Manuela Gonzaga é escritora, ativista e historiadora (Universidade Nova, Lisboa).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Geralmente acordo cedo, e por vezes, às 6 e meia da manhã já estou de olho aberto. Eventualmente por culpa do Mel, o nosso gato, que começa a arranhar a porta que dá para o terraço e a miar discretamente… preguiço um pouco, bebo água, vou até ao jardim, abro a porta aos cães, e, eventualmente, até volto um pouco mais para a cama. Mas tudo isto varia, porque quando estou no campo o registo é um, quando estou na cidade é outro. A verdade é que preciso dormitar, ou andar de um lado para o outro a fazer coisas, até ter vontade de me sentar à mesa do escritório e recomeçar a escrita no ponto em que a deixei. Sou demasiadamente anarca para ter ‘rotinas’ bem estabelecidas. Mas o ser humano, criatura de hábitos, repete-os no seu quotidiano. Assim, gosto de ir beber o meu copo de água com sumo de limão, fazer café, porque adoro o aroma que invade a casa, enquanto cozo os flocos de aveia do começo do dia. Entretanto, recebo os entusiásticos bons dias dos cães, que andam à solta no terreno e entram em casa quando lhes apetece, leio as notícias no ecrã do computador, respondo a emails e passo os olhos pelas redes sociais. Boas desculpas para adiar o momento de retomar a rotina. Resisto o mais que posso, porque escrever dá muito trabalho, mesmo que a escrita esteja a fluir.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
O meu ritual está descrito acima. Quando estou num pico de trabalho, com um livro já em velocidade cruzeiro, todas as horas podem ser boas para trabalhar, mesma as da madrugada, porque carrego a história comigo para todo o lado, e torna-se uma pulsão quase física dar-lhe corpo. Evidentemente que, ficção ou não ficção, todos os meus livros pedem muita, pouca ou moderada pesquisa, de modo que faz parte deste ofício a leitura ou releitura de obras complementares. Mas como digo, nunca nada é rigorosamente sempre da mesma maneira. As coisas nascem e as ideias atropelam-se para nascer. Posso numa dada altura estar mais fluente à tarde, noutra é de manhã bem cedo que, no silêncio e na paz dos dias que ainda mal começaram, a escrita se torna mais fácil. Acima de tudo, também escrevo muito em termos mentais. Organizo os enredos por frases que me assaltam com limpidez cristalina, antes de adormecer, ou um pouco antes de acordar completamente. Mastigo-as, saboreio-as, sinto-as no corpo, mergulho nelas. Fazem música. Nunca consigo, no processo mais material da escrita, atingir aquela beleza que me abençoa às vezes no pensamento de escrever. O espírito resiste à sua densificação material.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho metas e o processo é irregular. Há dias em que não escrevo. Mas é raro escrever, literariamente, mais do que cinco páginas, o que dá cerca de 15 mil caracteres em linguagem informática de word. Normalmente, escrevo cerca de três páginas por dia no caso dos livros, romances, bio ou ensaios. Se for um artigo, para um jornal, consigo ultrapassar essa média.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
No caso do romance o processo é mais instintivo, menos racional, e não começo por compilar notas nenhumas. A história, que pode começar por meia dúzia de frases, cresce, e desembrulha-se, de forma quase febril, durante algumas páginas e até capítulos. Aconteceu-me assim com Jardins Secretos de Lisboa, Xerazade – a última noite, Meu único grande amor: casei-me! E com os juvenis, todos, quatro livros da mesma coleção ‘O Mundo de André’. A pesquisa começa depois, para acompanhar e suportar a narrativa, quando os imperativos de tornar reais, quer as personagens e os mundos onde se movem, me fazem sentir a necessidade procurar as suas geografias, os seus tempos, as suas realidades.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Uma boa parte da escrita é oficina. As travas não constituem obstáculos de maior. Deixo fluir, e sigo a corrente. E a, ou as, soluções surgem. Na verdade, o processo, sendo sempre intenso, é quase sempre tranquilo. Não dou energia às «expectativas». A única expectativa que me alimenta enquanto escrevo, é a de corresponder ao meu próprio nível de exigência. Não penso em «os outros». Não há, nesse horizonte, qualquer figura que, de longe ou de perto, represente sequer, o vulto de «o» leitor ou a «leitora». O processo, sendo boa medida muito racional, tem uma contrapartida muito genesíaca no sentido mais orgânico do termo. Se demora mais tempo, demora mais tempo. Se vai ser um êxito ou não, são detalhes a que não presto atenção. A pessoa que tem de ser convencida da do equilíbrio, da lógica do enredo, da estética da partitura, sou eu. A pessoa que tem de ser seduzida por tudo isso, sou eu. A música que move todas estas palavras, sou eu que começo por ouvir, e sou eu que a sigo, corrigindo os meus passos, as minhas frases, sempre que sinto desarmonia ou menos harmonia. Mesmo este «eu» é de uma outra natureza, pouco afim do euzinho dos quotidianos outros, porque não atrapalha, e sim apoia e impulsiona. É o eu da ligação do racional ao inconsciente, num processo onde se mergulha, muitas vezes, a grande profundidade noutras camadas. A concentração é muito grande.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Todos os dias leio e releio o que escrevi na véspera. Revejo com muitíssima frequência o trabalho feito, para burilar, aqui uma palavra repetida, ali uma virgula a mais ou a menos, além uma discrepância de datas, ou nomes ou de lógica. Por vezes, mostro o que estou a fazer. Aos meus pares – no caso de textos mais académicos, ou mais suportados nessa vertente, a que retiro o ‘peso’ para os tornar legíveis e sedutores, a mim e por consequência, aos outros. Nunca mostro o trabalho todo. Disponibilizo aquilo que chama as «ecografias» da obra. Ao meu editor, e amigo, vou sempre mostrando algumas partes antes de lhe enviar o texto completo. A opinião dele é muito importante. Os seus comentários, sempre sóbrios e sempre justos, são outros tantos faróis que me deixam ver os livro pelo olhar de outrem a quem respeito profundamente.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
No computador. Até as cartas, escrevo no computador. Dessa forma, a velocidade da escrita acompanha melhor a velocidade do pensamento. Adoro a tecnologia. O computador, que comecei por rejeitar com toda a veemência, conquistou-me. É uma ferramenta essencial. Um aliado.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Os únicos hábitos que cultivo, que nem são hábitos, são a procura de harmonizar e respeitar e viver em consonância com a minha natureza, atenta, interessada, apaixonada. Enquanto me sentir viva, e o pacote é muito complexo, frequentemente inquietante ou doloroso (não somos ilhas e o que se passa no Mundo é aterrador a todos os níveis), enquanto me sentir viva como dizia, vou manter-me criativa. Assim o meu hardware suporte esta criatividade. Digo, a central das ideias.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O grau de dificuldade e complexidade da escrita, pelo menos no meu caso, aumenta com o passar do tempo até porque o grau de exigência é muito maior. Àquela que eu era, nos meus primeiros textos, não diria nada de especial, mas agradecer-lhe-ia pelo capital de entusiasmo com que se atirou para dentro do poço sem fundo das palavras vivas, para com elas voar sobre os infinitos oceanos da imaginação e do pensamento. Tento manter, ainda hoje, essa inocência e essa alegria em tudo o que faço. Se isso, era tudo muito mais difícil.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gosto exatamente de estar onde estou, a fazer o que estou a fazer. Mas tenho uma lista de livros em fila de espera, à espera de serem escritos. E outros que releio, os meus clássicos, a secção gourmet das minhas estantes, para além de alguns novos que vou descobrindo.
A minha atividade nos domínios da defesa dos direitos ambientais e humanos, e no que toca à defesa animal é muito intensa e ocupa-me também a tempo inteiro. São uma das diretoras de uma Associação altamente combativa, no terreno, em matérias profundamente sensíveis como a defesa dos oceanos. Nem eu própria consigo entender como dou vazão a tanta coisa. Mas há pessoas que fazem tapetes muito mais elaborados, cruzando centenas de linhas e misturando cores incríveis, e no fim fica tudo certo e emerge o desenho total. A vida de viver é isto.