Malu Rangel é doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Absolutamente aferrada à rotina.
Faço parte da norma geral. Ou do grupo majoritário dos taurinos, localizados no meio-dia do signo; os lugares-comuns dos manuais astrológicos. Aqueles que não funcionam sem: levantar com calma, lavar o rosto, preparar um (ótimo) café da manhã, devorá-lo em silêncio.
Acordar aos poucos, para mim, é despertar o estômago e o coração para as palavras do dia.
Para o meu desespero, quase nenhum dia útil é assim; e final de semana não vale, pois se encerra na sua programação própria.
Eu poderia dizer, com honestidade, que sonho em ter uma rotina – sendo absolutamente aferrada a esta possibilidade renovável a cada manhã.
O habitual: as poucas e boas horas de sono; o acordar com o despertador; o preparar o café da manhã (ótimo, na medida do possível) driblando a cachorra e conversando sobre afazeres do cotidiano, lição de casa, horário para a natação, supermercado, leituras atrasadas, livros terminados, últimas notícias, louça para lavar e camas para arrumar.
As palavras se encarrilham e acham seu lugar na rapidez do pensamento, na correria do dia a dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Os melhores horários de trabalho são este meio da tarde ensolarado de onde escrevo; vento ligeiro, temperatura amena, cachorra cochilando, silêncio na vizinhança. Por vezes olho para o lado e enxergo a vista da varanda, que pega o bairro de casas baixas, esverdeado. Adivinho a Cidade Universitária, o melhor ponto do Parque Villa-Lobos onde espero correr mais tarde. Respiro, um gole de água, volto à tela do computador.
Fico feliz quando isso acontece, e por vezes acontece – por vezes escolho acontecer. Dentre os trâmites do cotidiano – “o nosso amor é tão bom/ ninguém fala mal da rotina” –, dos afazeres que se misturam às leituras (caminhadas ao mercado, ônibus, ubers que cruzam o dia e por vezes exemplificam a ficção e a teoria – ou seria o contrário?), a tarefa de escrever fica reservada para os momentos silenciosos da madrugada.
Eu, que não me imaginei sendo uma escritora da meia-noite (gosto do avarandado ensolarado; gosto das mesas isoladas em jardins; odeio cafés, livrarias e espaços de trabalho compartilhados) me sinto tranquila em companhia do silêncio da noite (“a noite – enorme”). Tudo dorme. Há pássaros deslocados cantando por volta das duas da manhã, avisando a hora de parar; e só não consigo avistar os cantos esverdeados da Cidade Universitária.
O meu ritual – manhã, tarde, noite, madrugada – é sempre ultrapassar a primeira frase. Começar a escrever (como começar a correr; como pular na piscina) é, para mim, um momento difícil. A partir da primeira frase, sinto o pé fazendo peso no pedal. A corrente da bicicleta roda, a marcha engrena, os dedos batem o teclado: é música, é escrita.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não seria uma boa maratonista da escrita, pois sou péssima em traçar metas – embora seja ótima para ter ideias, para realizá-las (mesmo que demore) e para cumprir prazos. Pois então, quando há datas, há a obrigação de períodos de escrita concentrados… Embora, dentro deles (lembro disso especialmente durante a escrita da tese de doutorado) precise haver momentos de silêncio. As tardes brancas, que não rendam mais do que três linhas. Páginas brancas, verdadeiros respiros, travessias silenciosas que guiem o texto para noites verborrágicas, madrugadas repletas de ideias – embora, por vezes, pouco disso se aproveite e aquele parágrafo da tarde seja, enfim, percebido como diamante lapidado.
Direto ao ponto: não tenho metas de escrita diária porque não acho que o ritmo (e a diversão) que escrever traz respeite acordos protocolares, mesmo que, por vezes, eles tenham que existir.
Vamos indo, assim, entre a manhã com a rotina sonhada e a manhã com a rotina possível. Neste espaço, real, é que nascem os meus escritos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não separo pesquisa de escrita. Ler; tomar notas; reler; grifar; algumas vezes abrir documentos no computador onde os textos são copiados para depois serem utilizados (ora como citações, ora como referências indiretas) são passos concatenados com a escrita. Escrevo. Paro. Leio. Apago. Busco um livro. Lembro de outro. Leio. Volto. Escrevo. Apago. Escrevo. Gosto.
Parece tortuoso – e é. Mas se não houvesse esta liberdade, não seria criativo. Não seria divertido. E escrever, precisa ser aventura, diferente a cada ensaio, resenha ou capítulo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acredito na liberdade do processo de pesquisa e de escrita. Acredito no trabalho. Acredito que o trabalho precise, antes de mais nada, revelar verdade e satisfação a quem o está produzindo. Estas são as maiores ansiedades e expectativas: lidar com os nossos próprios medos, vergonhas, insatisfações. Escrever para mim, antes de tudo, sempre foi escrever para e sobre mim mesma. Elaborar uma pesquisa, encadear ideias em um texto longo, é revelar sua forma de estar no mundo. Pois não é? Escrever é descrever o mundo (o mundo que se elege: naquela pesquisa, naquele projeto, naquela ficção) com as próprias palavras. Há poucas coisas mais difíceis. Quando nos propomos a uma aventura assim, o que mais temer?
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso enquanto escrevo. Meu processo de escrita não é linear – embora seja metódico. Pesquiso, escrevo e reviso quase ao mesmo tempo, sempre parando para ler e reler, dentro e fora do meu texto.
Sou solitária no processo. Só divido ao terminar, porque sinto que já me divido em muitas, nessas múltiplas tarefas combinadas, ao escrever.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho diversos cadernos com notas geniais, aos quais nunca volto…
O que vale são os escritos no computador. Depois da primeira frase, estou pronta, e vou indo, e vou voltando, até sentir que acabei.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Ouvir Caetano, Chico Buarque, Gilberto Gil. Descobrir Milton Nascimento. Lembrar do Paulinho da Viola. Todo Drummond, certo João Cabral. Algum Guimarães Rosa, quase nenhuma Clarice Lispector. Sempre voltar para a Lygia Fagundes Telles e para o J. Veiga da adolescência, descobrir novas e novos poetas desta e de outras terras. Ouvir histórias, que saudades das histórias de minha avó. Assistir alguns filmes mas, especialmente, correr por aí e observar os outros.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Como todo processo de amadurecimento, depois destes vinte anos de escrita, escrevo com mais certeza. Não certeza sobre o mundo, certeza sobre teorias das mais diversas – isso é dedo em riste no rosto alheio; pedantismo e autoritarismo, tudo o que deixa a escrita regrada, chata. Escrevo com mais certeza do ponto onde quero chegar. E, para chegar, me permito brincadeiras, me permito rodeios, me permito diversões que no começo talvez eu nem soubesse que existissem. Um conselho para os meus primeiros textos? Divirta-se, Malu, divirta-se.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de costurar. Tenho tantas ideias para vestidos como para textos.
Um livro que não existe? Não saberia dizer – é uma das alegrias de frequentar bibliotecas, feiras, livrarias. Há sempre um livro (e um jeito de escrever) pronto para ser descoberto.