Lusa Silvestre é roteirista, redator publicitário e cronista do Estadão.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu fui criado na propaganda. Sou redator publicitário de formação, com muito orgulho. Até 2017 eu trabalhava no horário comercial em agência, e na hora do almoço escrevia roteiro. Então, pra mim, a lida da escrita, a criação, é bastante domesticada. Escrevo no horário comercial, das nove às seis, como se fosse o horário que eu tinha na propaganda. A minha rotina matinal é muito sem graça, quase previsível. Se estou em casa, eu acordo cedo, tomo café e saio escrevendo. Muitas vezes acontece de logo às oito da manhã eu estar já trabalhando – coisa que eu adoro, e coisa que nunca acontecia quando eu era só redator. Muitas vezes eu encaixo um exercício, uma ginástica antes de começar – e eu considero também trabalho. Eu penso em cinema o tempo todo – nas histórias que estou escrevendo, na vida que estou inventando pros personagens – então a esteira ergométrica acaba sendo meu escritório também. A escrita não acontece somente quando estou escrevendo.
Sem contar que quando estou na academia vejo gente. Escritor trabalha muito no canto dele, eu preciso de vez em quando ver que há humanos convivendo ao meu redor.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Por causa da musculatura que a propaganda dá, eu não tenho horário preferido. Eu sento no computador e saio rasgando a hora que for, sou treinado para isso. Gosto bastante de escrever de dia, como se eu trabalhasse em escritório – mas quando tenho insônia (que acontece sempre), me pego escrevendo às quatro da manhã todo feliz. Não tenho grandes rituais – o que faço antes de escrever é deixar minha preguiça de começar ter seu momento. Um ritual que eu tenho é parar bastante, durante o dia, para ir tomar um suco, ou entro um pouco no Facebook – coisas que faço quando fico meio de saco cheio do texto.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Se tenho entrega, se estou no meio de um roteiro, se há encomenda, eu escrevo todos os dias. Se estou animado, escrevo nos fins de semana também. Muitas vezes meu domingo cai numa terça – e tudo bem. Como realmente gosto de escrever, não me sinto cansado. Eu estabeleço, sim, uma meta diária. Eu tento escrever pelo menos umas seis, sete cenas por dia. É um ritmo que, noves fora, permite que eu escreva um roteiro por mês. Na verdade, a meta de escrita diária acaba sendo determinada pela paciência que eu tenho com o texto. Se eu estou para começar uma cena nova, e me dá preguiça, é porque está na hora de parar. Se continuo, acabo terminando a cena por inércia; me dá vontade de, de repente, botar um Deus grego na história para ele de repente matar todo mundo e pronto – acabou o filme.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
De novo: eu venho da propaganda. Sei o valor de um briefing. Eu só começo a escrever quando a pesquisa estiver bem fundamentada. Quando eu tenho dados suficientes sobre a história, ou sobre um contexto histórico, ou uma atividade profissional, aí eu organizo tudo e parto para a escaleta.
Escaleta é um exercício anterior a começar o roteiro. É quando a gente desenha toda a estrutura de um longa, descrevendo cena a cena – mas sem entrar em detalhes, sem escrever ações. Da pesquisa eu corro pra escaleta. A partir da escaleta, é só ir recheando as cenas previstas com as palavras certas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Começo pelo fim: todo longa metragem é um longo processo de criação. Entre a primeira conversa e o filme pronto pra rodar passam-se dois, três anos. Eu costumo usar esse tempo a meu favor: dá para repensar coisas, trabalhar melhor alguma passagem, tentar um caminho mais arriscado porque sei que o prazo me permite voltar atrás e começar tudo de novo. E isso, esse tempo de maturação, me dá a certeza que sempre vou entregar o que pediram pra mim. Com prazo tudo se resolve, e fica realmente melhor. É uma coisa que aprendi na propaganda ao contrário: lá, os prazos são sempre curtos – e a gente vê como isso deixa o trabalho menos bom, porque menos pensado.
Nunca tive travas na escrita. Tem dias que não escrevo muito, tem dias que não é do cacete o que escrevo – mas sempre sai algo. Com o tempo que tenho, dá pra rever o que não ficou bom.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso meus textos cem mil vezes antes de rodar. Estômago eu reescrevi 13 vezes. O Roubo da Taça, 18 vezes. Um Namorado Para Minha Mulher, outras 12 vezes. Agora em dezembro rodamos o “Silêncio da Chuva”, adaptação da obra de Garcia-Roza. Foram 16 versões do roteiro. E, claro, cinema é esporte coletivo. A cada versão, eu conto com a opinião das pessoas envolvidas no processo. O diretor opina, o produtor opina, o ator opina – e isso é ótimo, por ajuda a maturação do projeto. Há que se entender, porém, o seguinte: as pessoas envolvidas em volta de um roteiro são sempre muito interessantes, inteligentes, maduras, muito bem preparadas. Então as coisas que vêm sempre fazem um roteirista pensar. O problema é quando vem mané dar palpite – como acontece em muitas áreas de produção criativa e artística. Eu preciso dos meus parceiros e tento sempre ter gente que me ajude como parceiros; as opiniões são sempre pra produtivas, buscam a melhoria do texto – e muitas vezes descortinam coisas que eu não havia pensado.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Olha, eu escrevo no computador. Consigo ler roteiro no celular, agora que comprei um de tela grande. A coisa que mais importa, hoje, pra mim não tem nada a ver com tecnologia. São meus óculos de leitura. Demorou pra eu precisar, mas agora, rapaz, não saio de casa sem um pendurado na gola da camisa. Mas minha principal relação, como roteirista, não é com a tecnologia – e sim com o oposto, é com a Grécia Clássica. Aristóteles foi o primeiro a descrever a estrutura de três atos – e nós fazemos assim desde então, desde 400 a.C.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Olha, eu não sei de onde vêm minhas ideias. Se eu soubesse, ia lá logo de cara pegar coisa nova. O principal hábito criativo que eu tenho é a tentativa-e-erro. Eu tento em uma direção, e se o caminho estiver errado, se não render nada bom, eu volto ao começo e recomeço em outra direção. Por isso que o tal prazo é importante. Não dá pra arriscar um caminho se você não tiver tempo hábil para voltar atrás. Outro hábito que cultivo bastante é o estudo. Que, no caso do cinema, é uma delícia. Eu vejo em média quatro filmes por semana, o que dá no fim do ano uns duzentos filmes que assisti – incluindo clássicos, incluindo filmes que revi. Eu sempre revejo filmes, é onde eu aprendo mais. E vejo muita série, quase sempre por causa de trabalho. Acabei de ver uma série de horror, porque queria ver como os caras faziam para manter uma trama que continuasse dando susto e medo por oito episódios. Então: não dá muito, não. Depois que você se assusta pela terceira vez com a fantasma de pescoço quebrado, aí já começa a esperar que ela venha sempre – e não tem susto, não tem medo, não tem que segurar a mão da amada pra não tremer o joelho.
Acho ver e rever filmes um hábito delicioso.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mudou no meu processo de escrita é que hoje ele é domesticado. Eu sento e saio escrevendo, coisa que demorou 28 anos de criação publicitária para eu conseguir. A propaganda também me deu muita segurança. Quando você tem que escrever um texto, e o Washington Olivetto está bufando no seu cangote, de pé ao lado do computador, acompanhando onde você põe as vírgulas; quando o diálogo que você está arrumando vai depois para as mãos do Daniel Filho, ah, meu compadre, isso te prepara para as mais cascudas experiências.
Se eu pudesse voltar às minhas primeiras escritas eu diria: Lusa, continue trabalhando direitinho, porque você vai pagar a escola dos seus filhos com isso.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu sou um cara sedento e confio na minha capacidade de trabalhar feito um desgraçado. Gostaria de fazer todos os filmes do mundo. Posso começar amanhã mesmo, só mandar a ideia.
Gostaria de ler um livro que sobre a vida do Tony Tornado. Acho um excelente personagem.