Lunna Guedes é autora de vermelho por dentro e artesã de livros artesanais.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu tenho rituais de escrita… preciso caminhar a cidade, sentir os locais, devorar anatomias, participar de diálogos incompletos e ouvir músicas no repeat. Eu escrevo no ar, por dentro, na própria pele. Perco um pouco de tudo até sentar-me diante da tela para tecer frases inacabadas, que serão abandonadas até que, em algum momento, eu possa domá-las… ler em voz alta e reescrever-reler-reescrever até que se esgotem os movimentos e eu consiga conviver com o que é voz-palavra-frase.
Mas, geralmente, tudo começa depois do meio-dia. Sou uma criatura noturna, que precisa do breu, das sombras, da quietude para existir. As manhãs são de olhos fechados, quarto fechado, entre lençóis.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu não sei precisar a hora do dia… eu sinto que sou como uma esponja. Absorvo de tudo um pouco e acredito que quando chego a condição de cheia-plena: transbordo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu escrevo diariamente porque acredito que a minha escrita precisa disso. Gosto de organizar minhas ideias, esse caos de coisas-pessoas-lugares em mim. Quando construo uma frase, dou corda a vida-morte e tudo se organiza naturalmente, passa a ser real. Sem a escrita, sinto como se fosse apenas ilusão.
Eu não estabeleço metas porque me sinto na condição de barco a deriva em busca de cais.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo é bastante caótico e aconteceu aos poucos, sem consciência alguma. Tentei me impor ritmos. Criar uma rotina. Estabelecer um processo, mas tudo escapou e ganhou vida-própria. Escrevo por escrever somente, em folhas avulso-soltas. Tomo nota de tudo. De pequenos diálogos soltos a descrições de lugares-prédios-pessoas. São peças soltas de um quebra-cabeças que eu monto depois que a folha se imprime e eu releio em voz alto, no canto escuro, com a luz de luminária e uma xícara de café. E ainda me espanto quando tudo se junta e faz sentido. Esse processo de amarras me deixa boquiaberta.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu não sei te dizer em que momento aprendi a respeitar meu corpo-mente-imaginário. Sei que entendi os fusos do meu corpo. Eu não sigo calendários, ponteiros. Eu simplesmente me transporto para esse sábado de manhã… esse lugar-meu. Essa porção de mundo, onde é sempre sábado e eu me sento à mesa da cozinha, com a luz da manhã a esbarrar no vidro da janela e deitar no ar partículas astrais. Eu não exijo frases-textos-vidas-mortes-realidades. Apenas respiro fundo, faço uma pausa e observo as minhas muitas vidas. Eu já morri um sem-fim de vezes e renasci, sempre diferente-nova-outra. E é a partir disso que o diálogo acontece. Meu corpo se esparrama pelo espaço e tudo se dilui até que a escrita me dê um corpo que eu possa habitar.
Não há medo, expectativas ou ansiedade… existe apenas esse não-mundo, esse não-lugar, onde as coisas não-são, é preciso que a escrita dê a elas qualquer coisa de forma-fôrma…
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu nunca contei, mas as pessoas que leem o que eu escrevo já me disseram que leram dezenas-centenas de vezes um mesmo texto. No caso de ‘lua de papel’, meu primeiro romance, ainda sinto vontade de reescrita.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Uso o Keep no celular para tomar notas do que surge quando estou a bordo do Coletivo ou do metrô. Quando estou na rua, escrevo no ar, na pele. Faz algum tempo que não dependo mais do papel para rascunhar. Acostumei-me ao notebook e ao celular, apenas o tablet não me agrada. O papel é meu último estágio, depois de escrito-reescrito (um sem-fim de vezes) imprimo e leio-risco-rabisco-reescrevo e volto para o notebook.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Da realidade… eu amo as pessoas e suas histórias. Amo como estão sempre dispostas a compartilhar suas vivências. Sou grata por isso. Os estranhos são os mais dispostos a contribuir. Mas há pessoas que se aproximam e dizem… vou te contar uma história para que escreva sobre isso. Não sou fiel ao que me contam. Às vezes, melhoro ou pioro certas histórias… exagero. Misturo vivências. Combino momentos. Costumo dizer que alimento o meu imaginário com tudo que chega ao meu corpo e ele faz a sua parte, como achar melhor. No começo, eu me assustei ao perceber que uma história antiga tinha voltado… do nada e se encaixado numa ideia, na qual estava a trabalhar. Depois que compreendi esse ritmo… apenas espero pelo momento em que o imaginário irá recorrer a essa caixa de sapato, que é a minha memória, e combinar os argumentos, em algum escrito-meu.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Antes, eu escrevia para os outros. Me lembro que criava diários para que outras pessoas lessem. Diários com alvo-certo. Eu olhava a pessoa e pensava, é para ela que eu vou escrever. Sempre em primeira pessoa. A minha escrita sempre foi confessional, poética. Um diálogo com o outro. Isso mudou. O meu diálogo hoje é comigo. Eu escrevo para mim, sem me preocupar se alguém irá ler. É o meu ouvido que preciso agradar. Mas o processo inicial foi necessário, sem ele, eu não teria compreendido que sou meu principal-leitor, provavelmente o mais exigente de todos, o mais difícil de agradar.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu não penso futuro-amanhã, o que não existe, o que não sei. Me ocupo do que chega e fundamentalmente do que transborda. E quanto aos livros, ainda não dei conta e, sei que apenas uma vida não basta, dos que existem…