Maraíza Labanca é doutora em Literatura Comparada pela UFMG e uma das editoras da Cas’a edições, autora de“Refratário” (2012), “Rés – livro das contaminações” (com Erick Costa, 2014) e “Partitura” (2018).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o meu dia normalmente. Tomo café, cuido da casa, rego as plantas, cuido delas. Em alguns dias, vou trabalhar no meu ateliê (o Espaço a’mais), em outros, trabalho em casa. A manhã é inspiradora no sentido de que é uma chance a um recomeço, a cabeça está fresca, úmida, como a terra do jardim, pronta para brotar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A manhã é o melhor horário. Mas nem sempre a escrita brota nesse período. Às vezes ela começa aí, mesmo que nenhuma palavra venha ainda. Com o tempo, entendi que se escreve também quando não se está escrevendo. Há períodos de gestação em que a escrita, as palavras ficam germinando, fermentando por dentro. Só mais tarde rompem a superfície, rompem a terra do pensamento. É o momento de formigamento dos dedos, que pode acontecer a qualquer hora. Comigo, tem acontecido à noite ou nas horas mais improváveis, às vezes de muito cansaço. Não são as horas mais propícias, aparentemente. Nesses momentos, de cansaço, em que o dia já foi cumprido e preenchido por múltiplas tarefas exaustivas, a escrita me cobra um esforço a mais, cobra que eu tome o caderno e saque da caneta para que o texto, o poema se materialize ali. Por isso, na maioria das vezes, é uma ilusão achar que é possível criar momentos ideias para escrever. O que podemos fazer é permitir essa germinação diária e estarmos à altura do acontecimento quando a frase ou o verso exige ser escrito, na hora que for, inclusive, e não raro, no meio da noite, do sono…
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tento escrever um pouco todos os dias, quando a escrita assim me exige. Mas não tenho uma meta. Só entendo em que projeto estou trabalhando quando ele já está em andamento, no meio do processo. A poesia não funciona muito, ao menos para mim, por meio de planejamentos. Na verdade, tentar prevê-la é uma maneira de aprisioná-la. É preciso que a experiência, aos poucos, com erros e acertos, vá indicando o caminho. Só precisamos ter os olhos “limpos” para poder enxergá-lo e dignificá-lo em obra.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Para transformar fragmentos esparsos em uma “unidade” (com muitas aspas, pois não se trata de uma unidade qualquer, pois algo do fragmento e da dispersão resiste e deve insistir), trabalho naquilo que costumo chamar de “uma escrita segunda”. É o momento da jardinagem, em que se retiram as gorduras para poder visualizar melhor o traço singular que atravessa e dá “unidade” a uma obra. Isso, certamente, tem a ver com o caminho de que falei acima e com o estilo não só de cada escritor como de cada obra. No entanto, esse traço só se revela depois, no meio do caminho, ou nessa “escrita segunda”, em que se apara o que ali está como uma língua morta para que o que é de fato um nascimento possa vicejar, para que a força poética de cada frase ou palavra seja respeitada em seu brotamento ou inaugurabilidade. Mas preciso destacar: esse “trabalho de jardinagem” é diferente de um “trabalho de paisagismo”. Aprendi a jardinagem com meu pai, que, na casa onde cresci, cultivava plantas de todos os tipos; ele tinha um modo particular de cuidar, de podar, de adubar a terra. Para ele, até o mato importava. Talvez porque o resultado “estético” não seja o mais importante, talvez porque o mais importante seja o vivo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
O medo de a escrita, de repente, não mais nos visitar é também diário. Quem escreve precisa conviver com ele, com a sua ronda, como um perigo constante. Quanto à ansiedade, há muito tempo não sofro mais disso, pois entendi que é preciso ser paciente (nos muitos sentidos que essa palavra pode ter). A poesia não pode nem deve entrar no sistema de produtividade constante que tende a matar qualquer possibilidade de brotamento. É necessário se entregar um pouco a estes processos com vagar: 1. de germinação, 2. de anotação (a qualquer hora) e 3. de jardinagem (escrita segunda). É preciso saber que uma obra não se fabrica nem nasce pronta. Um livro se cultiva, aos poucos, no papel e em nós.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muitas e muitas vezes. Cada texto ou livro demanda um tempo diferente. Muitas vezes sinto que terminei um livro, por exemplo, quando outro começa a nascer em mim. Ou então quando sinto que aquele caminho, aquele traço, ganhou uma justeza, uma força independente de mim, que já pode entrar no mundo dos leitores. É importante, sim, mostrar o material a leitores em que confiamos. Pois (e isso é lindo!) é muito possível que eles destaquem ali coisas que nós, como autores, não tínhamos ainda percebido. É importante que nos desprendamos um pouco de um livro, que confiemos no modo como ele afeta os outros, ressoa neles, em como podem ser lidos de maneiras totalmente imprevistas por nós. Um leitor de fora tem mais distanciamento. Em suma: é importante saber que um livro, uma vez feito, dispensa seu autor.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Em geral, à mão. Eu preciso desse gesto inicial do corpo. Gosto de ver o desenho da caligrafia no papel, de ver a letra materializada ali. Isso é muito importante em meu processo. Tenho vários cadernos. Um que fica em casa, outro que vai comigo onde eu for e outro que fica em meu ateliê. São pelo menos três. Isso porque, como eu disse antes, é preciso estar à altura do acontecimento da escrita. E, sabendo que ela pode vir nas horas menos propícias, é preciso que eu esteja “preparada” para ela, com minhas ferramentas poucas: o lápis e o caderno. Então, se me falta um caderno por perto, sinto que me falta o essencial. Isto é: o caderno se tornou um item essencial do meu corpo.
Só depois, passo ao computador. Aí já é outra experiência. Já estou no meio do caminho e vou mexer nos textos, alongá-los, cortá-los, reordená-los. Esse momento, se se tem um material bom, pode ser bastante prazeroso.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu volto muito aos mesmos livros ou aos mesmos autores que me marcam. Não zelo pela “quantidade” de leitura. Sou capaz de reler vagarosamente um mesmo poema de Herberto Helder, por exemplo, um milhão de vezes. Há uma escritora portuguesa, a M. G. Llansol, que diz: “leio pouco, mas infinitamente”. Gosto de anotar versos, bordá-los no tecido. Faço flâmulas com poemas bordados. Gravo o poema no pano e no corpo. Parece que, assim, algo encarna, ganha corpo. Isso me mantém próxima do “poético”: uma palavra encarnada, um corpo (carne) marcado pela palavra.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Com o avanço da idade, fui dosando melhor a relação entre técnica e experiência. Acho que, antes, eu era mais preocupada com a técnica. “Amadurecer” na escrita significa, para mim, consentir com não ter um controle de todo sobre o que se faz. O que temos é não mais que um “controle” precário. A escrita nasce melhor quando nos despojamos de nossos instrumentos técnicos e assumimos uma relação mais nua com a linguagem que nos habita.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho um projeto de fazer um livro com a coletânea de “roteiros” das oficinas de escrita que conduzo no Espaço a’mais. Trata-se de um momento de leituras e de proposição de atividades nomeadas por mim como “exercícios de liberdade”. Porque o mais difícil, no que diz respeito ao manejo da língua que falamos, é cavar furos de liberdade nela. Afinal, “A maior liberdade nasce do maior rigor”, como disse certa vez Valery.