Marcello Fontana é roteirista de histórias em quadrinhos, mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Coimbra e professor de Direito Internacional.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha rotina matinal é bem trivial. Acordo bem cedo para me arrumar, levar minha filha para a escola e ir para o trabalho. E aqui quando eu digo “trabalho”, estou me referindo ao trabalho não relacionado à escrita de ficção. Como, além de roteirista de histórias em quadrinhos, sou professor universitário e também advogado, a escrita está presente em todos os aspectos de minhas profissões.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Geralmente à noite ou fins de semana. O ritual tem mais a ver com isolamento. Aproveito períodos em que estou sozinho ou, se não é possível, aviso à família que estou escrevendo e me fecho no home office.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Falando da escrita de ficção (não a acadêmica ou jurídica), escrevo em períodos concentrados. Na verdade, o momento em que estou efetivamente em frente ao computador escrevendo é uma etapa relativamente curta de todo o processo. Considero que o processo como um todo nunca para. Em todo o momento as ideias estão fervilhando, amadurecendo, até que chega o momento de sair pelas pontas dos dedos e se transformar em um texto.
E não acredito em metas quando se trata de um trabalho criativo. Ele precisa fluir e as metas podem fazer com que seja arrancado à força.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O processo dura o tempo todo. Não há nenhum momento do dia em que eu possa dizer que o processo não esteja sendo desenvolvido internamente.
Antes de começar o processo de escrita a história já existe toda em minha cabeça (apesar de que detalhes acabam sendo mudados até a última revisão).
Também a pesquisa é feita continuamente: a aquisição e busca de livros, leituras de textos, conversas etc vão sendo feitas à medida que as ideias e necessidades vão surgindo. Qualquer minuto livre pode ser aproveitado.
O momento de iniciar a escrita acaba sendo mais solene. Antes do texto propriamente dito costumo fazer um esboço à mão da linha narrativa e outros elementos que possam ser úteis. Considero esse esboço como sendo a transição do mundo das ideias, do que foi pesquisado, para a escrita.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
O que me destrava é andar. Quando alguma coisa não está batendo, uma boa caminhada sozinho é o faz as ideias virem. Até agora sempre deu certo. Nem sempre da primeira vez, mas no final resolvem.
No que diz respeito à procrastinação, me assumo como um procrastinador nato. Mas me percebo fazendo isso quando tenho que fazer uma coisa que não estou realmente motivado. Como a escrita de ficção é uma coisa que em geral me dá prazer, o nível de procrastinação nessa atividade, para mim, é baixíssimo. Quando sinto que a história está madura simplesmente me organizo para escrevê-la.
Quanto ao medo e a ansiedade, de fato vejo vários colegas falando sobre isso, mas vou ser bem sincero e direto: eu não tenho. Parei para pensar sobre isso e acho que as razões podem ser duas: 1) o meu processo interno é muito longo, então só escrevo quando tenho uma convicção pessoal de que já tenho uma história sólida e interessante o suficiente para ser contada; 2) eu escrevo o que eu gostaria de ler. Meu primeiro leitor sou eu mesmo. Se agradou a mim (que sou um público exigente) vai agradar a outras pessoas também. Mas vai desagradar a outras e isso é absolutamente inevitável. A única forma de não desagradar é não publicar.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Muitas vezes! E a cada revisão existem mudanças! Então chega um momento que você vai ter que parar, então acredito que limitar a três ou quatro revisões é bem razoável. Tenho dois amigos para quem eu sempre envio meus textos. Depois trocamos uma ideia e às vezes algumas sugestões são acatadas, mas tantas outras entram num ouvido e saem no outro (risos).
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sim, um primeiro esboço sai à mão, assim como já tinham sido feitas várias anotações no decorrer de todo o processo criativo. Mas algumas anotações vão no computador também. Depende da conveniência. O importante é que o meio que você use mais te ajude do que te atrapalhe. Eu já tentei vários programas indicados por colegas roteiristas, mas acabo sempre o Word mesmo. No final, acho que o trabalho que vou ter de aprender a lidar com novas ferramentas vai ser mais desgastante do que a vantagem que essa ferramenta pode dar, então uso mesmo o programa com o qual estou familiarizado.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Vem do que eu vivo, do que eu gostaria de viver e do que eu tenho medo de viver. Vem do que eu amo, do que eu odeio, do que eu desejo, do que tenho asco.
O hábito que cultivo é continuar vivo, manter uma postura crítica e observadora.
O primeiro passo é conhecer a si mesmo e partir daí você passa a perceber o que está à sua volta.
Acredito que é a partir daí que possa passar a colher as ideias e moldá-las. Mas também pode ser que eu simplesmente não saiba responder a essas questões (risos).
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A prática aperfeiçoa a escrita, assim como também as vivências de vida. Acho que eu não diria nada ao meu eu do passado. Deixaria que cometesse os erros e acertos que vieram no decorrer dos anos. O que tiver dados errado, que sirva de experiência para o futuro.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Algumas centenas (risos)! As ideias que se consolidam em texto são uma pequena fração das que estão na cabeça.
Poxa… com certeza tem muita coisa sendo escrita nesse momento que eu vou querer ler no futuro.