaco a generosidade da Editora Penalux em me acolher até agora. Tenho três livros publicados com eles, ao menos mais três novelas prontas, e uns oito livros que vou escrevendo aos poucos, intercalando, um dia no projeto tal, noutro mudo de livro e assim vamos. Faço isso para não me cansar das histórias e projetos e para que eles possam maturar adequadamente em minhas ideias.
Fora a Chorume e trabalhos como ghost writer. Escrevo livros para autores famosos e quem lê nem imagina que sou eu e não o cidadão que sai na Veja ou na Folha de S. Paulo que produziu aquilo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não me valho de compilação de apontamentos. Não uso o método dos historiadores ou pesquisadores. O que faço é ficção, sem compromisso algum com a realidade. Apenas faço anotações dos caminhos que quero que algum evento adquira ao longo da narrativa, mas sem a necessidade de fidelidade histórica. Nos meus escritos o Palmeiras pode ter levantado um título mundial, Neymar é humilde e se tornou o melhor jogador do mundo e Maradona nunca usou drogas. Por aí vocês podem notar meu compromisso com a verdade ou meia realidade (considero o Palmeiras campeão do mundo em 1951). Os escritores contemporâneos têm medo de escrever. Perderam-se num vale em que se confrontam a ficção, o bom mocismo, o politicamente correto e o jornalismo. Formou-se uma pasta insossa com as palavras e que muitos chamam de literatura moderna, mas na verdade não é nada. Gosto de coisas impossíveis ou do choque da realidade. Falta isso em nossa literatura: ficção.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não tenho esse problema, talvez por estar habituado à dinâmica da produção ou adaptação de roteiros para a televisão e a produção de material para campanhas eleitorais, o que exige uma ampla capacidade de percepção do ambiente e de projeção dos resultados e efeitos da escrita. Não há bloqueio que não se resolva com uma volta, meia hora sentado em um parque e um pouco de AC/DC. Escritor que reclama de bloqueio, que valoriza o ócio e a meditação… bom, não é pra mim. Minha prática é outra. Já trabalhei em fábrica com patrão berrando no meu ouvido por produção. Fosse eu falar em ócio produtivo ou criativo. Assim como já trabalhei em campanhas com muita pressão por produção de qualidade. Quem quer trabalhar com escrita não pode ser preguiçoso. Ócio é preguiça.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso todas as vezes possíveis e quantas forem necessárias e solicito que amigos o façam por mim. Mas não é por insegurança e sim por apreço à perfeição. Ainda assim cometo erros. Natural. Não sou formado em letras e mesmo que fosse, estamos sujeitos a cometer deslizes em um ambiente linguístico tão complexo quanto o idioma português; por isso valorizo a figura do revisor, do especialista. É papel dele revisar. O meu é escrever. Obviamente, nos cabe ter o mínimo de conhecimento do nosso instrumento de trabalho, das técnicas e possibilidades que o idioma nos permite usar. Gosto de quem ousa na escrita, mas não suporto livros feitos em um idioma que nem parece o português como o badalado O Sol na Cabeça. De tanto tentar descontruir a escrita o autor conseguiu, fez um livro em que praticamente é impossível reconhecer o português em alguns momentos. Não se trata de puritanismo da minha parte, mas de percepção de cuidado com o nosso idioma. Esse tipo de escrita não é técnica apurada. É falta dela. É como um gol de canela do Júnior Baiano. Quando estufava as redes todos comemoravam, dois dias depois já se davam conta que tinha sido uma canelada. Pura trombada que, por acaso, deu certo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre no computador ou no celular. Eventualmente anoto uma ideia em um pedaço de papel e deixo para desenvolver depois. Mas já perdi muito material por projetar a ideia e não valorizar a anotação, confiar na lembrança, na memória e depois esquecer.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Ter ideias para escrever vem de manter-me socialmente ativo. Crise de identidade ou bloqueio criativo tem quem não vive, quem se esconde atrás de uma tela e produz apenas um trabalho. Golpe de sorte qualquer um pode ter. O talento se demonstra na persistência e na musculatura que a prática proporciona para quem tem o que escrever. Você pode ter um período de acúmulo, a espera para escrever um novo texto ou trabalho, mas sua mente tem que estar girando, procurando meios e caminhos. Desligar-se da realidade é coisa de drogado ou de escritor metido a zen, não sou isso.
Escreve bem quem bem conta histórias. Para isso ou vive-se sem medo, sem ressalvas e preconceitos ou escuta-se muito quem faz isso. Aliás, escritor com preconceito está no ofício errado.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Comecei a escrever muito cedo. Guardei muita coisa por anos. Parte do que produzi rasguei ou inutilizei. Alguns contos e poemas passaram por uma análise distanciada, como se não fossem meus. Readequei uma parte e condenei textos ao lixo eterno dos escritos ruins, exatamente para onde deveriam ir metade dos livros publicados no Brasil atualmente, principalmente os de poemas. Faltam editores que façam isso. Cortar, eliminar, costurar, reparar, cortar de novo, em verdadeiro exercício cirúrgico e que muitas vezes pode matar o livro. Tive a sorte de conter meu ímpeto de publicar. Embora tenha começado cedo e ter sido premiado no Mapa Cultural Paulista, fui publicar apenas com mais de trinta anos. Tive condição e ajuda para avaliar a qualidade do material que solto.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quero ser popular e ser lido exaustivamente nos metrôs, nos bancos de praças, nas escolas, quero que meus livros fiquem junto com o Pequeno Príncipe nos criados mudos das candidatas a Miss Brasil. Não me importo com a Academia, eu quero o mundo. Quando escrevo é um exercício egoísta, um despejar de emoções só minhas. Não há preocupação alguma com o leitor nesse instante. Literatura é antes de tudo para quem a faz, mas, claro, uma vez produzidos, quero meus livros tomando vida.