Marcella Lopes Guimarães é professora associada e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu gosto de acordar cedo e adoro escrever pela manhã, mas nem sempre consigo manter essa rotina, por conta de alguma demanda urgente.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Minha escrita é mais limpa, fluida e prazerosa pela manhã. Meu ritual é a leitura. Se estiver trabalhando em um artigo acadêmico, a escrita se desenvolve melhor quando eu “termino” de ler. Empreguei aspas, pois estou consciente de que ninguém termina exatamente de ler, mas eu preciso cumprir as leituras que considero fundamentais, antes de meu confronto com as palavras, no sentido de conflito e no sentido de encontro face a face, depende do tema… Se surge uma necessidade pelo caminho, eu até posso ler e escrever ao mesmo tempo, mas como afirmei: meu ritual começa pela leitura. Se estou a trabalhar em um texto não acadêmico, o ritual é um ruminar as ideias e, quando julgo que elas têm um sentido para mim, um fecho até, estou pronta para escrever.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
As duas coisas. De fato, escrevo todos os dias, às vezes só breves considerações em um dos muitos pequenos cadernos que possuo. Há momentos, porém, em que escrevo de forma concentrada e muito, sempre quando sou constrangida pelos prazos. Prazos me afligem decerto, mas não me devoram.
Só tenho metas diárias de escrita quando estou comprometida com um editor.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Falei acima que os prazos não me devoram e o fato de ter sempre muitas coisas diferentes para fazer faz com que minha ação de me sentar em frente ao computador ou diante de um caderno naquela hora ou horas em que tenho (apenas aquelas!) para escrever seja um ato muito consciente. Eu nunca tive bloqueio de escrita e isso não é arrogância, é desespero. (risos) Se eu tenho três horas em um determinado dia, depois sei que pegarei a minha filha na escola e que só conseguirei (se de fato conseguir voltar ao meu texto…) quando ela dormir, ou seja, eu também já exausta, então preciso aproveitar aquele tempo. Digo para mim que é um tempo único. Nem sempre escrevo coisas aproveitáveis naquelas horas intensas de confronto…, mas sempre acho que é melhor cortar, que não ter o que selecionar.
Antes de começar, defino um plano de leituras e procuro cumpri-lo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu digo para mim que não tenho tempo e novamente quero deixar claro que não se trata de vaidade, ou de arrogância…, trata-se mesmo de necessidade e/ou desespero. Em 2013, eu escrevi dez livros para crianças e jamais descumpri os prazos exíguos que o meu editor me dava. A cada onze dias, eu precisava entregar algum texto, havia pessoas à espera, para fazer também o trabalho delas. Essa consciência me ajudava à beça. Saber que não estamos sós no texto e que ele é parte de uma cadeia de produção e circulação de ideias dá muito dinamismo à nossa escrita e diminui o risco de ser acometido por essas crises de “genialidade” e “incompreensão” solitária, que fazem a gente travar.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso muitas vezes, quer sejam textos literários, quer sejam acadêmicos e/ou didáticos. Mas há um momento em que de fato sinto que estão prontos, que não devo mexer. Se os textos são literários, eles alcançam de verdade uma feição definitiva dentro de mim; se são acadêmicos ou didáticos, eu percebo que em algum momento a sua “precariedade” é suficiente.
Sim, mostro meus textos – todos! – a outras pessoas e gosto disso, mas esse compartilhamento não significa uma acolhida tão generosa das sugestões… (risos) Às vezes, gosto mais das impressões e me beneficio mais delas, que dos pareceres doutos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação oscila entre acolhimento ao que a tecnologia pode me oferecer e a preguiça, quando acho que as novidades são mais trabalhosas que meus métodos antigos… (risos)
Sobre a escrita, depende da circunstância; depende até de onde estou. Se estou em casa ou em meu gabinete na universidade, é para o computador que vou. Mas não estou sempre conectada (nem desejo isso) e, ainda que minha letra tenha piorado muito, gosto do contato físico do lápis em minha mão, contra o papel. Sim, o lápis, nunca a caneta.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Acho que o maior impulso para escrever advém de uma vida plena: em experiências e em leituras diversas. Algumas vezes, meus orientandos me pedem bibliografia específica para as férias e eu respondo: vá ler Dostoievski e Guimarães Rosa. Encare os Lusíadas ou a Comédia! Se a gente só acolhe a própria especificidade, nossas ideias ficarão lá… Se a gente se arrisca um pouco mais, as ideias correspondem. Há dois anos eu animo um clube do livro consagrado à leitura de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust (sete volumes). Este ano vamos terminar, pois chegamos ao último volume. Todos os participantes são pessoas muito ocupadas, mas que não querem perder tempo, por isso se reúnem para ler a catedral proustiana! Toda essa experiência não cabe no lattes, mas cabe em uma vida que se quer mais plena.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Sabe por que não há cirurgiões plásticos do texto? Porque a escrita melhora com o tempo, fica mais bonita! Ela logra o espelho, então mal posso esperar para ficar mais bela! (risos)
Eu diria: Faça mais perguntas. Mas está tudo bem. Acho que os pesquisadores precisam assumir a precariedade a partir do texto. Alguns textos meus terminam com uma crítica a mim, no sentido do que falta. Acho que essa entrega promove o conhecimento, ao oferecer a outros, janelas de continuidade.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Há pelo menos três projetos que patinam aqui em meu escritório, espremidos por artigos e outras demandas urgentes: um sobre bibliotecas medievais; outro que reuniria minhas cartas a escritores que admiro, alguma coisa como Cartas aos meus amigos mortos e, por fim, um breve livro de contos que estou a escrever há uns quatro anos…
Os livros que quero ler existem e estão por toda parte! Alguns deles me espreitam no escritório, já envelhecidos sem nunca terem sido tocados… Depois de Em busca do tempo perdido, o clube do livro que eu animo vai encarar A montanha mágica, de Thomas Mann. De uns tempos para cá e muito motivada por um ex-aluno, que se tornou grande especialista em Dante, quero ler com toda calma a Comédia. Acho que a leitura é minha grande aliada em busca de uma vida plena.