Manuella Bezerra de Melo é escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha rotina é muito puxada. Além de ser imigrante, o que significa que não tenho muito apoio ou estrutura com quem contar, tenho um filho de 11 anos, trabalho meio período e estou próxima de finalizar o mestrado em Teoria da Literatura, sou casada. Acordo muito cedo pra fazer café a manhã, arrumar as roupas e preparar o lanche pra meu filho levar pra escola, depois que ele sai com meu companheiro, vou comer e saio pra trabalhar. Volto às 15h e imediatamente sento pra estudar ou escrever, isto depende de qual é a demanda urgente do dia. Então posso usar este tempo ou para me dedicar no meu trabalho autoral, pra ler, pra estudar o material de apoio da dissertação ou pra escrever a dissertação. Próximo das 19h preciso parar pra preparar jantar, conduzir meu filho nas atividades e coisas assim. A noite ainda sento pra escrever novamente, se o cansaço permitir.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Como minha rotina é muito corrida, a hora que me dedico é a que sobra. Não tenho um ritual, mas sou uma pessoa que tem dificuldade de concentração, então no geral preciso de silêncio. Como tenho filho pequeno, às vezes meto um fone de ouvido com músicas de meditação e coisas assim só pra cortar os ruídos. Caso esteja muito desconcentrada, posso fazer uma meditação guiada antes de iniciar a escrita.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
No geral, escrevo no pouco tempo que tenho, mas não costumo ter metas. Vou produzindo e guardando. Bem mais adiante posso revisitar e concluir que tem alí algo ou não.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A depender do tipo da obra que estou me dedicando no momento, meu processo de escrita se altera. No meu infantil, por exemplo, que é um conto, eu fui mais arquiteta, criei os personagens, depois os articulei, fiz um infográfico, trabalhei nas relações, nas características. Só depois comecei a escrever. Com a poesia meu processo é mais catártico, com o perdão dos cabralinos. Eu escrevo poesia compulsivamente, minha bolsa sempre tem um monte de guardanapos riscados, cadernos, folhas soltas pela casa, versos nos cadernos do meu filho, do meu marido, escrevo em qualquer coisa que vejo na frente, em qualquer lugar. Depois, claro, eu junto aquilo, as vezes deixo numa gaveta, as vezes solto pela casa, ou dentro dos livros. Quando vem paciência eu revisito, separo o que acho que está congruente e só então vou trabalhar, lapidar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Esta é uma das piores partes pra mim. A escrita pra mim não é suave, é dolorosa, sofrida. Sou ansiosa, desatenta. Mas é como precisasse dela justo pra orientar, porque sem a escrita fico perdida, atordoada. Eu não tenho medo de corresponder as expectativas porque, na realidade, sei que não vou corresponder. Tenho plena consciência do tipo de escritora que sou e não tenho ilusões sobre prêmios, fama, cânone, dinheiro. Obviamente que nada disso é sem dor ou lamento, mas ter a consciência de quem se é facilita pra você entender o que te leva a escrever. E no meu caso, escrevo porque esse é meu caminho, porque sem a escrita me perco. Escrever é minha maior teimosia.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não tenho um número de vezes que reviso. Não sou uma pessoa metódica, sistemática, sou muito mais intuitiva. Reviso quantas vezes achar necessário até que minha mente estrale e diga ‘agora foi’. Mas, na realidade, nunca tenho certeza. Invejo muito as pessoas que são tão seguras ao ponto de terem certeza das coisas. Honestamente, não tenho certeza de absolutamente nada, menos ainda dos meus textos. Então as vezes vai sem certeza mesmo. Eu já tentei mostrar meus trabalhos para outras pessoas, mas não acho que hoje em dia ninguém tem muita disponibilidade e tempo pra uma gentileza deste tamanho. Já tive bons feedbacks, pelos quais sou grata, já tive feedbacks horríveis que acabaram comigo emocionalmente, já tive silêncios. Essas tentativas só me fizeram concluir que o mais importante é você seguir o caminho que você acha que é o seu sem buscar a aprovação dos outros. Não é fácil, é um exercício, afinal quando escrevemos queremos ser lidos, mas sempre haverá alguém pra gostar e pra odiar seu trabalho, então sou da opinião que você deve ser sua própria bussola.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Como disse, não sou muito metódica. Se por acaso eu estiver no computador, posso escrever nele. Uso também o WA como bloco de notas e, as vezes, digo uns versos em áudios pra depois copiar. Tenho sempre um caderno à bolsa, caso não tenha, roubo guardanapos das cafeterias na rua.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Normalmente minhas ideias vêm da realidade. Tenho hábitos de completar com fantasias as histórias reais. Vejo uma mulher na rua e imagino quem é ela, se a mulher que está ao lado é a filha ou a irmã, analiso a personalidade pela roupa, crio uma narrativa inteira, uma historia de vida pra ela apenas no trajeto do ônibus. As vezes me contam um pedaço pequeno de uma história sobre alguém e disso me aparece um mundo inteiro. Minha criatividade vem da observação, talvez tenha herdado isso do jornalismo, dos tempos de repórter quando escrevia perfis pra o jornal que trabalhei, quando tinha que ganhar a empatia de alguém pra fazer esta pessoa me contar sua história. Sendo assim, acho que tem muita realidade fantasiosa em tudo que escrevo. Mas acho que tenho uma forma muito poética de ver o mundo. Tenho a impressão que vejo um verde das folhas na árvore mais verde que as outras pessoas veem, porque esse verde me pode causar um espanto qualquer de onde vai nascer um poema.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acredito que mudou muito. Meu primeiro livro de poemas é uma colcha de retalhos que prova isso. Como eu nunca tinha publicado, quis colocar nele poemas escritos em 10 anos, uns de uma fase, outros de outra fase, porque ele representava justamente esta mutação que passa um ser humano com o passar do tempo. Acho que isso é muito nítido. Eu escolhi fazer isso, ainda que nele tenha poemas que eu goste e outros que odeie, ache ruins, vários, mas quis fazer justamente pra dar a ele este significado de transformação. O novo poemário já é outra situação, porque ele foi escrito por mim, todo por esta Manuella de agora, e não por um monte de eus as quais eu já matei. E por isso acho que nele já é possível observar melhor minha escrita, meu estilo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho 3 projetos em curso, uma obra já pronta que é uma espécie de diário imigrante, mas um diário emocional, creio. Ainda estou em busca de uma editora pra ele. Os outros dois são um romance, meu primeiro, que devo começar a escrever ano que vem, mas já estou estruturando a narrativa, e um livro de perfis, que vai ser algo mais pra o jornalismo literário. Ambos não têm previsão pra ficar pronto. Sobre leitura, acho que não há um livro que eu gostaria de ler e que não existe, pra mim é ao contrário, há um milhão de livros que existem que eu gostaria de ler e ainda não li.