Maiara Gouveia é escritora, autora de “O resto é barulho de água”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
“A manhã começa a bater no meu poema. / As manhãs, os martelos velozes, as grandes flores líricas. / Muita coisa começa a bater contra os muros do meu poema. / Escuto um pouco a medo o ruído das gárgulas, / o rodopio das rosáceas do meu / poema batido pela revelação das coisas…” Herberto Helder
A revelação das coisas, no meu quarto, é anunciada pelo barulho estridente do alarme. “Só mais um pouquinho”, penso. Nesse instante, meu nome é legião. Depois, sigo pelo gesto de esticar os dedos e virar o corpo todo pra esquerda (sei que é pra esquerda porque meu ombro direito às vezes sai do lugar – luxação –, então evito qualquer manobra na direção dele). Esse é o movimento – quase diário – pra sair da cama.
O restante muda de acordo com a exigência do trabalho ou o projeto mais recente. Conforme a época, nem acordada estou de manhã, ou vou dormir justo quando amanhece.
“…Batem nas portas palavras, / sobem as escadas desta intimidade. / É como uma casa, é como os pés e as mãos / das pessoas invasoras e quentes (…) O povo traz coisas para sua casa / do meu poema. /(…) A manhã começa a dispersar o poema na luz incontida / do mundo.” Idem (HH)
Citei Herberto Helder. Podia ter citado Chico Buarque: “escuto a correria da cidade / que alarde / será que é tão difícil amanhecer?”.
Mesmo em tempos de trabalho com rotina inflexível, hora marcada logo cedo, prefiro levantar antes e acordar direitinho, no meu ritmo matutino de quem entra na história pela primeira beirada.
Se fosse de noite ou de madrugada, o texto seria outro.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Preciso de um ponto de partida, e esse ponto de partida é variável: o envolvimento com um livro ou um tema ou uma experiência, o que for que me deixe com excesso afetivo de linguagem. Vou chamar assim: excesso afetivo de linguagem.
Com isso, a escrita puxa fios de si mesma, descobre o próprio método, exige os ajustes necessários, os improvisos e as lacunas necessárias.
Não existe ritual. Pelo menos, não existe ritual fixo.
Prefiro estar sozinha e no maior silêncio possível, mas desligo de tudo em volta se um texto captura minha atenção.
“Mas breve é o começo de um livro – mantém o começo prosseguindo. / Quando este se prolonga, um livro seguinte se inicia. / Basta esperar que a decisão da intimidade se pronuncie. / Vou chamar-lhe fio _____ linha, confiança, crédito, tecido.” Maria Gabriela LLansol
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo diariamente. Notas e textos breves, rabiscados em cadernos ou em blocos (de papel ou nas telas disponíveis). Textos maiores, como ensaios ou artigos, elaboro e organizo em períodos concentrados. Não tenho meta de escrita diária. Mas não fico sem escrever.
“Está em causa o que me move a escrever (o mundo) e o que me faz sentir (a / literatura). São quase sinônimos. E são-no quase porque, entre a literatura e o / mundo há ainda o ressalto de uma frase. Este ainda é precioso. (…) O / ressalto da frase é, propriamente falando, vital. Sem ele, os nossos corpos / não poderiam respirar. Teriam falta de desconhecido.” Maria Gabriela LLansol
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Nunca é difícil começar. Escrever (por aqui) é a própria substância de criar sentido – na carne e no signo.
Seria difícil não começar. Muito mais difícil acabar do que começar. Sempre achei.
A pesquisa é um tipo de leitura ativa, e a leitura ativa é a quase a gênese da escrita. São modalidades do mesmo ato. E vasos comunicantes.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Há nove anos escrevo o mesmo romance, o Salinas. Quando imagino que terminei a escrita, fico profundamente insatisfeita com algo e remexo em tudo. A própria encarnação da Penélope.
Talvez seja um ideal de resultado que se move conforme avanço. Talvez porque ainda não me considere pronta pra me tornar romancista. Às vezes tenho vontade de desfazer o livro em contos, histórias breves. Como escrevo principalmente poesia e ensaio, tenho o hábito arraigado da linguagem concentrada.
Também é como se o livro fosse virando outra coisa conforme o tempo passa. As questões que moviam a escrita dele. O jeito que pretendo escrevê-lo. Assim, uma década quase.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não acredito em texto pronto, só existe texto esgotado, exaurido, e a partir do esgotamento não vai dizer nada a não ser se explicar ou se repetir. É o momento de parar. Na filigrana há sempre o que mexer, e sempre mexo, mesmo depois de o texto ter sido publicado.
Mostro trabalhos pra pessoas específicas antes de publicá-los. Nem tudo, mas boa parte.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Anos atrás, mandei cópias de manuscritos pra gente querida, com detalhes pensados pra cada uma. Como troca, elas mandariam rastros de leitura na forma que desejassem. Chamei essa ação artística de “O Antilançamento”. Isso foi em 2010.
Uma das propostas era pôr ênfase na ideia de que o livro não é só o produto que se lança às vendas; antes disso, é o cerne da correspondência entre quem escreve e quem lê, é um acúmulo de vestígios, secreções, ruídos.
Posso escrever em qualquer meio (mídia), em qualquer suporte – e escrevo bastante no celular e no computador –, mas tenho prazer especial em encher cadernos, folhas de papel, desenhar as letras, pôr a língua na tinta.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias vêm da parte do corpo capaz de perceber o quase imperceptível, da parte do corpo que arrisca traçar zonas em formação, antecipá-las na linguagem, na transição do enigma aos significados móveis.
E toda paisagem é móvel. Com Maria Gabriela Llansol, acredito na escrita-paisagem:
“O falar e negociar o produzir e explorar constroem, com efeito, os acontecimentos do Poder. O escrever acompanha a densidade da Restante Vida, da Outra Forma de Corpo, que, aqui vos deixo qual é: a Paisagem. Escrever vislumbra, não presta para consignar. Escrever, como neste livro, leva fatalmente o Poder à perca da memória. E sabe-se lá o que é um corpo Cem Memórias de Paisagem.”
Criar é abrir e inaugurar a paisagem ao projetar essa mesma paisagem. Chamo essa tarefa de traçar Cartografias do Possível.
(Inclusive, estou lançando uma série de cursos com esse título, Cartografias do Possível. O curso inaugural é “Morfologia do Profano: a irrupção da poesia” e diz muito dos meus processos criativos e de reflexão, de obras que me instigam a escrever, de como penso os efeitos da literatura na arte –como estética e como relação com a política etc.).
Ler ativamente desde as coisas mínimas – habitualmente insignificantes – até as estruturas e os pontos nodais, cruciais. Isso é criativo. Pôr o dedo na ferida. Na ausência. No jogo.
A criatividade é misturada à minha identidade. Não preciso me preocupar em mantê-la.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
“De muito pôr o mundo na cabeça (entre livros, personagens, experiências variadas), de muito olhar para ele com atenção e desconfiança, chega-se à estrutura ficcional de tudo o que existe. Daí, sobram muitos cacos. É desse resto que nasce um escritor-artista”, falei isso em 2011, num trechinho do artigo “estalo no meio da orquestra”, pra oficina A Prática do Texto, da amiga e escritora talentosa Ana Rüsche.
Ainda acredito nessa fala. Ainda é parte fundamental do meu processo de escrita. Porém, se você lê o meu primeiro livro, o segundo e o mais recente, se você acompanha minha produção desde a adolescência até hoje, aos 35, há uma mudança significativa na composição, na elaboração dos mesmos temas.
Amadureci. A escrita amadureceu comigo. Passei por vários tipos de experiência. A escrita experimentou comigo.
“…Refere-se a um acontecimento, um momento, uma mudança vivida como significativa, solene: uma espécie de tomada de consciência ‘total’, precisamente aquela que pode determinar e consagrar uma viagem, uma peregrinação num novo continente (a selva oscura), uma iniciação (há um iniciador: Virgílio – teremos também o nosso).” Barthes comenta a atividade da escrita à luz da Divina Comédia: escrever é estar “a meio caminho desta vida”. (BARTHES, Roland. A preparação do romancevol. I. São Paulo: Martins Fontes, 2005.)
Diria tanto à Maiara mais jovem. Mas não sei se ela estaria pronta pra ouvir.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho vontade de fazer um livro com notas desse tipo, minhas anotações esparsas: “Se a palavra flor abrisse inflorescências. /Se em cada face glabra, abracadabra: /outra forma desdobrada. /E se nada se quebrasse, /nem o baço, nem a margem de manobra. /O abraço ficaria pendurado/ na miragem, / onde a cabra entornaria o seixo, /a despencar no grito (espaço aberto) / e a garganta viraria tempo /– um tempo de retorno – /até que o verbo fosse inverso: /substância, inflorescência. (Poema que não entrou na edição final do Antes que se rompa o fio de prata.)
Isso incomodou o Artaud a ponto de no fim da vida ele só escrever glossolalias. Ele também falava da hiperlucidez do dizer na arte. E a necessidade do teatro era a necessidade de encarnar a palavra.
Mas a palavra pode ser encarnada quando incorporada. Quando se deixa notar o que ela faz no lugar invisível do que abre em nós, e em como somos transfigurados pela relação íntima, intensa, com a linguagem moldável, a que embaralha e desembaralha os signos em composições.
Isso é raiz no meu corpo.”
Quanto ao livro que eu gostaria de ler e ainda não existe, sempre que pensar num assim vou querer escrevê-lo.
“…cada começo / é só continuação / e o livro dos eventos / está sempre aberto no meio.” Wisława Szymborska.