Mano Melo é poeta e ator.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu nunca tive assim uma rotina. Eu sou um escritor diferente, porque também faço shows interpretando o que escrevo. Então, minhas manhãs dependem da hora em que vou dormir. Em geral durmo 6 horas por dia. Agora com a pandemia, tudo mudou. Meu sono ficou picotado, acordo várias vezes durante a noite, pela manhã ainda estou sonolento. Estou trabalhando um texto inacabado há muitos anos atrás, que sempre quis retomar, mas com as rotinas de shows e apresentações ao vivo, sempre postergava. Agora com a pandemia, estou aproveitando para desengavetar textos inacabados. A pandemia me encontrou numa fase muito profícua, e a única forma de suportar o confinamento é escrever muito. Então, acordo, tomo café, vou caminhar no calçadão da praia, com todas as precauções, ruminando as ideias. De volta, depois do banho, sento para ler e revisar o que escrevi no dia anterior. Vou almoçar, tiro uma siesta e depois recomeço de onde parei. Sento no computador por volta das seis horas, hora da ave-maria. Escrevo até a hora do Jornal Nacional quando dou um break. Depois do jornal, recomeço até em torno das onze. E assim vai. Tem dias que escrevo muito, tem dias que é mais devagar. Importante é manter a máquina azeitada para que as ideias não virem águas paradas, porque água que não flui vira poça e fica suja. Mas depende muito do que esteja escrevendo. Se poesia, é um lance rápido, a ideia surge e é preciso captar senão ela vai embora, ás vezes para sempre. É preciso estar atento. Atento e forte, como se dizia na época da Tropicália. Ontem, por exemplo, quando estava lendo os jornais pela manhã, vi numa reportagem um cara dizendo, sobre o caso do rapaz assassinado no Carrefour, que a “brutalidade era a regra”. Então me surgiu uns versos, assim já prontos, que anotei num papel:
Engrenagem cruel,
Esta máquina que nos oprime.
Para a gente mais pobre,
Seja branca, índia ou negra,
Brutalidade é a regra.
Tudo é uma ganância sem fim.
A cabeça das pessoas fica assim.
Outra vez foi numa conversa com uma amiga, por telefone, quando ela me disse que, pelo isolamento do covid, sentia muita falta de sair por aí caminhando a esmo. Quando desligo o telefone, surgiu uma rima que achei perfeita:
Não existe caminhar a esmo.
Todos os caminhos levam á Roma
De nós mesmos.
Encasquetei com esse lance de rimar esmo com mesmos, uma palavra no singular e outra no plural. Tentei uma solução, não encontrei. Então entreguei para o reino do irretocável. Rimas, ás vezes, nos chegam de viés. Não é imprescindível, se pode poetizar sem rimas, claro. Mas se eu tenho desde criança essa facilidade com elas, por que não usar? Uso rimas, ás vezes, até mesmo em textos de prosa. Na prosa, não é propriamente uma rima, mas acredito que para o texto ser bom, as palavras tem que combinar entre si, conversar entre elas. Tem destes poemas que surgem assim de repente, como meteoros mentais das profundezas do subconsciente. Outros chegam mais extensos, o que nos impele a escrever de forma concentrada. E que precisa burilar por vários dias até ficar pronto. É a fase de cortar todas as palavras supérfluas, tudo que seja desnecessário. Cortar, lapidar, esculpir, até que tudo fique nos trinques. Mas existem poemas que acrescentamos ou cortamos até mesmo depois até de já estarem publicados. Pelo menos comigo acontece assim.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Antes da pandemia, gostava mais de madrugar. Atualmente, com o isolamento da quarentena, gosto deste clima de final da tarde. E também deste horário de 9 até às 11, meia noite. Depende de como as coisas estão fluindo. Agora, quando estou pegado num texto longo, seja poema ou prosa, aí não tem horário, ás vezes acordo no meio da noite com frases inteiras flutuando na cabeça. Na juventude, dividi durante um tempo um apê com amigos em Santa Teresa. Certa noite, acordei com um nome, Jimi Rango, latejando na ideia. Não sabia o que significava. Fui á escrivaninha e anotei numa folha de papel: Jimi Rango. Voltei a dormir. Dias depois, acordei outra vez com o mesmo nome burilando na cabeça. Levantei e comecei a escrever um poema longo, umas cinco páginas, O Evangelho de Jimi Rango, que deu título ao meu primeiro livro. Até hoje me impressiono com este poema, surgiu assim, veio quase pronto, mexi pouquíssimo, eu que tenho o hábito de ficar remoendo e reescrevendo várias vezes até me dar por satisfeito. O que me impressiona nesse poema é que ele trazia certas premonições sobre fatos que aconteceriam mais adiante em minha vida. Como, por exemplo, descrever um personagem em viagem pelo oriente profundo, coisa que nem cogitava ainda, e que acabou acontecendo: “viajou nas asas do anjo por ásias queimadas, curtindo um barato nas baratas caretas com sangue de pus.” Um poema longo, feito de uma enfiada só. Longe de mim querer me comparar ao maior poeta da língua portuguesa, mas naquela noite vivenciei algo parecido com o que Fernando Pessoa descreveu como sua noite triunfal, quando na madrugada, de pé ante sua escrivaninha como costumava escrever, criou todo os cantos de O Guardador de Rebanhos, quase sem retoques, e assinou com o nome de Alberto Caeiro. A poesia por vezes nos leva a fenômenos assim. Somos agraciados com epifanias inexplicáveis. Parodiando o Chicó do Ariano Suassuna, porém sendo absolutamente verdadeiro: “não sei, só sei que foi assim”.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
É raro o dia que não escreva alguma coisa. Mas não tenho metas nem horários programados, tudo sucede de forma espontânea. Acho que sou um espécime raro de máquina de escrever. Quer dizer, máquina não, que máquina não tem sentimentos, e eu tenho. Mas não tenho períodos concentrados. A não ser quando entro em alguma tarefa específica que exija longo fôlego. Por exemplo, esse estudo sobre arte brasileira que estou trabalhando agora, que intitulei de Caldeirão Cultural ou O Rei Ficou Tão Nu Quanto Uma Lady Godiva Careca. Então tem o impulso de levar adiante todos os dias, até a primeira versão ficar redonda, com princípio, meio e fim. Depois tem a fase dos retoques, dos cortes, descartar as palavras excedentes, ficando apenas o essencial.
Um momento em que precisei muita disciplina foi durante a escrita de meu romance Viagens e Amores de Scaramouche Araújo. Se poesia é um passeio nos astros, romance é uma navegação de longo curso. Quando encarei a tarefa de escrever Scaramouche, personagem que criei para viver todas as tribulações de uma viagem através de cinco continentes, eu sabia exatamente qual o porto de início e qual o porto do final. Essa era a bússola, a trajetória a seguir. Na navegação, houve períodos de calmaria, períodos de tempestades e raios, ventanias, portos seguros, mares calmos, mares revoltos. Criei uma disciplina: todos os dias, por pelo menos duas horas, sentar e levar a história adiante. Com o tempo, as duas horas não eram mais suficientes, já acordava pela manhã sabendo exatamente o que escrever durante o dia, ás vezes sonhava com histórias inteiras. E foi um grande mergulho em minhas memórias, pois o personagem foi concebido para viver aventuras que eu próprio vivi, em minhas viagens mundo afora, nos anos 70 do século passado. Um mergulho muito profundo dentro de mim mesmo. Escrevia sem críticas ou censuras, deixando jorrar tudo que queria sair, sem burilar, sem pensar estilos ou técnicas, sem certos ou errados, apenas levar a história adiante a cada dia. Perto do final eu já escrevia de forma compulsiva. Até que um dia achei que a história estava completa. 620 páginas. Aí deixei três meses na gaveta, sem dar sequer uma olhadela, só de pensar em ver já me fazia cócegas na barriga. Quando retomei, eu tinha adquirido o necessário olhar crítico. Vi que havia trechos parecidos falando dos mesmos temas sem variações, vi que podia resumir em um parágrafo coisas que ás vezes estavam ocupando mais de uma página. De releitura em releitura, de corte em corte, dei o livro como finalmente pronto. As 620 páginas reduziram para 287. Todo o supérfluo, as perfumarias, os enfeites desnecessários, tudo que não impulsionasse a narrativa para a frente, tudo que se pudesse reduzir no mínimo de palavras possíveis, para ficar escorreito, claro, agradável de ler. Queria um livro que o leitor se sentisse viajando junto com o personagem, vivendo todas as aventuras em parceria, que fosse impossível de parar a leitura depois das primeiras 30 páginas. Creio que, modéstia á parte, alcancei este intento. A Five Star Editora se interessou, fez uma edição primorosa, com uma capa linda e chamativa, uma figura humana com o mapa do mundo tatuada em toda a pele. Na minha modesta opinião, a capa mais bonita publicada naquele ano. Esgotou rápido uma edição de 3 mil exemplares.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Sabe, raramente faço pesquisas. A proporção que vou escrevendo, quando surgem ideias, tomo nota pra não esquecer, ou gravo em áudio, mas uso pouco este recurso de gravar, prefiro papel, ou direto no computador, se estou em casa. Aí fica um banco de dados para qualquer necessidade. É raro eu recorrer a pesquisas, só quando quero me certificar de alguma data, buscar detalhes para um fato histórico eventualmente abordado. Minha fonte de dados mais constante é a memória. Uso pesquisa, sim, quando é um trabalho de encomenda com prazo de entrega, roteiros de video, por exemplo. quando o tema não partiu de uma premissa minha e tenho que emprestar a pena para a ideia de uma outra pessoa. Então, tenho que procurar subsídios . Quase sempre, alguém faz uma pesquisa e me entrega detalhado. Quando o texto pede informações sobre determinado fato e eu não tenho o conhecimento necessário, vou em busca de esclarecimentos. Mas repito, a minha maior fonte de informação é minha própria memória.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Caramba! Esses momentos são terríveis! A famosa síndrome de pânico ante a página em branco, li e ouvi muitos escritores falando sobre isto. Eu sinto de uma forma intensa. Quando chega o momento de iniciar um texto longo, sinto muito medo de ter desaprendido. Sento na escrivaninha, mas não consigo, tento iniciar várias vezes. Então vou adiando. Levanto, vou na esquina tomar um café. Quer dizer, antes do pandemonio da pandemia. Mas levanto, vou beber água, vou pro facebook jogar conversa fora. Ás vezes algum amigo bate á porta e me salva. Vou adiando. Pego livro pra ler, vou ver futebol na TV, vou jogar xadrez, tem um site que se pode encontrar parceiros no mundo inteiro, todos os dias antes de iniciar os trabalhos jogo uma melhor de três. Até que tem um ponto que a coisa está tão viva dentro da cabeça que não dá mais pra adiar. Aí vai saindo uma coisa amorfa, meio sem sentido. Você lê, não acha muito sentido, mas continua. Até que percebe a coisa tomando forma, o texto mesmo é teu guia e vai indicando os caminhos. Você acha a vertente, envereda por dentro, vai destrinchando o matagal, atravessa os pântanos até que se tornem em águas ( nem sempre) claras. Gosto de textos em que as pessoas se identifiquem, que sejam de fácil compreensão e agradáveis de ler. A meu ver, os grandes escritores primavam pela simplicidade. Nada mais simples que um texto de Shakespeare ou um poema de Pessoa: “nunca conheci quem tivesse levado porrada.” “Ser ou não, ser, eis a questão.” Frases que todos entendem, e entraram para o acervo cultural da humanidade. Querem textos mais simples que estes? Não existe nada mais sofisticado que um texto simples, sem filigranas desnecessárias. Ao meu ver, a escrita fica ruim se ao escrever estamos preocupados em fazer literatura. Há exceções na regra, claro, vide Joyce e Guimarães Rosa, que são geniais. Mas autor que já escreve com essa intenção de ser literato, acho um saco.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso N vezes. Em geral, quando dou um texto por pronto, deixo adormecer alguns dias antes de reler. Sempre surgem mudanças, alguma palavra fora do ritmo ou da ideia que quero expressar. Ás vezes vêm amigos aqui em casa e leio trechos. Se é poema, gosto de dizer em voz alta, já para testar como será a reação do público. Mas são poucos amigos a quem recorro para isso. Evito aquelas respostas tipo tmj, essas bobagens. Podes crer que quando leio a alguém um texto ainda em gestação, é porque acredito muito na pessoa. Quando dou como pronto, aí escancaro, quero ler ao público. Não existe nada mais prazeroso para um poeta como eu, que tem o dom da oralidade, se comunicar diretamente com seu público, de estar num palco e sentir a vibração das pessoas. Fim de semana passada rompi a quarentena e fui fazer dois shows em Tiradentes, na I FLITI, Festa Literária de Tiradentes, em Minas Gerais. Eles tomaram todo o cuidado sobre a pandemia, álcool gel em profusão, todos de máscara e lotação reduzida para a metade, evitando aglomerações. Foi um refrigério para minha alma, estava com muitas saudades disso, voltei ao Rio de alma lavada.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Atualmente, escrevo direto no computador. Você ganha muito em agilidade. Em compensação, voc6e perde no processo o caminho de chegar ao texto definitivo. Veja, por exemplo, os manuscritos do Guimarães Rosa. Você pode acompanhar o processo, a primeira versão de uma frase e as anotações e cortes até chegar ao texto definitivo. Quando escrevemos direto no computador, apagamos estes vestígios, estas pegadas, ficamos apenas com a versão definitiva.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Gosto de jogar uma melhor de três de xadrez antes de começar a trabalhar. Isto limpa a cabeça, deixa esperto. As ideias não desaparecem, mas a mente fica esvaziada de conflitos, vira tábula rasa, receptáculo vazio a ser preenchido de acordo com a fluidez do texto.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Na verdade, como metodologia , não mudou muito. Adquiri alguns conhecimentos no decorrer da vida, claro. Tenho vocabulário mais extenso, tenho um diálogo maior com as palavras e aprendi a driblar dificuldades. Um livro que muito me ajudou no início foi a Cartas A Um Jovem Poeta, do Rainer Maria Rilke. Eu li adolescente ainda, na minha formação de poeta ainda tenro, buscando a opinião dos mais experimentados. Neste período, aprendi a fugir de temas muito comuns, que muitos grandes escritores abordaram, como Amor, Liberdade, esses temas mais esdrúxulos. Só voltei a eles quando me senti com maturidade suficiente. Em temas políticos, por exemplo, aprendi a não ser panfletário. Expressar as ideias sem ares professorais de quem é dono da verdade. Se eu fosse o dono da verdade, eu vendia. Tive um período de aprender a me expressar sem textos peremptórios, isto limita muito. Tudo na vida tem várias formas de serem percebidas, de frente, de lado, de pé, deitado, o tema abordado tem várias ligações e nuances, é preciso ter clarividência para escolher o que mais se coaduna com suas sensações. Outro trabalho que muito abriu a cabeça foram as Páginas de Doutrina Estética e de Auto Interpretação, do Pessoa. Fernando Pessoa ainda hoje é fundamental na minha vida. Desde adolescente, quando descobri suas Poesias completas, aquele volume da Aguilar em papel bíblia. Como ele escrevia simples, e que profundidade! Isto em todos os heterônimos. Só pelo privilégio de poder ler sua obra no original, já compensa ter nascido em um país lusófono.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Em Viagens e Amores de Scaramouche Araújo, eu romanceei minhas aventuras pelo mundo nos anos 70, viagem que me fez percorrer 34 países. Eu gostaria de fazer, e está em mim como um próximo projeto, narrar a trajetória desde que cheguei de volta ao Brasil, trazendo inéditos debaixo do braço e buscando me afirmar como um poeta ator e escritor. Tenho o livro na cabeça, mas não sentei pra escrever ainda. Talvez este Lady Godiva, que busco retratar como um breviário da história da cultura no Brasil dos Anos 50 do século passado até aos dias de hoje, seja um embrião para este próximo livro. Isto porque é todo voltado para minhas próprias vivencias e memórias destes momentos culturais em que fui plateia e protagonista ao mesmo tempo. O que penso escrever neste próximo livro é uma espécie de autobiografia não tão precoce assim. Dos primeiros tempos de chegada ao Brasil, meus primeiros recitais, as pessoas que encontrei nesta trajetória. Creio ser um tema bem interessante.Não pela minha pessoa, mas sobre a história cultural brasileira. Este é o livro que não existe ( ainda) que gostaria de escrever.
Vou finalizar com um apelo pessoal. Acaba de sair ( novembro 2020) o audiolivro O Lavrador de Palavras. Este livro teve duas edições esgotadas em papel e recebi a proposta de gravar um áudiolivro, pela editora Livro Falante, de São Paulo. É minha primeira experiência com livro digital. Faço um convite para que você que me está lendo busque conhece-lo. Você pode encontrá-lo aqui.