Marcela Boni é doutora em História Social e professora da Faculdade de Educação da USP.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Interessante começar pelo começo… E inicio essa reflexão justamente no começo do meu dia. Uma breve descrição: estou “quase” de férias, então são 8h21 e, ainda de cara amassada, nem preparei um café e já peguei meu computador. Sentada no sofá com o mesmo no colo, tenho no cenário imediato a TV ligada, meu filho mais velho já acordado jogando no celular do meu lado e o mais novo ainda enrolado nas cobertas… As pessoas não raramente me perguntam: como você consegue? Barulho, gente se movimentando… Como se concentra? Minha resposta é: não sei como consigo, só sei que tem dado certo!
Não posso dizer que essa é minha rotina ou que tenho uma muito certeira. Mas algo que faz parte do cotidiano é acordar com muitas ideias e, de acordo com minhas atividades, vou tentando registrar o máximo da melhor forma possível.
Por exemplo, se não estivesse de férias, já estaria na sala de aula diante de uma turma bem animada de adolescentes! Mas mesmo nesses dias tenho o hábito de escrever todas as ideias que emergem mesmo durante as aulas. Para isso, carrego incontáveis caderninhos que vou preenchendo com muitas canetas coloridas. Aliás, esse é um traço que gosto de destacar. Boa parte dos meus escritos passa primeiro pelo processo artesanal da escrita à mão. Já tentei ter cadernos específicos para cada tema ou projeto, mas ao final, como na vida, os assuntos vão se misturando e formando um todo que, de maneira muito significativa, acabam tendo um significado nada aleatório e, para mim, muito especial!
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Cada dia tem sua graça e seu ritmo. Não tenho um momento em que trabalho melhor ou pior, pois já escrevi coisas incríveis pela manhã quando, de fato, a mente tranquilizada pelo sono permite as ideias mais organizadas. Mas já tive tardes de muita produção, geralmente iniciada com a cópia dos escritos dos caderninhos e intensificada com ideias que chegam no processo de releitura de ideias prévias. E não posso negar que escrevi boa parte de meus textos mais inspirados em longas noites e madrugadas, quando o silêncio e uma boa taça de vinho permitem uma espécie de distanciamento da “ordem do dia”. É quando, para além dos escritos “obrigatórios” já emergiram poesias, ensaios militantes e partes contundentes de textos acadêmicos. Apesar dessa multiplicidade de modos e situações de escrita, gosto muito de estar num lugar limpo, onde possa acomodar o computador, os caderninhos e os livros de referência. É preciso dizer, contudo, que tem dias em que nada disso dá certo e, mesmo precisando ou querendo, não sai nada muito expressivo. Felizmente não são a maioria…
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo praticamente todos os dias, nem que seja uma lista com itens que preciso organizar ou produzir, projetando o dia seguinte. Acho que isso tem um pouco da ideia de culpa, pois sentir que não escrevi nada é um tanto estranho. Acredito de alguma maneira na ideia de inspiração. Por isso, noto que há dias em que escrevo muito mais do que nos ditos “comuns” e aparentemente, os textos ficam muito bons! É quando me sinto “inspirada”! Mas, penso que nada é perdido. Mesmo quando só consigo iniciar um texto e demoro longo período para retomá-lo, percebo que foi necessário para que novas ideias chegassem. Não gosto muito dos prazos, apesar de sabe-los necessários. É como se justamente por ter a obrigação de entregar um texto este perdesse um pouco do seu viço. Já me peguei com prazos extremamente apertados, me debruçando sobre textos totalmente novos que nada tinham a ver com os exigidos.
Talvez isso tenha relação com minha percepção sobre a escrita…
Acredito na escrita como um exercício libertário e criador, momento em que as ideias e reflexões inundam o nosso corpo e exigem seu registro para outras etapas, muitas delas ligadas ao compartilhamento. Assim, a escrita tem uma aura de responsabilidade comigo e com o mundo que não combina muito com regras ABNT (apesar de reconhecer sua importância e necessidade) e datas máximas de envio.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita geralmente começa quando a leitura de textos aponta alguma reflexão que me parece interessante. Nem sempre isso se dá quando finalizo as leituras e, justamente por isso, a anotação das ideias nos caderninhos é um passo essencial. É comum que essas anotações ganhem formatos de parágrafos que são interrompidos até que a retomada se dê diante do computador. Textos, inúmeros, grifados fazem parte desse universo. E tenho que admitir minha preferência pelo material impresso, usando muito pouco textos em PDF ou mesmo e-books.
Procuro iniciar com parágrafos que considero fazerem sentido para a proposta inicial que relaciono sempre que possível a um título que dê conta minimamente das minhas intenções. Acontece de os títulos serem alterados, mas muitos são os mesmos desde o início.
Depois desse momento espero alguns dias e recupero o texto inicial para inserir trechos de referências que estão previamente grifados nos textos de apoio. Gostaria de destacar uma tentativa muito promissora, mas que pelo tempo que demanda não consegui manter que foi a transferência dos trechos grifados para uma tabela no Word organizada por palavras-chave ou temas que dialogam com minhas pesquisas. Ajuda muito a organizar a escrita e otimizar o tempo, especialmente em momentos mais objetivos do trabalho.
Além disso, é inegável a importância do diálogo para meu processo de escrita! Alguns interlocutores são especialmente importantes por motivos diferentes. Minha mãe e meu companheiro, por não fazerem parte do universo acadêmico são leitores com olhares preciosos, que me orientam no sentido de produzir uma escrita para além dos pares. Estes, por sua vez, são essenciais e se tornam tão mais especiais quanto mais possuem objetivos comuns e liberdade para fazer críticas a despeito de relações de amizade. Assim, a escrita compartilhada também tem sido algo de muito valor para mim e tenho como parceira inseparável a Tamara Prior, com quem tenho o prazer de conduzir o projeto Sexo e História.
Por fim, momentos de extrema relevância acontecem em espaços de discussão como os grupos de estudos dos quais faço parte, o Núcleo de Estudos de História Oral e o Grupo de Pesquisa em Gênero e História, ambos da USP. É impressionante o quanto discutir textos em grupo ilumina aspectos que não seriam absorvidos solitariamente.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Por incrível que pareça, o que consegue me dar vontade de continuar é respeitar a trava, considerar minha humanidade e tudo o que esta condição traz de imperfeição e contradição. Procuro ler textos que nada têm a ver (aparentemente, porque acho que tudo acaba fazendo sentido em conjunto) com os assuntos que estão no radar das obrigações. Literatura é algo que dá muito certo. Mas, curiosamente, algo que acho interessante é começar novos escritos. Projetos mais ou menos mirabolantes e ambiciosos, novos por assim dizer e que trazem de alguma forma o vigor que às vezes esquecemos que temos. Mesmo que sejam poucos parágrafos ou páginas, escrever algo completamente novo sempre me faz conseguir recuperar com mais coragem e animação aquilo que está por fazer.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não sei dizer precisamente quantas vezes reviso um texto antes de considera-lo pronto. Ouso dizer que tive muito poucas vezes essa sensação. Mais comum é sentir que sempre há algo a melhorar, mas sabendo ser esta uma questão insolúvel, em algum momento o texto precisa “ir para o mundo”. Quando é possível, divido os escritos com pessoas próximas, que sejam da mesma área de atuação ou totalmente distantes nesse aspecto – o que acho sempre muito interessante e importante! Tem algo, contudo, com me parece significativo a respeito desse “lugar” de incompletude que os textos parecem carregar… Quando publicados, geralmente com considerável espaço de tempo entre a submissão/entrega/envio e a devolutiva, os textos soam diferentes. Geralmente fico espantada positivamente com a qualidade que possuem, às vezes até dizendo intimamente “nossa, será que fui eu mesma que escrevi?”… O que não impede que em absolutamente todas as vezes a sensação seja acompanhada de “faltou essa ou aquela referência, essa ou aquela reflexão ficaria muito boa, podia ter melhorado a conclusão, os subtítulos podiam ser mais atraentes…” Acredito que tais pensamentos são sinais fundamentais do compromisso com uma escrita de qualidade, afinal estamos a todo momento aprendendo e produzindo reflexões. É natural, portanto, que tempos depois de um texto finalizado, o mesmo assuma novidades.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tendo a reconhecer que quanto mais admitimos o potencial das tecnologias, mais conseguimos produzir coisas interessantes. No entanto, tenho uma espécie de “medo” dos recursos tecnológicos, mesmo os mais simples. Parece que a um simples “toque” tudo pode sumir. O que não deixa de ser verdade. Além disso, tenho pouca paciência com detalhes, então recursos que exigem minucioso passo a passo são geralmente deixados para depois. Tenho me esforçado, apesar disso, em aprender novos mecanismos sobretudo de compartilhamento de experiências e tipos de registros de reflexões, aproveitando especialmente os que dizem respeito a áudios e ao audiovisual. Não por acaso, pois tenho me dedicado há pelo menos 13 anos à história oral, campo que exige conhecimentos acerca de uma multiplicidade de tipos de registro de experiências.
De qualquer forma, tenho muito apreço pela escrita à mão, como disse em outro momento. E me divirto com caderninhos e canetas coloridas que vão sendo recheados ao sabor das ideias, me dando aquela sensação de que aquilo que pensei em algum momento está literalmente “à mão”.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
É interessante parar para pensar de onde vêm as ideias… Creio ser impossível uma resposta precisa, pois elas podem surgir em situações muito diferentes e inusitadas. Já tive experiências de acordar no meio da noite, pensar em algo interessante e deixar o sono de lado para anotar o que pensei e não esquecer. Já aconteceu de observar alguma situação prosaica enquanto estou andando ou dirigindo e relacionar com algo que estou escrevendo. De qualquer forma, existem hábitos que tendem a ser impulsionadores da minha criatividade. Ressaltaria como principais conversar com pessoas, todo tipo de pessoa… Mas, sobretudo, ouvir com atenção o que estão me contando. Não por acaso uma das minhas paixões é a história oral! Mas também ouvir músicas, assistir a filmes, séries, novelas, desenhos infantis, ir a exposições e shows… Enfim, acredito que a criatividade tenha a ver com atividade muito mais do que com momentos de solidão e introspecção. Pelo menos no meu caso é assim que funciona…
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Responder a essas perguntas tem sido interessante pois me permitiu voltar no tempo. Lembrei, por exemplo, o quanto sempre gostei de escrever e até mesmo de um prêmio que recebi num concurso de poesias da escola, quando ainda cursava o Ensino Fundamental. Percebo que as coisas mudaram, não tanto no meu processo de escrita, que sempre foi múltiplo, mas com a facilidade conquistada com o tempo. Afinal, além de criatividade, a escrita exige diferentes níveis de precisão a depender do tipo de texto. Hoje, certamente escrevo muitas coisas em tom de trabalho, cumprindo prazos e regras estabelecidas. Espero que tais formalidades não façam o brilho da escrita criativa se perder. É por isso que diria a mim mesma, se pudesse voltar ao passado, para aquela Marcela não se perder no tempo e vir para o futuro para me lembrar o quanto a escrita pode ser libertadora de sentimentos e produtora de conhecimentos.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho muitos projetos que não comecei. Mas são tantos que não saberia organizá-los sem sentir que algum estaria faltando. Apesar dessa impossibilidade de síntese, gostaria de deixar de alguma forma registrado que boa parte deles diz respeito aos direitos das mulheres e das pessoas que vivenciam algum tipo de vulnerabilidade. Por isso, os livros que gostaria de ler e não existem são justamente das pessoas que, por algum motivo, foram ou são silenciadas. Gostaria mesmo que esse privilégio da escrita comprometida com a arte e o conhecimento não fosse para poucos, mas uma forma de expandir olhares e sensibilidades.