Manuella Mucury é psicanalista, dançarina e stripper burlesca, mestre (UnB) e doutoranda em filosofia ética e política (UnB-Paris VIII).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Faz um pouco menos de um ano que me mudei para a França, porém quando eu morava em Brasília costumava ter uma rotina bem estabelecida, especialmente na época do mestrado. Eu adorava acordar não muito cedo, pois meu corpo sofre com isso, mas em um horário em que o sol ainda estivesse batendo na minha janela. Costumo dormir sempre de cortina aberta, a fim de deixar que a luminosidade dessa estrela me desperte. O sol é um elemento importante para o meu bem-estar e, consequentemente, para a minha escrita, porque ele me energiza e revitaliza, além de ser a marca de um novo começo.
Há esse verso do Caetano que adoro: “Tudo era de manhã”. Cada um interpreta como quiser, a partir de sua própria história e possibilidades, mas para mim um de seus sentidos é o da alegria do renascimento. Pode parecer bobo, porém vivenciar esse renascimento que nos é dado cotidianamente incita o movimento das minhas próprias ideias. Assim, aquilo que na noite anterior se faz obstáculo e me paralisa, por vezes se desembaraça, ganha corpo e vem à luz de forma natural, como a luz do sol na janela, pelas manhãs. Sem contar que, à noite, o inconsciente trabalha no sonho, e isso não se dá sem consequências para o pensamento.
O café também é um elemento importante na minha rotina matinal. Ele é a bebida da minha infância, então fazê-lo e degustá-lo é uma forma de acolhimento, de autoacolhimento. E creio que gestos simples com esse têm efeitos grandiosos sobre as nossas tarefas ordinárias. É um tipo de repetição desejada que cria um ambiente familiar no qual somos capazes de nos reconhecer e que, ao mesmo tempo, retira um pouco da hostilidade do desconhecido que temos de enfrentar todos os dias na vida.
Voltando à questão da minha rotina, enquanto eu pegava sol e tomava o meu café na janela do quarto, começava as minhas leituras e a minha escrita. Por volta da hora do almoço, eu ia sagradamente à academia. Digo “sagradamente”, pois isso fazia parte do meu rito matinal. A meu ver, a filosofia tem um corpo e não há, ou não devia haver, uma separação entre este e o pensamento. Por consequência, deixar o corpo forte e saudável é também uma maneira de pensar melhor – mesmo que não seja uma condição para tal. Além disso, quando escrevemos costumamos ficar sentados por horas a fio. Tem gente que até mesmo diz que se esquece de comer quando está entretido com a própria pesquisa, o que para mim seria impossível (risos).
O fato é que quando escrevemos por horas esquecemos o corpo, ao menos temporariamente. Mas quando ele reaparece não raramente é por meio da dor. Por isso, eu penso que é importante preparar o corpo para esse momento da escrita, para essa quase imobilidade e extrema tensão que sofremos quando sentados na cadeira. Caso contrário, o corpo “reclama”, “grita”, se angustia, e precisamos de um certo “silêncio dos órgãos” se queremos que a atenção se volte para o pensamento de forma mais intensa.
Eu, particularmente, tenho horror a corpos dóceis, disciplinados demais – claro que em certa medida é impossível escapar a isso –, então busco cultivar essa força vital e insubordinada, que me parece necessária para o exercício da escrita, entre outras coisas, por meio de atividades como a da dança. Eu dançava todas as manhãs. Sou dançarina profissional, o que exige um compromisso, uma disciplina, uma submissão a regras bastante complexas. Mas a dança é maior do que isso, ela é também um exercício da liberdade, um modo de estar no mundo que me interessa. E esse modo é sobretudo ativo e por vezes nega ativamente o próprio mundo.
Valéry traduz esse sentimento em um de seus belos diálogos, no qual a própria dança diz (na única vez em que fala) “eu estava em ti, ó movimento, e fora de todas as coisas” – cito aqui de cabeça. Pensar, assim como dançar, também exige essa concentração, essa atenção à vida interior. E por que falo da dança como suporte para a escrita? Porque ela, assim como esta última, demanda certa dose de liberdade, de improviso e de subversão. E isso não significa que, para realizar essa tarefa, seja preciso abandonar todas as regras, seja do corpo seja do pensamento. Mas, por mais paradoxal que soe, é preciso saber utilizar essa restrição de liberdade e transformá-la em multiplicidade criativa, em libertação. Como a bailarina transforma a rigidez das leis impostas ao seu corpo em dança. Assim como ela, nós também criamos a partir de regras.
Narrei até aqui a minha rotina matinal utilizando o tempo pretérito, pois atualmente não possuo essa rotina. Na Europa esse “sol da janela”, tão fundamental para mim e minhas atividades, é quase inexistente. Aqui a minha relação com o corpo sofreu inúmeros impactos em razão da diferença climática e, claro, cultural – o que seria impossível e indesejado descrever neste momento. Atualmente, não tenho mais como ir à academia ou a aulas de dança, não por falta de tempo, mas de dinheiro mesmo. Apesar disso, tento manter alguma rotina de exercícios pela manhã. Contudo, no inverno hostil do velho mundo, o que me resta às vezes é apenas sobreviver (isso soa um tanto white people problems, eu sei, mas não deixa de ser uma questão). Ou é assim que sinto. No inverno se torna premente um retorno às necessidades e aos interesses mais básicos e isso trava a realização de tarefas inúteis e tão essenciais, como a dança e – por que não dizer? – a filosofia, o que prejudica sobremaneira a minha escrita. No entanto, diante dessa e de outras dificuldades, hoje tento evitar ser muito dura comigo mesma, o que é uma forma de não me deixar vencer pelos meus ideais, de deixá-los agir contra mim. E isso talvez seja uma boa dica para a escrita.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Como disse acima, sempre trabalho melhor durante o dia. Quando o sol vai embora, alguma coisa em mim também se apaga, entra em outro registro, e a atenção sobre os textos não é mais a mesma. O cansaço acumulado também não permite tanto investimento. É verdade que há certo sossego na noite e tem gente que se aproveita dele para escrever. Para mim, esse silêncio das coisas externas apenas enfatiza o barulho interior. E no breu não sobram muitos recursos para calá-lo. Então, a noite é tempo de me confrontar com antigos fantasmas, angústias e medos. Por isso, ela demanda certa humildade, coragem e elaboração.
O terrível é “a substância natural de todas as noites”, diz Pessoa. Concordo, porém em parte. Existe mesmo algo de muito terrível nessa antecipação do fim. Talvez por isso dormir seja tão difícil. A insônia é uma espécie de resistência a essa morte do sono. Mas é impossível e contraprodutivo evitá-la. Além do mais, escrever também é morrer… É uma das formas pelas quais o homem registra a sua transitoriedade no mundo. É uma capacidade de suportar o estranho, a incerteza e por isso requer determinada dose de coragem e de “deflação narcísica”. A verdadeira escrita é uma experiência de despossessão. Apesar disso, ela cria rastros, imprime uma marca no mundo que, no entanto, não é idêntica ao indivíduo que escreve – afinal, o que em nós escreve? E talvez por causa dessa diferença que deve ser registrada, afirmada, sustentada, dessa permanência do impermanente à qual ela remete, assim como pelo fato de ser dessemelhante ao eu, que o ato de escrever é tão duro e o resultado tão insuportável para alguns. A escrita é um trabalho finito, mas nunca acabado. (Nesse sentido, ela também é uma recusa da morte, um luto forçado da coisa ainda viva). Então há sempre essa angústia, esse resto com o qual temos de lidar quando escrevemos: a escrita é onde o desejo de completude e de aperfeiçoamento encontram a sua necessidade de frustração.
Mas falávamos da minha rotina para escrever. Hoje em dia eu não tenho um ritual para isso, a solenidade da escrita tem de surgir de forma mais espontânea, sem muita cerimônia ou regras. Preciso apenas do silêncio, do isolamento e de muita coragem. Como diria Blanchot, “escrever é entrar na afirmação da solidão onde o fascínio ameaça”.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Acho importante não escrever, mas estar em contato diário com o tema de pesquisa. Creio que dessa forma os conteúdos pouco a pouco vão se organizando internamente, as ideias amadurecendo até o ponto em que a escrita advém como uma necessidade, resultado desse processo de elaboração. Assim, não adianta forçar se ainda não é tempo de colocar no papel. É preciso ter contato com o material de pesquisa, estranhá-lo um pouco (ou muito), incompreendê-lo para depois tentar interpretá-lo. E interpretação não é sinônimo de compreensão. E isso, como disse, leva tempo.
Não acho interessante fazer da pesquisa uma ferramenta masoquista de autoaniquilação. Fugir a essa lógica talvez seja a nossa grande tarefa. E ela vai muito além do âmbito da própria pesquisa. Trata-se de uma tarefa de vida! Mais uma vez, insisto que não podemos separar os problemas da escrita dos problemas maiores da existência. Nesse sentido, creio que devemos refletir um pouco mais detidamente sobre o que significa estabelecer metas, seja de escrita ou de qualquer outra coisa. A meu ver, creio que assimilamos muito apressadamente essa capacidade de impor a nós mesmos metas como algo “bom”. Talvez já estejamos bastante influenciados pelo discurso liberal e pela lógica de mercado que, baseados no pressuposto de uma autodeterminação da vontade como vetor da autopromoção profissional, visam fazer do indivíduo um “empreendedor de si mesmo”, como diz o meu amigo Érico. Isso porque, com isso, nos esquecemos também muito depressa dos riscos e dos reveses do estabelecimento de metas ou, seria melhor dizer, de ideais. E Freud, melhor do que ninguém, tentou nos alertar sobre isso (aliás, esse é um dos temas centrais do meu livro Sexo, morte e cultura: o paradoxo freudiano da moralidade.
Entendamos primeiro o que é o ideal. Tentarei ser o mais breve (e menos enfadonha) possível, mas acho importante aprofundar um pouco o tema, a fim de responder à pergunta. Segundo a psicanálise, o ideal se constitui a partir da renúncia ao narcisismo primário no qual o indivíduo desfruta de uma autoaceitação incondicional que o isenta de críticas. O momento de formação da instância crítica no interior do sujeito é marcado pela passagem desse primeiro narcisismo, oriundo do primado do Eu ideal – resultado de um investimento libidinal que o indivíduo faz em si mesmo –, ao Ideal do eu, imposto “de fora”, e através do qual o indivíduo tenta readquirir a perfeição narcísica a que teve de renunciar na infância. Em outras palavras, é por meio da voz (interiorizada) dos pais, dos educadores, de incontáveis pessoas do meio e da opinião pública, ou seja, dos ideais, que tentamos restaurar o nosso amor-próprio perdido da infância.
Desse modo, ao longo do desenvolvimento e de processos de identificação, tornamos nossas as expectativas alheias que passam então a fazer parte de nossos modelos. Até aí tudo bem, pois é importante ter modelos na vida. Afinal, eles nos servem como guias de conduta e apaziguam um pouco a angústia de estarmos jogados nesse mundo sem sentido. Por isso, sem dúvidas, eles têm uma função organizadora importante. Porém, não podemos esquecer que a noção de ideal do eu está diretamente ligada à consciência moral, que, segundo Freud, é justamente a instância psíquica que cumpre a “tarefa de assegurar a satisfação narcísica por meio do Ideal do eu”.
A consciência moral é então responsável pela observação constante do eu e pela comparação deste com o seu modelo a ser seguido: o ideal. Assim, todas as vezes que estamos aquém deste último – e é preciso dizer que, por definição, sempre estamos – a consciência moral lança a sua punição sobre o eu na forma de sentimento de culpa. Perdoem-me o détour, mas eis o ponto a que eu queria chegar. Os ideais nos movimentam, nos dão uma direção, um sentido, um alvo, uma meta. No entanto, a partir do momento em que não atingimos determinada meta, experimentamos o mal-estar e nos sentimos culpados. E a culpa, quando em excesso, bem sabemos, é um afeto paralisante. Claro que, dada a descrição acima, ela também é incontornável. Mas creio que podemos tentar diminuí-la ao invés de trabalhar a seu favor. Penso que não se impor tantas metas, ou ao menos metas tão duras ou mesmo impossíveis, ao longo do processo de escrita, pode ser uma saída. (Não que tenhamos total controle sobre isso, pois grande parte desses ideais são inconscientes.) O que não quer dizer que você tem de evitá-las completamente, mas seja um pouco sensível para saber a magnitude delas, a fim de não fazer dessa autoexigência um problema maior, como eu disse acima, para não deixar que seus ideais trabalhem contra você. Assim, se posso brincar, invertendo um pouco o jogo, eu diria que tenho sim uma meta diária, não necessariamente só de escrita, mas de vida: evitar o masoquismo moral.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Atualmente tenho mais consciência de que o meu processo de escrita está ligado, não tanto às exigências acadêmicas, familiares etc., mas sobretudo à morte, à minha morte. A meu ver, somente a perspectiva da finitude permite a entrega à experiência da escrita. Isso porque colocar as ideias no papel significa se exceder, se perder de si; exige, por exemplo, bancar a alteridade do texto que está ligado a certa autonomia deste em relação ao sujeito que escreve. Escrever é saber que o texto nunca vai corresponder totalmente às minhas expectativas (tampouco às alheias), o que não quer dizer que ele estará sempre aquém delas, mas também que, às vezes, irá ultrapassá-las, e não há muito controle sobre isso – ao menos não tanto quanto gostaríamos de ter. Mas as expectativas continuam lá fazendo pressão, é verdade. Pois sempre escrevemos para um outro, mesmo quando não mostramos o nosso escrito a ninguém.
O outro em nós, quer dizer, esse retalho de identificações que incorporamos ao longo de nossas histórias de vida, participa desse processo o tempo todo. Ele é quem lê, julga e, a partir de sua relação com o desejo, nos permite avançar ou não nessa tarefa. O que dá curso à escrita ou, ao contrário, o que a impede, cria bloqueios, inibições e angústias é uma mescla de fatores conscientes e inconscientes, afinal ninguém controla esses processos identificatórios, as dinâmicas do desejo e do supereu. Cabe ao eu, esse pobre coitado, não ser esmagado por tais exigências. Mas talvez a coisa seja ainda mais radical, pois a própria linguagem é uma alteridade. Ela nos determina, sobredetermina e, claro, dependemos dela, entre outras coisas, para pensar e escrever. A linguagem é o Outro de que tentamos nos apropriar, e não só quando ainda não sabemos falar uma língua, mas diariamente. Ainda que naquilo em que ela nos ultrapassa nós estejamos sempre, na verdade, mais perto de uma desapropriação de nós mesmos, de nossa subjetividade, do que de qualquer outra coisa.
Sendo assim, creio que não podemos resumir o ato de escrever à capacidade de exteriorizar um determinado conhecimento através de palavras e de ideias ordenadas que obedecem às regras gerais da língua. Pois escrever é flertar com a morte. Porém, como diz Bataille, isso não significa que eu “recuse o conhecimento sem o qual eu não escreveria, mas [que] essa mão que escreve é ‘mourante’e, por essa morte a ela prometida, ela escapa aos limites aceitos escrevendo (aceitos pela mão que escreve, mas recusados por aquela que morre). Quem escreve deve correr então o risco do excesso do qual tentamos nos proteger através de todo tipo de interdito e de normas morais e sociais.
Quanto às notas (vou tentar falar um pouco do aspecto prático), eu não sei… às vezes elas são necessárias para começar a escrever, às vezes não. O fato é que sempre é difícil começar, pois isso significa entrar em um campo de determinação, fazer escolhas, o que nunca é fácil, porém muito necessário na vida. Eu não saberia dizer exatamente como me movo da pesquisa para a escrita. Talvez porque isso dependa de todas essas lutas internas que tenho que travar comigo mesma, que são inesperadas. No entanto, ainda que eu saia perdedora de todas delas, ou você, penso que é preciso se forçar a escrever, e isso requer deixar o julgamento um pouco em suspensão e se entregar ao movimento do pensamento e dos afetos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lido com angústia. Faço análise e tento praticar o difícil autocuidado.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sim, eu reviso, mas uma só vez, às vezes duas. Se releio muito, começo a detestá-los. Conheço muita gente que revisa inúmeras vezes e modifica exaustivamente o conteúdo. Não sei, mas ao que parece elas sofrem muito com isso. Me parece também tremenda falta de confiança naquilo que elas têm para mostrar, no caso, o próprio pensamento. Claro que é bom se colocar em dúvida, tentar aperfeiçoar as ideias, o texto, porém é preciso ter cuidado para não fazer disso um sintoma neurótico. Como falei, talvez essa presença sempre iminente da morte dilua um pouco a importância que atribuo aos meus próprios textos e também um pouco desse narcisismo que considero adoecedor.
Eu costumo sim mostrar o meu trabalho para outra pessoa. E costuma ser sempre a mesma, a Ligia Diniz, que inclusive foi quem me ajudou com a revisão do meu livro. Eu acho a Ligia uma excelente leitora e escritora. Ela sempre faz as correções formais que eu não sou capaz de fazer nos meus próprios escritos, torna o texto mais fluido, mais belo e me alerta quando há alguma passagem mais problemática e que requer uma modificação de conteúdo. O olhar que a Lígia lança sobre os meus textos sempre me deixa mais em paz com eles.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu tenho uma péssima relação com tecnologia. Odeio ler textos em PDF no computador, por exemplo, mas às vezes é preciso, pois não há outro modo de acesso. Quando escrevo rascunhos, faço tudo à mão. Menos, é claro, a própria tese.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Sofrer, amar, dançar, ler, ver filmes, são algumas das atividades que me mantêm criativa. A criação requer uma pluralidade de experiências, ela é uma maneira de dar forma a esses conteúdos, mas não só isso, ela fornece uma “intensificação do viver, um vivenciar-se no fazer”, como diz Fayga Ostrower. Assim, não se trata somente de uma descarga das tensões; a criação é também uma nova maneira de abordar os conflitos internos e de dar uma forma a esses conteúdos. Trata-se de uma ampliação do ser e, assim, todas as atividades que favorecem essa expansão contribuem para o ato de criar. A escrita expande a realidade. “Daí o sentimento do essencial e necessário no criar, o sentimento de um crescimento, interior, em que nos ampliamos em nossa abertura para a vida”, como escreveu Ostrower.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Não diria nada (risos). Na verdade, quando sinto dificuldade de escrever o que tento é fazer com que essa Manuella atual se conecte com a Manuella que escreveu os “nossos” primeiros textos. Eu só comecei a escrever de fato no momento em que desejei escrever, em que isso passou a ser uma necessidade interior. Passei anos longe da escola, cinco anos, para ser mais exata. Foi uma decisão difícil, mas necessária, poisnaquele momento não havia como prosseguir, já estava claro para mim que a preocupação da escola era sobretudo disciplinar: produzir corpos dóceis, atrofiar a capacidade crítica sobre as coisas e incitar a obediência cega à autoridade.
O interesse da escola nunca foi o de responder às questões deveras importantes da vida. Apesar disso, eu voltei a estudar quando estava mais velha, pois queria entrar para a universidade (lugar que julgava que seria diferente) e, não sem dificuldade, passei no vestibular para psicologia e, depois, para filosofia. Então, quando estava na universidade eu tinha uma relação bem diferente com o conhecimento do que aquela que observava nos meus colegas. A maioria deles estudava porque era obrigada, porque queria um bom emprego, agradar aos pais, sei lá.
A minha relação com o saber sempre foi outra, bastante sólida, crítica e duramente conquistada. Por esse motivo, àquela altura, quando tinha que expor algum conhecimento em forma de texto, eu já tinha certo amadurecimento, uma confiança nesse genuíno desejo de saber que a meu ver é a fonte de toda boa escrita. Escrever era deixar fluir o pensamento. Claro, sempre sendo fiel às palavras dos autores. Enquanto escrevia, nunca me opus a um autor. Acho que, para explicar um pensamento, primeiro temos de tentar compreender determinada perspectiva, mesmo que ela seja o mais distante possível dos nossos próprios afetos e pensamentos, para só então depois formular as críticas que lhe são necessárias.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não penso em nenhum projeto acadêmico futuro. Nesse momento, eu penso apenas em sobreviver à tese. Depois disso, talvez retomar com mais vigor as atividades que me dão prazer, como dançar. Algo que gostaria de fazer é escrever um livro sobre a relação entre a dança, o erotismo e a filosofia.
Sobre um livro que gostaria de ler… Bem, há vários, mas muitos já foram escritos.