Lygia Roncel é jornalista, editora de livros didáticos e autora do livro de contos “A solidão faz festa” (Patuá, 2017).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meus dias sempre começam com uma caneca cheia de café com leite. Brinco um pouco com as gatas (tenho duas, Adèle e Sunshine) e me sento pra trabalhar, de moletom e chinelo. A rotina durante a pandemia tem sido essa. Antes dela, eu saía de casa às oito, pegava ônibus e metrô pra atravessar a cidade e chegar ao Belém, que é onde fica a editora onde trabalho. Pago boletos editando livros didáticos e fazendo frilas de revisão e preparação de texto. A escrita literária e as leituras são só lazer.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
À noite tenho um pico de produtividade: as distrações diminuem, chegam menos mensagens no WhatsApp, o telefone para de tocar, as obrigações do dia já foram cumpridas e vem, finalmente, o silêncio. Sou há muitos anos amante desse silêncio.
Para a escrita, o ritual é preparar um café (com leite), rever as últimas anotações e encarar a página em branco à espera da primeira frase. Às vezes pôr pra tocar uma música ajuda. Essa técnica funciona comigo em 100% das vezes.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Há períodos em que escrevo mais e até estabeleço metas. Antes da pandemia, eu estava escrevendo quase todos os dias, um ou dois parágrafos pelo menos (é pouco mas escrevo bem devagar, e esse é meu máximo, no momento). Depois dela, escrevi pouco e li muito, o que é bom também. Pus leituras em dia. Vi séries e filmes bons e ruins, ouvi muita música, aprendi a fazer torta de frango e bolo de banana, aprendi a cultivar uma muda de maçã-verde etc. Esse período em que não despejo muito no papel é o que me enriquece mais com ideias e experiências, mesmo estando trancada em casa, como é o caso agora. Considero que tudo é material para literatura, até não fazer absolutamente nada, olhar pro teto, assistir à passagem de pessoas na rua ou a um jogo de futebol. Acho que é preciso observar, ocupar-se com outras atividades e pensamentos (ou nenhum) pra que a história antes decole dentro da gente e depois, ao ganhar altura, tome finalmente as páginas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
É difícil saber quando as notas reunidas são suficientes. Tenho uma necessidade de (e uma particular inclinação por) anotar em exagero, porque esse processo me ajuda a pensar no texto e elaborá-lo melhor antes mesmo de dar à luz a primeira frase. Considero a fase da pesquisa bastante prazerosa, e ela nunca tem fim, é concomitante à da escrita.
O processo de escrita, então, começa por uma faísca qualquer que um tema me provoca; dessa faísca nasce a vontade de escrever e abre todos os meus sentidos praquela nova possibilidade: tudo o que vejo, ouço e sinto se volta pra história que quero contar, que pra mim é também uma descoberta, a semente de uma árvore que eu não sei ainda qual fruto dará. Descobrir cada uma dessas árvores que crescem é o que me move, o que dá mais graça à minha vida. Foi assim com o A solidão faz festa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu respeito a trava e considero o tempo um aliado da literatura. Respeito meu próprio tempo; enquanto a frase não vem, eu vivo minha vida, saio pra tomar minhas cervejas, jogar (bem mal) uma sinuca, ver um filme ali no Belas Artes, conhecer pessoas, aproveitar o tempo livre pra me revoltar com a completa incapacidade do presidente e organizar as gavetas. Minha intenção não é bater recordes, não é chegar ao fim em menos tempo, é apenas fazer o melhor que eu posso. Devo isso somente a mim mesma, como um desafio pessoal, e eu diria que me cobro o suficiente. A escrita é um compromisso que firmei comigo mesma e não envolve a expectativa de ninguém mais, o que me dá a tranquilidade de fazer do meu jeito, no meu ritmo, ao meu gosto. Sou boa em procrastinar, mas, quando finalmente volto ao texto, sempre volto com novidades pra contar a ele.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muitas dezenas de vezes, a ponto de pegar verdadeiro ranço dele. Sou cismada: a cada leitura, uma palavra ou frase parece inadequada, me incomoda. Trabalho no texto até eliminar esses pontos de dissonância: ouço o texto como uma música e, ao mexer nele, me sinto às vezes ajustando letra e melodia. Mas acho que essa paixão pelo texto cega o autor de tal forma que a imperfeição mais óbvia pode passar despercebida por ele, o que faz com que seja necessário outro par de olhos para enxergá-la. Eu, pelo menos, preciso. Mostrá-lo a outra pessoa, ao menos uma, em cuja opinião eu confio e que é capaz de ser sincera, é o mesmo que batizá-lo. Eu não o jogaria no mundo sem isso.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não sou nem um pouco ligada em tecnologia. Até pouco tempo atrás meu celular não tinha nenhum aplicativo instalado, pra você ter uma ideia. Mas de Word eu entendo razoavelmente bem (é o mínimo, né?), porque sempre foi uma ferramenta de trabalho. Prefiro escrever no Word pela praticidade, é claro, e tenho uma propensão a usar fonte Calibri, corpo 12 e texto justificado, porque acho que deixam os textos mais simpáticos (risos). Isso é loucura, eu sei, mas quem de perto é normal?
No dia a dia, porém, costumo fazer rascunhos à mão, sim. Tenho uma razoável coleção de cadernetas, dessas de 9×14 cm, que os amigos me ajudam a enriquecer. Levo uma sempre comigo na mochila, e é nela que compilo frases, ideias e palavras enquanto estou fora de casa. Depois passo tudo a limpo, porque tenho essa urgência de despoluir a página pra clarear o texto, arrumá-lo melhor, colocá-lo na fonte certa. O da caderneta é cheio de rabiscos, setas que atravessam a página, erros; no computador é que ele se organiza e, digamos, “pega no tranco”.
Andei usando também, nos últimos meses pré-quarentena, o aplicativo de um blogue no celular. Criei um blogue particular só pra este fim: escrever a qualquer hora e em qualquer lugar. Foi a forma que encontrei pra otimizar o tempo que passo dentro do transporte público ou dos Ubers da vida, já que moro em São Paulo e qualquer trajeto é longo demais. Escrever e editar direto no blogue vence certas limitações que o caderninho impõe e dispensa a tarefa de passar a limpo. Mas, se posso me dar ao luxo de ter uma mesa ou um apoio melhor que meu joelho, seja numa cafeteria ou numa lanchonete, opto pela caderneta.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Vêm em grande parte deste rebuliço chamado vida. Vêm de olhar pro mundo, do exercício de enxergar as pessoas sem preconceitos e de se abrir pro inesperado. Eu sou aberta a tudo, tudo, todo tipo de experiência, aberta a ouvir o outro, a tentar compreender o incompreensível, a abrir mão de convicções se preciso. A escrita nos força à atenção e à observação, e é também um baita exercício de empatia, de colocar-se em outro contexto e ver sob outra perspectiva. Sou extremamente sensível e curiosa, tenho boa intuição e certa facilidade em sentir o que o outro sente. Gosto muito de gente, daquilo que é diferente ou desconhecido, e enxergo sem nenhum esforço a beleza que existe em todas as coisas. Além disso, não sou muito chegada em conversas virtuais, videochamadas, lives, aplicativos de paquera e coisas do tipo, nem sou muito fã de falar ao telefone, o que me torna alguém que preza demais os encontros ao vivo e em cores, estar entre amigos, calor humano, festas sem hora pra acabar (risos). Isso, sem dúvida, favorece a criação.
Tenho, é claro, inúmeros insights também vendo/lendo o noticiário, adoro filmes, sou viciada em algumas séries, tenho a necessidade de ler livros, de ir a shows, ao teatro, a exposições e eventos culturais, de ver uma coisa ou outra na TV. A literatura se alimenta também de outras artes, de um sem-número de referências, e nunca estará plenamente satisfeita, eu acho, então exige essa constante absorção da realidade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu simplesmente não me reconheço no que escrevi no passado. Sou hoje outra pessoa, e entendo que precisei dar aqueles primeiros passos pra chegar até aqui. Mesmo assim, a estrada é longa, sem fim. O abismo entre o que sou e o que eu fui é proporcional àquele entre o que escrevi e o que escrevo. Eu escrevia movida pelas inquietações de ser jovem e inspirada pelo que via no colégio, procurando copiar Machado de Assis e Augusto dos Anjos. Escrevia muita poesia ruim, mas também declarações de amor aos meninos e fragmentos de contos deprimidos sobre a morte (risos). Ouvia muito Caetano Veloso e Chico Buarque naquela época, e acho até que devo aos dois essa relação que ainda faço entre literatura e música. Foi uma época de tentar copiar o que veio antes de mim, eu era absolutamente obcecada pelo que esses caras tinham escrito. Quando descobri Rubem Braga, foi um baque: o texto então podia ser simples sem perder o seu valor? Depois, já com 20 e poucos, fui apresentada a Manoel de Barros e à literatura africana, ao Carrascoza, ao Caio F., e vi que minha praia era mais junto deles, de um Guimarães Rosa, de um Autran Dourado. Se eu pudesse voltar no tempo, tentaria apressar esses encontros literários todos, pra que eu me descobrisse como autora mais cedo e não ficasse tão presa à absurda ideia de tentar chegar aos pés de ícones de quem nunca se chegará aos pés. A delícia da arte é exatamente cada um poder ser o que é e do seu jeito, contrariar normas, padrões e expectativas em prol do próprio desejo. É possível ser marginal, revolucionário, lírico, romântico, fantástico, louco, careta, filho da puta, falar de si, falar do outro ou não falar coisa com coisa. Olhar essa liberdade nos olhos é até assustador de tão maravilhoso. Me descobrir como autora me ajudou muitíssimo a me descobrir também como mulher.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Minhas gavetas são cheias de projetos, não só de livros. Tem livro infantil, HQ, longa-metragem, documentário. Um antigo projeto que eu amaria fazer é sobre pesca artesanal, em uma vila de pescadores, unindo literatura, fotografia e vídeo. É um tema que me interessa muito, muito. A pesca artesanal está prestes a entrar em extinção, é uma pena, e precisa muito ser salva e ser valorizada. Mar morto, do Jorge Amado, é de um poder excepcional, e me marcou demais. E na verdade tenho algo em mim de documentarista frustrada, queria poder sair por aí falando com as pessoas com uma câmera ligada.
Estou, agora, devagarzinho, terminando um romance. Nele, escolhi contar uma história que tem como um dos seus personagens a fome no Brasil, já que há quem a considere obra de ficção; espero conseguir fazer jus à importância e à urgência do tema e, em breve, ver o livro impresso, concluído. Será uma pequena vitória, do tamanho das minhas possibilidades de enfrentar esse gigante chamado desigualdade social.