Maira Garcia é poeta, redatora, autora de “Depois da Lua de Ontem”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo, tento lembrar se tive algum sonho. Levanto e me preparo, tomo café e começo meu dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Posso trabalhar a escrita a qualquer hora do dia, mas tem situações que são quase ritualísticas, como estar dentro de um transporte público. Minha rotina antes da pandemia acontecia mais nos trajetos dentro do trem, metrô, ônibus e na rua, e quando chegava em casa. O transporte coletivo não tem feito parte da minha rotina desde março e agora escrever tem se dado de outra forma. Em 2011 criei o blog Depois da Lua de Ontem na volta de uma oficina de Contos do escritor João Carrascoza. Uma Lua cheia imensa na janela da sala do Sesc Belenzinho me trouxe a frase em casa, assim que o relógio avisou que era meia noite. Nesse tempo usava um celular pequeno, desses bem baratos com internet e apenas o Facebook instalado. Dava pra escrever com poucos caracteres, algo em torno de quarenta. Lembro bem da manhã a caminho do trabalho, dentro do trem. Escrevia no celular me segurando num lugar lotado, deixando livre o pensamento pra qualquer coisa que viesse na cabeça. Em casa colocava os textos do face no blog e escrevia algo a mais que tivesse anotado. Sem saber no meu desafio do trem eu estava criando uma rotina de escrita. Era algo que me transportava pra outro lugar. Em 2011, escrevia algumas vezes na semana, entre 2012 e 2013 passou a ser diário e apenas na ida e na volta do trabalho e quando chegava em casa. Em 2013 escrevia várias vezes ao dia, porque aproveitava as pausas do trabalho, horário de almoço, trajetos, o que viesse e passei a ter um diário poético. Nem tudo que escrevia postava, alguma coisa deixava no caderno. Ao comprar um smartphone em 2014, sem a restrição dos caracteres, acabei escrevendo textos um pouco maiores nos e fazendo muitas fotos (algumas estiveram nos cartazes da Primavera Literária Brasileira de 2019, sob a curadoria dos alunos do professor e poeta da Sorbonne, Leonardo Tonus) inspirada no trabalho que o fotógrafo Gal Oppido faz nas ruas e posta no Instagram. As fotos impactaram meus poemas, porque se conseguia uma foto boa que trouxesse poesia, algum poema se calava, porque na ação eu ficava satisfeita. Mas se a foto não bastava, a mesma me pedia outro poema, e assim sucessivamente. A partir dali tinha os textos inspirados no caminho e os criados através das fotos. Com a chegada das imagens, não tendo mais a restrição dos caracteres no smartphone, ainda assim meus textos continuaram pequenos. Meus poemas não cresceram, não saíram da adolescência, não sei se os terei adultos e grandes.
No meu blog reúno pequenos contos e aforismos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Desde 2012, ano que a produção passou a ser mais intensa, escrever começou a fazer parte do meu dia a dia, mas nos finais de semana a coisa diminuía, principalmente aos domingos, porque a rua e a multidão sempre me inspiram mais, e nessa época, até 2015, trabalhava também aos sábados. Nos primeiros cinco anos do meu blog cheguei a escrever vários poemas por dia, mas não era uma meta, e sim uma vontade grande de trazer algo. Tirando o início da quarentena, período que não escrevi, costumo fazer um texto por dia. Até 2018 postei cerca de 3000 textos no meu blog Depois da Lua de Ontem.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Minha escrita surge da atenção e a vontade de escrever. Por isso preciso sempre de uma caneta, ou lápis macio, caderno, bloco de notas ou celular na mochila. A minha musa se chama vontade. Uma vez no cinema, cheia de vontade, sem poder usar o celular, procurei uma caneta, coisa que consigo manusear no escuro, como não achei precisei ficar memorizando o poema durante a sessão. Aconteceu no filme Adeus à linguagem do Godard. Ao sair da sala consegui escrever no celular. O que tem me ajudado agora que não tenho os trajetos que fazia, e dos lugares que mais gostava de ir, como Centro, Paulista e o Grajaú, em São Paulo, meu recurso é a memória das ruas. Fotos feitas com muita coisa da cidade, seus detalhes e suas pessoas desconhecidas, muitas com fotos desfocadas e sem mostrar os rostos, estão guardados no meu itinerário de escrita. Uso dessa memória e acabo me pegando muito com o pensamento nos lugares que passava, do ABC até a capital de São Paulo. Com essa brincadeira de revisitar as fotos a noite, cheguei a sonhar que estava na Praça da Sé. Foi um sonho de realidade aumentada, me vi saindo da escada do metrô indo em direção à livraria da UNESP, no meio das pessoas, desviando da gente sentada no chão. Quando acordei achei que tinha acabado a pandemia. Foi um sonho que me deu alento.
As ideias vistas como pesquisa também podem surgir no meio da leitura de um livro, um filme, uma peça de teatro, que tenho experimentado de forma virtual agora, uma conversa com amigos ao telefone, coisa antiga que tenho valorizado muito, muita música e situações inusitadas, as que trazem os textos que mais gosto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Na poesia, com exceção do que aconteceu na quarentena, nunca tinha tido travas porque a proposta sempre partia de mim. Tenho experimentado a poesia que sai como exercício no Curso Livre de Preparação do Escritor na Casa das Rosas, no módulo Poesia. Até então, só tinha feito oficina de escrita pra trabalhar prosa, contos. No primeiro semestre aproveitei bastante o conteúdo teórico, mas produzi pouca coisa. Como tudo que estamos fazendo sofre impacto da pandemia, não me cobrei e não fui cobrada, o que permitiu que não desistisse do curso. Agora no segundo semestre, a medida que fui me fortalecendo, saíram coisas interessantes e fico muito feliz de ter continuado na turma onde tenho tido trocas muito ricas através dos professores e o trabalho potente dos colegas. Aprendi com essa oportunidade que a poesia como exercício também precisa da minha disposição, caso contrário não sai, mesmo que recorra a alguma técnica, como as que uso se estou trabalhando como redatora. Na pandemia eu respeitei a vontade que não veio na escrita. A tristeza com as perdas me afetou tanto que de início não conseguia escrever. Assim esperei sem ansiedade que a vontade voltasse. A vontade veio junto com a primavera e trouxe o nome do livro, Antes do Sol de Amanhã.
O medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos, experimentei com meu primeiro e agora no segundo livro. Entendi que meu livro não é só meu porque pra acontecer precisou ter ajuda de muitas pessoas amigas. No primeiro o escritor Caio Silveira Ramos que selecionou 2000 textos para pra chegar aos poemas que deram formato ao livro. Teve ainda a revisão da Mariana Szasz, a capa que deu uma cara linda ao livro, do Gal Oppido, orelha da Isabel Enei e quarta capa da Geruza Zelnys, mais o acolhimento da editora. Pra mim a recepção do livro foi surpreendente graças ao trabalho dessa turma, sem o qual o livro não teria saído. Tive um distanciamento dos textos antigos que foram selecionados, cujo período é 2011 até 2017, e foi desaparecendo a medida que eu relia após a publicação e o retorno dos leitores que me contavam a experiência com o livro. A coisa foi num crescente que a minha expectativa agora é que o segundo traga tão boas sensações quanto o primeiro. Como a editora precisava de uma estimativa da pré-venda, por conta da pandemia, eu fiz um post no Facebook avisando as pessoas pra confirmarem a intenção de ter o livro inbox, e atingimos o dobro da meta por causa dos leitores do primeiro livro. Tenho leitores afetivos, o privilégio de conhecer a maioria deles, que escolhem seus poemas favoritos e contam pra mim. A experiência de conhecer as impressões dos leitores é única!
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Na rede costumo escrever e postar no mesmo instante que o texto chega, meio que tentando respeitar como quer sair, só depois olho e tento ver se dá pra modificar, trocando uma palavra, quebrando uma linha, enxugando. Muitas vezes como vem fica. Se preciso revisar, costumo fazer umas quatro vezes e depois disso, se bato o olho e não me dou por satisfeita guardo.
Os textos podem dormir por meses, um ano, dois, no caderno, ou serem revisitados depois que o Facebook devolve nas lembranças e aí podem ser modificados. Lembranças que a plataforma devolve no aniversário do post, e como não volta tudo, o blog e o caderno ainda são os melhores lugares pra guardar esses escritos.
Desde 2018 diminui as postagens do meu blog, coisa que pretendo voltar a fazer, pois tenho muita coisa pra atualizar do Facebook, cerca de 1000 textos. O blog é meu caderno virtual, com o smartphone comecei a postar primeiro no blog e depois no Facebook. Em 2018 conheci uma advogada de direitos autorais que me garantiu que qualquer postagem na rede já se dava como registro e aí abandonei um pouco o blog. Quero resolver isso em breve, mas não me acostumei com o novo formato do Blogger, gosto mais do antigo.
Durante a pandemia tenho mostrado meus poemas inéditos para o Caio Silveira Ramos através do Whatsapp, porque o Caio não tem Facebook. Graças ao aplicativo temos escolhido alguns poemas do segundo livro. Por conta disso ele acabou sendo meu primeiro leitor pros poemas que fiz de maio pra cá.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Na cidade, antes da pandemia, se estava numa situação segura, pra poder manusear o aparelho, escrevia direto no celular, do contrário seria o caderninho. Computador só se estivesse em casa trabalhando nele. Se preciso ir pra rua agora, coisa que faço uma ou duas vezes por semana, não tenho usado o celular com essa finalidade, nem levo caderno porque os textos não saem. Só quando volto pra casa. A rua exige atenção redobrada, por causa do risco de contaminação, não consigo usar o celular e o caderno pra escrever. Escrever por agora, só me sinto confortável e disponível em casa.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias podem surgir de todos os lugares porque o poema está em toda parte. Nesses tempos, quando voltei a escrever fiz textos que saíram nos serviços da casa, teve até um poema erótico que nasceu no meio de uma lavagem da louça. A motivação que vem das ruas e dos trajetos que eu fazia, tenho conseguido através da memória, e agora a casa tem me dado isso. Por ouvir e vivenciar o luto de tantas formas, sabendo das condições de vida em vulnerabilidade em nosso país, enquanto tenho o privilégio de poder ficar mais em casa do que outras pessoas, a poesia que acontecia lá fora, me deu um tempo e se calou até que eu recuperasse as forças. Nos primeiros três meses da pandemia escrevi e li muito pouco, mesmo depois, quase tudo que tenho publicado nas redes é o que o Facebook devolveu nas lembranças dos anos anteriores. Nos primeiros meses pra me entreter durante e depois do trabalho, ao invés de ler, como fazia, ouvia muito tele jornal, entrevistas, rádio, lives, música e meus primeiros áudio livros. Comprei até uma caixinha de som bluetooth pra acompanhar. Redescobri uma coisa nesse período que me facilita muito, que meu recurso pra falar dos temas, muitas vezes veio da memória do sentimento. Não preciso estar apaixonada, por exemplo. Nesses tempos pandêmicos a música e a voz foi o meu olhar de paquera no texto. Nessas descobertas o Caetano me trouxe vários poemas, só de ouvir algumas palavras. Se ouço uma canção ao acaso que me prende a atenção, desligo rápido o som porque a minha ideia, depois que experimentei as primeiras palavras é me aquecer, sem prestar atenção na letra, como fazem as pessoas que ouvem uma canção de um idioma que não conhecem. Depois que termino o poema volto a ouvir a música e verifico que não falei nada sobre ela, consegui trazer algo que a voz causou em mim.
Antes de 2011 tinha um projeto musical, sou cantora e compositora intuitiva. Sem a música e os shows que fazia a escrita ocuparam esse lugar. Muitos poemas meus têm cara de canções. Mas o meu maior recurso pra deixar o poema acontecer é estar atenta, disponível a um pensamento qualquer que possa fazer eu me comunicar com alguém. E eu tento falar com todo mundo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Com o tempo adquiri mais segurança, mas nada se compara escrever sem saber se seria lida. Isso nos primeiros anos foi importante para respeitar como eu escrevo e quero trazer o poema. Se tivesse noção de público desde o início, em busca de curtidas, talvez fosse diferente. O blog me deu isso. Gosto como aconteceu, valorizou o que eu faço, meu primeiro público no blog fui eu mesma e me diverti bastante, como quem dança sozinha na sala.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho muitas vontades, uma delas é escrever para crianças. Fiz uma oficina com a escritora Andréa Del Fuego no Sesc Carmo, em 2018, onde ela me chamou atenção para a possibilidade num pequeno conto que fiz. Era uma história de um menino que tinha um tio ladrão.
Em 2020, falo como se o ano já tivesse passado, eu tinha planejado fazer um show com minhas músicas e poemas, e o primeiro seria lá no Patuscada do Eduardo Lacerda, da Patuá. Isto ainda está nos planos, tão logo isso tudo acabe, aí será minha volta aos palcos, meu presente pra editora no local onde apareceram os leitores do meu primeiro livro de poesia, cujo dia do lançamento, 31 de agosto de 2019, superou as vendas do livro do Janot na Livraria Cultura!
Experimentei enviar meus poemas pelo Whatsapp entre 2018 e início de 2020, com o meu projeto Poemas na Palma da Mão. Fiz locução pelo SENAC de Santo André, e nunca trabalhei na área, e usei a técnica pra levar meus poemas aos ouvintes de poesia, e pessoas que tem dificuldade de leitura ou cegas. Depois que fui com o CAPSartes (Ong Centro de Arte e Promoção Social que fica no Grajaú, em São Paulo) na Rádio CBN de São Paulo, em 2019, e contei no ar pra Fabíola Cidral que tinha esse projeto, ela pediu pra divulgar meu número do Whatsapp ao vivo, cheguei a ter 300 ouvintes na plataforma. Transformar esse projeto num Podcast ainda está nos meus planos.
Gostaria de ministrar uma oficina com os textos em 40 caracteres. Foi o pouco espaço pra escrever que me trouxe de volta os poemas que fazia quando tinha dez anos de idade, aos 40.
O livro que eu gostaria de ler em prosa já existe, na verdade são quatro, a tetralogia da Elena Ferrante.
Na poesia não tenho um livro sozinho para exemplificar, porque são muitos, então trago uma colcha de retalhos de poemas de livros e canções, com pedaços da Adélia Prado, Wislawa, Conceição Evaristo, Mário Quintana, Cacaso, Ana Cristina César, Elizabeth Bishop, Ferreira Gullar, Leminski, Chacal, Antonio Cicero, Solano Trindade, Luiz Tatit, Gil, Caetano, Vinícius, Elza Soares, Tom, Johnny Alf, Alaíde Costa, Chiquinha Gonzaga, Clara Nunes, Itamar Assumpção, Rita Lee, Grupo Rumo, Ary Barroso, Carmen Miranda e Dona Ivone Lara. Este livro com poetas que escrevem, cantam e interpretam, ainda não existe. Um livro desse jeito, com esta turma que me inspira, e mais gente em verso e prosa, papel e filme, ainda não aconteceu. Então eu invento pra mim, onde os direitos de voz, texto e imagem estão autorizados!