Marcela Dantés é escritora, autora de “Sobre Pessoas Normais” (Ed. Patuá, 2016).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Pra mim, acordar nunca foi uma tarefa fácil. O toque do despertador (um alarme e sete ou oito “sonecas”) dói em todos os meus ossos e eu sempre penso em como seria bom poder dormir mais um pouco. E depois saio correndo.
Minha rotina matinal é essa: me esforçar para não me atrasar.
E, sendo funcionária de carteira assinada, que tem que estar pontualmente na frente do computador todas as manhãs, não me sobra energia ou coragem pra mais nada. O mundo começa a tomar forma mesmo lá pelo meio da manhã.
Nos fins de semana, eu não abro os olhos antes de meio dia. Portanto, não é exagero dizer: nenhuma linha foi escrita durante as manhãs.
E, claro, tudo isso antes de Antônio. Agora, dois meses de vida, quem define a rotina matinal é ele.
Os melhores dias começam mais ou menos às seis e têm: sorrisos sem dentes, café, fralda, sorrisos sem dentes e brincadeiras, café, café, passeio, fralda, banho. Sorrisos.
Nunca tem despertador.
E ainda não deu tempo de escrever.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu gosto das tardes, a cabeça ainda fresca, antes do inevitável atropelamento da rotina.
Mas eu escrevo, sobretudo, no começo da noite. Depois do expediente oficial, a lista de tarefas do dia riscada, a cabeça vazia de obrigações.
Me basta um banho, uma xícara de café e silêncio. Escrevo em qualquer lugar, mas gosto mesmo é da mesa da sala de jantar. A família humana e canina por perto, as costas meio incomodadas porque a cadeira não é das mais confortáveis.
Em outro cômodo da casa, um escritório todo montado: boa mesa, cadeira adequada, uma parede de referências e pesquisas. A chave na fechadura. E eu só entro ali pra buscar o que preciso – vai entender.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando estou trabalhando em um projeto específico, desses que sei onde vai chegar, com princípio, meio e fim mais ou menos definidos na minha cabeça, tento escrever todos os dias.
Já houve momentos em que eu estabelecia uma meta diária de palavras, mas aquilo foi se tornando muito mecânico e sofrido. Hoje, escrevo sem medida, o quanto sinto que tem que ser escrito a cada sentada. Tem dias que sai uma linha, em outros, duas páginas. Me sinto bem em ambos.
Entre um grande projeto e outro, escrevo sob demanda. O patrão é o meu cérebro, que vez ou outra me apresenta uma ideia irrecusável de conto, roteiro, um projeto de romance. Daí, pra me aquietar, preciso sentar e colocar no papel. Escrevo até acabar.
Tenho insônia e nessas noites prefiro encarar a luz branca que sai da página vazia no computador a ficar rolando na cama. Escrevo qualquer coisa e só paro quando sinto que o sono chegou. Alguns dos meus contos preferidos nasceram assim, no doce desespero de uma noite que parece infinita.
Essas noites não me acompanham mais: se Antônio dorme, eu durmo. Não me falta sono, escrevo outra hora. Ou como agora, digitando com uma mão no celular, enquanto ele mama e descansa no meu colo. Reescreveria Ulisses assim, se precisasse – é o melhor lugar do mundo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Tudo sempre começa com uma ideia solta, uma frase que me vem à cabeça, uma notícia que inspira, um diálogo que me atravessa. Esses fragmentos vão todos para uma pasta chamada “ideias de escrita” e ficam por ali, esperando a hora certa para se transformarem em um projeto.
Pra mim, o difícil é não começar. No momento em que decido investir tempo em um projeto, os meus dedos coçam para escrever, ainda que eu saiba da importância de um tempo de maturação e pesquisa. Costumo, então, pegar um caderno novo e anotar ali a primeira frase, do conto, da novela, do romance. Elas me vêm assim, prontas, inteiras e quase sempre sobrevivem até o fim. Esse ritual é o que torna o processo real.
O que preciso mesmo é uma estrutura: não consigo trabalhar sem um esqueleto, seja um mapa dos capítulos, em um romance, ou uma breve sinopse de um conto. Esse norte me deixa mais segura pra fluir.
Depois, não tem receita: me divido entre a pesquisa e os rabiscos propriamente ditos, que são o que me movem de verdade. É durante a produção que necessidade de pesquisa vai se desenhando, e pra mim faz mais sentido que os processo corram paralelos.
Imagens também ajudam: uso as paredes para organizar um universo em construção. E depois, como já dito, esqueço de escrever no escritório, e fico na sala de jantar, tentando me lembrar como era mesmo aquela imagem que recortei da revista.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Pra mim, o que pega mesmo é a ansiedade. Como costumo trabalhar sabendo mais ou menos onde quero chegar, sempre quero chegar logo. E, nessa, às vezes me atropelo.
Normalmente, escrevo um projeto em sua ordem natural e, por isso, preciso tomar muito cuidado pra que o final não fique corrido. É preciso respirar, reler, me concentrar pra não cortar trechos essenciais só pra ver a palavra “fim”.
Pode ser útil começar empreitadas menores durante um longo projeto, por exemplo, um conto enquanto trabalho em um romance. Assim, a sensação de fechamento me deixa respirar um pouco.
Não costumo procrastinar, mas não me arrisco em prazos justos demais, o tempo da escrita é o que tem que ser.
Gosto, também, de parar uma sessão de trabalho quando a coisa está fluindo bem e eu sei exatamente o que escrever. Assim, no dia seguinte é fácil recomeçar, o texto na ponta dos dedos, a frase pronta para tomar forma. Já aconteceu de largar um parágrafo pela metade, o que transformou a retomada do dia seguinte em uma urgência. Impossível procrastinar assim.
Sobre as expectativas, deixo a frase de abertura do meu “Sobre pessoas normais” responder por mim:
Trancou-se no banheiro enquanto pensava que, se não fosse alérgica, teria uma gata chamada expectativa – afinal, já estava acostumada a alimentá-la.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Nunca me aconteceu de sentir que os textos estão prontos! Rs
O que acontece é ser vencida pela exaustão: depois de dezenas de revisões, é preciso enviar o arquivo. E jamais relê-lo depois disso, ou a frustração será imensa: sempre tem uma palavra pra mudar, uma frase pra reescrever, um parágrafo a ser reposicionado.
Sou bem sistemática com a revisão. Gosto de começar o trabalho do dia revisando tudo que escrevi no dia anterior, com a cabeça fresca e o coração aberto. Depois, ao fim de cada capítulo ou conto, outra revisão. Por fim, depois de pronto, deixo o projeto descansar por algum tempo e retomo a leitura, duas, três, quatro vezes.
Sempre imprimo duas ou três versões de um trabalho – gosto de revisar no papel, a caneta vermelha e os post-its marcando aquilo que precisa ser melhorado. Tenho (naquele escritório) uma caixa imensa de encadernados assim.
Tenho meus leitores-beta que leem tudo que eu escrevo – obrigada, gente, vocês sabem quem são. E, aí, dependendo do projeto, busco outras pessoas que possam contribuir, seja por uma vivência específica, por um trabalho semelhante, por uma afinidade com determinado tema. Acredito que esses olhares contribuem muito com o resultado final e, depois da opinião desses leitores, sempre tem mais revisão pra fazer.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Somos bem amigas! À mão, só escrevo notas, lembretes a mim mesma, referências para pesquisa e pontos de atenção. Enfim, tudo aquilo que está relacionado ao texto, mas não é o texto propriamente dito.
Esse, para além da primeira frase no caderno, nasce todo no computador. Uso sem culpa os recursos modernos que tornam tudo mais fácil. Escrevo no Scrievener, um programa pensado para escritores e que ajuda demais na organização e visualização do projeto.
Além disso, faço notas em um aplicativo que fica sincronizado no computador e no telefone e, quando preciso, gravo áudios pra mim mesma. Acontece bastante quando abro os olhos, no meio da madrugada, com um pensamento que não pode fugir.
Em resumo, acho bonito quem escreve à mão. Não é o meu caso.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias vêm de todo lugar mas, principalmente, das pessoas. Sou dessas que nem consigo disfarçar na hora de prestar atenção na conversa alheia. Quanto material surge na fila do quilo (onde, em tese, nem é permitido conversar), na espera do médico, enquanto corto cabelo.
As pessoas são maravilhosas, personagens prontas, cheias de idiossincrasias e encantos. Então, fico olhando, olhando e anotando.
Gosto, também, de correr os olhos nas manchetes dos jornais, dos mais variados perfis. As coisas que acontecem às pessoas, as vezes são mais inverossímeis que uma ficção ruim.
O romance que acabei de terminar, inclusive, nasceu todo a partir de uma notícia do El País, que contava de uma mulher que foi encontrada em seu apartamento cinco anos depois da sua morte.
Isso. E palavras cruzadas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A gente fica mais corajoso né? E isso tem a ver, eu acho, com uma quebra das expectativas. Depois do primeiro susto, aprende-se que não dá pra escrever preocupada com o que os outros vão pensar.
Ao longo dos anos eu aprendi a escrever pra mim. Tocar naquilo que me toca, que me move. Se toca o outro, também, tanto melhor. Acho que essa autenticidade do processo é, também, maturidade.
Eu diria o que tento dizer ainda hoje: deixa fluir. Leia os clássicos. Devore os contemporâneos. Aceite críticas. Aceite elogios. Devore os contemporâneos.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho essa pasta “ideias de escrita” e muitos projetos em aberto. São romances, contos, talvez uns roteiros. Mas nada que tenha corpo suficiente, ainda. Quando estou trabalhando em um projeto, como agora, finalizando um romance, tenho certa dificuldade para vislumbrar o futuro.
Me arrisco a dizer que todos os livros que eu gostaria de ler já foram escritos, só me falta descobri-los por aí. Mas em um mundo que tem Grande Sertão: veredas, fica difícil dizer que falta alguma coisa.