Má Matiazi é escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
De jeito nenhum. Eu não funciono de manhã. Quando não sou obrigada a acordar cedo por conta do trabalho – o que me tira da cama apenas em tempo de me vestir e sair, sem nem tomar um café – acordo relativamente cedo apenas por culpa. Aproveito para regar plantas, ler mensagens, lavar louça, ou qualquer coisa que não torne necessário o uso do cérebro, porque ele só acorda depois das 10h.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Meu cérebro começa a trabalhar criativamente só depois das 17h. Antes disso sou um ser humano normal e bastante preguiçoso. Quando estou escrevendo porque preciso, para cumprir alguma meta que estabeleci, meu ritual consiste em ajeitar ao máximo o espaço que vou usar, para tirar distrações. Limpar, guardar a bagunça, deixar tudo bem confortável, acender um incenso, fazer um café, escolher a playlistou a música ambiente certa. Apenas quando estou muito inspirada, aí escrevo em silêncio mesmo. Escrevo até com fome.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando estou com a publicação de um livro em mente tenho metas de escrita maiores em períodos concentrados, mas, como faço os roteiros da webcomic (O Abismo) e as páginas saem toda semana, estou sempre planejando cenas e diálogos. Não consigo passar um dia sem planejar cenas, mas, como escrevo muitas obras ao mesmo tempo, isso acaba diluindo meus esforços.
Quando penso em publicar um livro estabeleço metas bem apertadas para despejar o grosso da trama na tela, porque só funciono sob pressão. O desafio do NaNoWriMo*funcionou muito bem para mim, embora só tenha tido coragem de participar do primeiro no ano passado (2018). Isso porque a trama só vai para o computador quando está já muito bem definida na cabeça, mas acho que isso já é a resposta da próxima pergunta.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu escrevo Fantasia. Fantasia urbana e realismo fantástico, no geral, mas, pelas histórias se passarem em um Continente fictício, também se pode considerar High Fantasy. Por mais que as personagens tenham vidas bastante normais até que o fenômeno sobrenatural as assalte, ainda assim são vidas em cidades que não existem em um período histórico fictício. A parte de pesquisa é mais um processo de elaboração de uma realidade alternativa crível. Isso também leva um trabalho de notas, um cuidado para não sobrepor acontecimentos ou não torná-los contraditórios. Fora isso, o que me move a escrever é a história, não o cenário. O cenário fica, como em um desenho (pelo menos os meusdesenhos): no fundo.
Desde que eu tenha segurança sobre o que precisa acontecer, eu escrevo com bastante tranquilidade. O problema é quando, em algum ponto da trama, me vejo dividida entre dois ou mais caminhos igualmente interessantes. A personagem A precisa chegar ao ponto B, mas surgiram variáveis X, Y e Z para ela chegar lá. Isso pode me travar por meses. Já tive de sentar com amigos e relatar os acontecimentos em voz alta, pedir sugestões mesmo, para decidir, e isso ajuda muito. Mas não é sempre que a gente encontra interessados em desatolar nossa carroça ficcional: se você tem, valorize!
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sobre as travas da escrita, como introduzi na questão passada, conversar com pessoas ajuda muito, mas a solução mais à mão é: pensar, de preferência longe da folha em branco. Pensar muito naquele nó, fazer simulações de para onde cada caminho iria levar, ver qual deles te deixa mais confiante. As personagens costumam responder isso por nós. São elas que mandam, o que parece meio louco, mas funciona bem na prática. Se tiver dúvida, simule caminhos, mas, para a certeza final, pergunte à personagem.
E quando a trava não é excesso de caminhos, mas um verdadeiro penhasco narrativo na sua frente, bom, a solução é pensar também, ou fazer o completo oposto disso: parar, ler outras coisas, começar a caminhar pelo bairro, largar o celular por mais horas no dia, observar a paisagem, as pessoas, ouvir os passarinhos brigando, enfim, dar um respiro. Quando você menos espera, alguma coisa nesse espaço que você abriu para sua mente encontra uma solução.
Sobre a ansiedade de trabalhar em projetos longos, bom, eu tenho medo de morrer logo porque odiaria deixar a obra incompleta, mas sei que meu controle sobre isso é zero (não zero, eu me previno um pouco, apesar do sedentarismo). O que me resta é trabalhar o máximo que posso para diminuir as chances disso acontecer. Eu já fui muito procrastinadora quanto à materialização do meu mundo ficcional, mas percebo que era porque estava priorizando outras coisas, não simplesmente sem fazer nada.
Mesmo assim me frustra esse quadro de estar com 34 anos e não ter realizado nada significativo, não ter feito diferença para ninguém além de mim mesma. Meu trabalho não passou da barreira das amizades, eu não fui além e não sinto que eu irei. Porque não tenho “a excelência”, não sei lidar com o mercado e isso me desgasta pacas. Mesmo depois de ter trabalhado tanto, não ver conquistas, não ser lida, não ser lembrada. Dói. Ao mesmo tempo, não vejo alternativa: eu já comecei. E não vou parar.
As expectativas? Não há expectativas. Se eu tinha alguma em relação a mim mesma eu já deixei de lado. Eu vou fazer o meu melhor, evoluir o quanto eu puder, tentar deixar o que eu escrevo mais interessante e agradável (ou incômodo, vai do ponto de vista) a cada dia para os fiéis gatos pingados que insistem em ler minhas linhas. Eu não vou longe: mulher, feia, trinta e tantos, ganhando um salário mínimo, por fora do meio acadêmico, morando fora do eixo Rio-São Paulo…
Foi quando eu joguei a toalha que eu consegui um mínimo de paz para me entregar à diversão de construir histórias e só. Senão tudo seria frustração e eu não conseguiria para de me perguntar “por que tudo isso?”.
Não tem um por quê.
Escrever me mantém sã, me mantém viva. Quando vejo pessoas querendo se tornar escritoras pelo statusda coisa, porque querem ser conhecidas, olha, confesso que me apiedo.
Vivemos numa época que tudo precisa gerar resultado, precisa virar números, precisa render dinheiro. Antigamente editoras ofereciam vitrine a autores talentosos e desconhecidos, hoje buscam autores já com as próprias vitrines. Isso é cruel. Quantos, como eu, não começaram a escrever justamente por não conseguirem se enturmar? Como você pode pedir de uma criança que criou um mundo imaginário porque não conseguia ter amigos, que se torne um fenômeno de popularidade na idade adulta? Que consiga fazer desconhecidos se mobilizarem atrás dos seus lançamentos?
Mas quantas das obras que mais amamos foram escritas por pessoas exatamente como nós: desencantadas, desencaixadas, sem perspectivas? É natural nos espelharmos em artistas que conseguiram reconhecimento ainda em vida, que foram pessoalmente ver seus escritos serem encenados, que não passaram fome. Mas quantos passaram? E, por acaso, o que eles escreveram com a barriga vazia vale menos que os escritos dos autores bem sucedidos?
Não estou romantizando a fome ou dizendo “se entregue à derrota” – embora tenha sido minha escolha momentânea -, estou dizendo: seu sucesso não determina o valor do seu trabalho. Se você ama escrever, não pare. A vida é muito curta. Arte é valiosa demais para que a gente a associe só com sucesso e dinheiro. Isso é besteira. Só vocêpode contar suas histórias, então conte. Busque seu reconhecimento, mas não alie seu valor a isso. É consequência, e também um bocado de sorte em alguns casos.
O lugar ao sol é lindo, mas a sombra também tem seu valor, ainda mais em tempos de aquecimento global…
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Uma vez li que um texto nunca está perfeito, você só se cansa de alterar. Confesso que já publiquei algo impresso que ainda não estava bom só porque estava enjoada demais de voltar ao texto – porque era coisa de anos e anos de escrita. Naquele momento não tinha verba e contatos que fizessem uma avaliação com o distanciamento necessário, nem a experiência para me conscientizar do valor disso. Por isso sempre vá atrás de leitores críticos, de preparadores, de revisores profissionais. Junte um dinheiro para isso, não seja afobado como eu fui. Não há condições de publicar algo sem ter mostrado antes para outras pessoas. Não é fácil encontrar interessados – nem depois deles prontos e publicados, é verdade – então pague. Pague profissionais. Faça malabarismo no sinal para arranjar o dinheiro, mas pague. Você não vai se arrepender. Não é gasto, é investimento.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo direto no computador, tenho uma boa relação com a digitação e com a tela. Como também sou desenhista preciso poupar os punhos sempre que posso. Escrever duas vezes a mesmíssima coisa seria loucura para mim.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm, basicamente, dos meus problemas psicológicos. Brincadeira (?).
Tudo é inspirador. Em todo momento você pode se imaginar na pele de outra pessoa. Se essa pele possibilita que você acesse sentimentos que sua própria vida comum não permite, melhor ainda.
Não gosto de escrever sobre personagens que pensam exatamente como eu. Gosto de entrar em cabeças com funcionamento próprio. Mentes criminosas, vigaristas, de pessoas loucas de poder, cheias de culpa, de raiva, ambição, ou tudo junto. É catártico.
É uma forma de autoconhecimento explorar aquilo que está nas sombras – lógico, acendendo uma lanterna de sanidade de vez em quando para não perder-se nessas trilhas. Não que, em raros casos, eu não lide com a maldade ou a bondade pura, mas, em geral, os pontos de vista são o que delimitam a vilania de alguém nas minhas tramas. Por isso gosto de contar o que cada lado de uma guerra tem a dizer. Um herói de um livro é o vilão do outro. Todos estão tão certos quanto errados. Isso não exercita a empatia e a crítica sobre todas as pessoas? Eu adoro esse jogo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu diria para eu ler mais antes de publicar e pagar leitores críticos, quantos pudesse. O barato sai caro e conviver até hoje com livros que, apesar de bons, poderiam estar muito melhores, é dolorido. Não sei se o processo de escrita em si mudou muito, mas com certeza mudou o repertório interno: li sobre técnicas de ficção, li obras maravilhosas, recebi críticas construtivas, amadureci num geral.
Não sei se deveria ter insistido em continuar na área acadêmica, a vida me jogou para outro lado e eu acabei me distanciando de um jeito quase irremediável dos estudos formais. Pergunto-me se fiz mal. Acho que minha falta de títulos me desvaloriza num meio em que todos são Mestres, Doutores, etc. Eu fiz Belas Artes, sabe? Por isso não sei nem se posso me intitular “escritora”. Por isso demorei tanto para responder a entrevista.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu tenho muitas personagens e cada uma delas tem histórias ansiando por serem contadas. Eu nunca vou parar. Eu sempre vou ter projetos. Pelo menos essa felicidade eu não nego. Mesmo que você não leia nenhuma, eu vou deixar essas criações por aí.
Eu queria que um livro um dia fosse escrito sobre como tudo não foi em vão. Como tudo que foi construído com tanto empenho teve alguma utilidade. Não um livro sobre mim, mas sobre eles, esses que eu apresentei à superfície. Que alguém buscasse as entrelinhas, desvendasse os segredos, as mentiras, as contradições dos meus narradores. Queria que eles vivessem mais tempo que eu, que alguém se importasse. Não sei. Não custa sonhar.