Lygia Eluf é professora titular na área de desenho na Universidade Estadual de Campinas.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo cedo, entre cinco e seis horas, cuido dos gatos enquanto preparo meu café. Minha rotina varia entre uma caminhada matinal, cuidar das plantas ou, dependendo da urgência interior, já começo a trabalhar com a xícara de café ao lado.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Funciono muito bem de manhã. Essa é a melhor hora do dia para mim e é nesse momento que mais gosto de escrever. Tenho alguns pequenos rituais, como a música que escolho, a mesa de trabalho repleta de livros, papéis, canetas, lápis, tintas e o que estiver usando para desenhar no momento. Neste cenário o trabalho parece estar sempre em andamento. O caderno de anotações fica sobre a mesa. É nele que registro as ideias, os desenhos, o jogo do I Ching. Também no caderno anoto tudo que preciso relacionado a trabalho (aulas, bancas, palestras). Eventualmente recorro a elas – as anotações diárias – para construir algum outro texto, ou desenhos para iniciar uma série nova.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo desde sempre… a vontade de ler e escrever era tanta que aprendi a ler e escrever sozinha antes de ir para a escola. Lia tudo o que me caia nas mãos e logo me identifiquei com o poder que aquilo tinha. Tentei escrever poesia quando era muito jovem mas mas logo entendi que o que fazia era ingênuo. Quando a universidade entrou na minha vida a escrita passou a ser uma necessidade. O artista que decide organizar sua produção e apresentá-la – no âmbito acadêmico – se depara com a tal objetividade lógica. Esse processo exige outro modo de construção do pensamento. Para o artista, enquanto se faz se pensa e se faz novamente. Aos poucos fui me acostumando a uma espécie de transposição de linguagens. Foi difícil essa adaptação da escrita e com o tempo fui aprendendo que poderia ter muitas escritas, inclusive a minha, pessoal e mais poética, isenta dos compromissos acadêmicos. Depois de um tempo as coisas começaram a se juntar e, hoje, escrever é um prazer e uma necessidade. Escrevo todos os dias: pequenas anotações, reflexões e ideias. Se tenho algum trabalho específico e com data de entrega me concentro até terminar. Aí aparece uma estranha mistura da Lygia obsessiva com a Lygia muito distraída… Não posso deixar de lado e recomeçar muitas vezes pois se deixo de me concentrar em um determinado assunto, logo aparecem muitos outros e aquele inicial fica perdido no meio de tantas ideias. Geralmente fico dias seguidos num mesmo texto, leio e releio, escrevo e reescrevo até concluir o que preciso.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A escrita vai se construindo junto com a pesquisa e depois passa por um processo de depuração. Não tenho um caminho organizado para isso. Raras vezes consegui isolar a pesquisa da escrita e quando fiz isso o resultado não foi bom. Aos poucos compreendi que os registros nos cadernos, sejam eles resultado de uma reflexão pessoal, trechos de alguma coisa que estou lendo e me interessam ou ainda anotações descompromissadas, são importantes para que eu possa começar um novo trabalho. Dali saem coisas preciosas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não sei… acho que não aprendi a lidar com essas coisas… tenho uma estratégia que sempre me ajudou muitíssimo: penso na escrita como penso no desenho. O importante é registrar apenas o que precisa ser registrado, nada de excessos. Menos é sempre mais. Isso acabou resultando numa maneira de escrever semelhante à maneira que desenho e talvez isso tenha aplacado o medo, as expectativas e a ansiedade. Escrever como desenhar. Funciona sempre.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Muitas! E sempre que me sinto insegura peço que alguém leia o texto antes de usá-lo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Gosto de escrever com lápis em papel. Na verdade gosto de escrever com diferentes tipos de lápis, canetas e penas (adoro as canetas tinteiro!); uso suportes diferentes também, como os cadernos e diversos papéis. Tenho sempre alguns cadernos em uso: um na bolsa, uns dois ou três sobre a mesa de trabalho e às vezes um especial para um trabalho específico. Às vezes gosto de juntar anotações sobre determinados assuntos em um único lugar e tenho alguns cadernos que têm essa finalidade. Esse é meu modo de aproximar desenho e escrita. Mas se tiver que escrever com o computador também funciona. Tem uma coisa que adoraria aprender relacionada à tecnologia: a maneira de organizar tudo isso que faço. Mas evidentemente nunca dei o primeiro passo. O que faço vai se acumulando e se ajeitando no tempo e no espaço e quando preciso rever alguma coisa tenho uma enorme dificuldade para encontrar.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Não sei dizer exatamente, acho que quase tudo o que vejo, escuto, leio e pressinto (minha intuição é muito presente) são gatilhos para as ideias. Tenho uma enorme caixa de ferramentas onde guardo memórias, obras de artistas que admiro, músicas, formas que observo na natureza, livros (principalmente filosofia e poesia são valiosos para minha imaginação), sonhos, enfim, tudo o que alimenta meu espírito acaba se tornando um elemento importante nessa construção. O desenho é o modo mais imediato de registro de meu olhar. Por meio dele compreendo o que vejo o que sinto e estabeleço minha relação com o mundo. Por meio dele, distinguindo as coisas, aprendo a amá-las. É onde se materializa, se organiza, se expressa e se constrói meu pensamento. O desenho como meio de conhecimento e de apropriação. Com o desenho estabeleço relações com as coisas, algumas vezes temporárias, outras estruturais e ainda aquelas nômades, que voltam de tempos em tempos; são sempre transformativas e geradoras de novas ferramentas capazes de realizar as ideias e transferir as sensações, as emoções e as reflexões. O mesmo se dá com a escrita. Transitar por esses dois caminhos, estabelecer relações entre eles, torná-los vasos comunicantes: essa tem sido minha principal meta como artista na universidade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
A escrita se aprende, se constrói e vai se tornando cada vez mais rica e sofisticada. Fiz uma tese diferente do que se esperava na época. Achava que um artista na universidade não deveria abrir mão da natureza da arte para escrever. Queria encontrar uma forma que pudesse dar conta do conteúdo e do processo de construção da obra. Estávamos começando a fazer nossos mestrados e doutorados em arte. A geração anterior, nossos professores, tiveram que recorrer a orientadores de outras áreas de conhecimento, já que não haviam doutores em arte no país. Alguns deles foram buscar seus títulos no exterior pois ainda não havia por aqui um modelo minimamente sistematizado. Decidi que a escrita pessoal seria o modo mais honesto de falar do processo de criação e que minhas anotações deveriam ser parte integrante e fundamental para a compreensão do caminho percorrido. Na época isso não era comum, mas tive a sorte de ter tido excelentes orientadores, pioneiros dessa entrada da arte como produção acadêmica. Hoje isso já é comum… até o termo escrita performática foi cunhado para justificar esse modo de escrever. Foi toda uma geração de artistas-professores que acabou indo por este caminho. Não sei se fizemos um bom trabalho… hoje em dia já é possível encontrar um grande número de teses escritas de diferentes maneiras, que priorizam outros tipos de linguagem. Se fosse reescrever minha tese mudaria algumas coisas. Gosto do discurso direto e claro. Me incomodam os jargões da moda. O que manteria, sem dúvida alguma, é a linguagem pessoal, a poesia e o desenho: acho que ainda é muito bom.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Escrever sobre desenho. Diversos artistas falam de desenho e da capacidade que ele tem de dizer o indizível e concordo plenamente. Porém, em função do trabalho na universidade, tentei encontrar caminhos de sistematizar esse conhecimento e é extremamente difícil. Com a necessidade de falar sobre desenho para os alunos aprendi muito e cada vez parece que consigo construir um caminho mais fácil para isso. Porém, com o passar do tempo, algumas ideias e afirmações se transformam, se tornam mais afirmativas ou o contrário, e volto para aquele lugar onde as palavras não conseguem exprimir o que quero. Não sei se algum dia conseguirei, mas o projeto fica latente, incomodando. Gosto de saber que existem muitos livros que não li. Isso me anima. Mas acho que nunca pensei num livro que não existe e que gostaria de ler. Existem tantos que já estão aí e quero ler. Acho que não vai dar tempo…