Luiza Nilo Nunes é poeta e tradutora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
De manhã sou um projeto de Lázaro, regressei da região dos pesadelos, renasci, mas não quebrei da borboleta o casulo. Não gosto intimamente das manhãs, nem das rotinas e dos gestos planejados. Quando posso, vou ao contrário do dia, estico a noite até ao ponto da madrugada e passo então a reservar esse período para o meu tempo de descanso. Nos dias raros em que acordo pela manhã, normalmente estou rodeada de gatos, e como se sabe, embora velozes, com os felinos tudo ocorre em câmara lenta. Vou às ruas, volto a casa, rego as plantas, organizo os meus espaços, mas sou ainda como uma máquina vazia, um esqueleto brutalmente insensível. Não ouso sequer ouvir música, tudo me fere e ostraciza e só sou capaz de retornar à sensação do meu corpo, aos batimentos e ao latejar da minha carne, muito depois das onze horas, o momento em que os meus tímpanos acordam. Penso até que esta agonia das manhãs, este processo de enlutar pela chegada da luz, é uma presença inoportuna nos meus versos. Sem pensar muito sobre isto, serve-me sempre de matéria ficcional. O ano passado escrevi: “Acordo inteira para o luto das manhãs/ como um fresquíssimo cadáver”.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
As horas que antecedem a madrugada. Madrugada dos domínios intangíveis, claro está, mais ficcional do que palpável, a tal promessa da manhã primordial que nunca vejo a acontecer, ou a cumprir-se. Porém o núcleo verdadeiro do trabalho está na noite, nessa treva em que destranço os meus cabelos, em que por fim posso existir em liberdade. Nessa noite em que concedo aos meus martelos que funcionem, em que por fim não tenho medo de ferir e distribuo sobre a mesa os meus cadernos rasurados, os meus fracassos, dando início ao amolar das minhas facas. Mas não esqueço os roseirais da madrugada transparente. Por dentro, quando as pálpebras se fecham, essa é a hora em que as miragens colidem, em que Rilke no castelo de Duíno pica os dedos na rosa; a hora exata em que se abre a flor doente de Gamoneda, a rosa lírica e vermelha que no pulso tatuei como um emblema, a flor da morte de Celan. Quem dera tê-la sempre a gotejar na minha fronte, a alimentar-me e a encorajar-me na descida.
De rituais, apenas dois: o da clausura, o da mudez e a alegria de quebrá-la.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta diária de escrita?
Em certos dias surgem nomes, embriões, versos perdidos, muitas vezes rabiscados à pressa, a acreditar que a escrita não obedece a nenhum padrão ou esquematização do quotidiano. Ela ocorre, e com o tempo somos capazes de aprender a organizá-la, sem que o fluxo se interrompa e sem que as luzes abortem. Se essas luzes mantiverem a claridade, depois surge o movimento circular da claraboia e todos os gestos passam então a trabalhar unicamente em função dessa existência luminosa.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Por vezes ocorre em que me movo da escrita para a pesquisa, e não o contrário como seria de supor. A pesquisa é iniciada quando as palavras já começam por si só a abrir espaços nas folhas, a enformar uma ossatura ou um clamor, esse protótipo de voz que é quase sempre arrancado a uma couraça de silêncio. Aqui refiro-me à escritura de prosa, de novelas, a um trabalho mais contínuo que exigirá outros recursos que não somente as minhas mãos e a minha boca contra o túmulo da página. Nestes trabalhos a pesquisa poderá ser bem-vinda, mas só após um certo tempo de levedura, ou seja, no momento em que começo a pressentir que estes textos sofrem um pouco da neurose barthesiana, valem a pena ser escritos, talvez lidos, e alongados. Na poesia é outra coisa, só me interessa a infralíngua e o medo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Esta questão leva-me a uns versos de Daniel Faria, do poema que escreveu acerca do eremita Charles de Focauld: “Pensa que morrerás/ Esta tarde. Com o sangue no peito a marcar o umbral/ Da tua morada. Nu morrerás/ E desconhecido. Na terra só o adorno/ Possui o reconhecimento”. Parto destes versos para explanar que não me permito lidar com a expectativa. É preciso é aceitar as minhas falhas e talvez aprender, isto é, poder tombar e ainda assim ter a vontade de poder continuar: a cair. O que é a escrita quando tudo se evapora e dilui? O que é a escrita – quando até mesmo os “esqueletos de família/ desaparecem na curva do tempo” (citando uns versos de Drummond) – senão o ímpeto e a força do insurreto?
Quanto à mudez, nunca a aceito, para um escritor naturalmente é dolorosa, mas aprendi a condecorá-la. Tal como honro um nevoeiro de outono que chega fora de estação, ou um amigo que partiu, ou uma morte repentina. Sei lustrar o meu esquife, dialogar com os meus mortos e namorar as minhas chagas.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso-os quando sinto que é necessário fazê-lo. Sobretudo nas etapas neuróticas, em que sou perseguida por uma estereofonia – ou uma histérica fonia – que é no entanto claramente pretensiosa e quer à força ter o brilho e a polidez da minúcia. Penso contudo que a revisão exaustiva, em alguns textos, assemelha-se à poda. Nem sempre traz consigo a proporção, e o que resta é uma camada de beleza coquete, um esqueleto maquilhado.
Quanto a mostrar os meus trabalhos previamente à publicação, normalmente não o faço. Se o fizer, é em alturas em que estão já terminados.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo rascunhos à mão. Cultivo o vício dos diários, das notas, dos papéis. Mas a escrita e a organização dessas pilhas acontece no teclado.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Viajar. Essencialmente por dentro, mas também por esta Europa cujas cidades vertiginosas exercem sempre sobre mim um arrebatamento contínuo, algo que consigo estender durante meses a fio. Refiro-me sobretudo a um ofício extraordinário, como se eu fosse em outra vida e em outro tempo um delicado taxidermista de borboletas. Isto é: empalhar sobre a memória a alegria dos amigos; fotografar a inclinação de certa estátua de um edifício em Madrid; recordar o rosto aceso e maquilhado de um rapaz; a asa preta de uma pomba; um crucifixo e uma luva que encontrei no lavatório de um bar, enquanto a voz de Klaus Nomi arrebentava nas paredes; ter na pele a androginia das figuras e a liberdade e a euforia da nudez. Mas ver também o outro lado, aquela ponta onde estalaram as clavinas: a ameaça, o preconceito e a pobreza; o marginal que está em mim desde os primórdios da infância, a forasteira embrionária. Tudo isto – fragmentos irrisórios que colidem – é material para quebrar e construir. São o que eu chamo de migalhas de estrelas, pequenos pontos luminosos que reúno tendo em vista uma maior fulguração, um arsenal, algo que eu possa humildemente converter para poema. Claro está que estas estrelas já caíram, já penderam dessa abóbada celeste, pelo que lido com o que a morte me deixou, com o que o tempo permitiu que eu colhesse. Gosto muito de pensar nesse exercício de colher, de estar sujeita à intempérie e à ceifa, numa danse erótiquecom a ceifeira de ossos magros que me abraça e que eu rejeito enquanto a boca quiser.
Depois existe a exuberância das imagens, o cinema. Essencialmente fotogramas, filmes velhos, poeirentos. Tenho um gosto derivado do expressionismo alemão e uma paixão pelo terror: as caras roxas dos defuntos, essas heranças que remetem à minha infância, à minha árvore genealógica e aos meus pais. Nesse sentido, sou muito mais visceral. Gosto do sangue, da rouquidão, do desespero, do ultra. Diria assim (e a namorar a pedantice) que ao Tarkovsky preferi o Żuławski, o Jean Rollin e o sanatório do Pascal Laugier. Porém, também me agradam os interstícios da mudez. Nem tudo grita contiguamente ao meu redor, e nessas fases vejo os filmes dos Quay Brothers, os seus bonecos deformados e as suas salas de costura.
Por último, mas nunca menos importante, a biblioteca interior, o paraíso de Borges, a leitura e a exaustão deliciosa da leitura. Há uns tempos reli dois livros do Antigo Testamento e enformou-se o “Sulamite, Salomão”, um conto breve. Em outras alturas leio somente poesia, mas gosto muito de entregar-me a um romance durante dias e semanas a fio.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Passei a cultivar uma relação com o silêncio e a clausura que antes, aos 20 anos, não existia. Na clausura, há todo um jogo circular de paciência e o silêncio é uma agulha cirúrgica, é um cerzir obsessivo da língua. Hoje sei que maturar é doer, bater os ossos nas pedras, ter os pés nos estilhaços e premir. Faz-me evocar aquela imagem que recupero da infância: os pés exaustos, macerados da professora de ballet e um par de ligas de cetim com nódoas negras de sangue.
O que diria a mim mesma, à rapariga dos cabelos compridos se a visse hoje na rua? Talvez não lhe dissesse coisa alguma, sorriria.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Há muita coisa que gostaria de fazer, e isso não me remete unicamente à escrita, embora a escrita seja sempre aquele soro vital. Quanto ao livro imaginário, não sei. Talvez deseje é ir viver para uma enorme biblioteca sombria, com uma cúpula translúcida e pintada de anjos.