Luíza Mendes Furia é escritora e jornalista paulista, mantém um site sobre seu trabalho literário.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo meu dia lá pelas 14 horas ou até mais tarde. Vivo em fuso horário de outro país. Como brinco com meus amigos, não acordo de manhã nem para encontros sexuais. Sou notívaga desde menininha, período interrompido por inescapáveis obrigações escolares e profissionais. Portanto, minha rotina matinal são os sonhos – e muito de vez em quando pesadelos chatíssimos (mas qual não é?). Como disse Carlos Nejar, que “sumiu” do horizonte literário e merece ser revisitado, em especial no que diz respeito às suas primeiras obras: “Não cerro meu poema com persianas e horários”.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sem dúvida, à noite e madrugada adentro, tanto que meu primeiro livro, publicado quando eu tinha 16 anos, se intitula “Madrugada e Outros Poemas” (edição de autor, 1979). Confesso que gostaria de ser muito mais disciplinada, mas a minha literatura acontece quando quer e isso, na verdade, é uma grande liberdade e um prazer imenso. Já tentei me impor períodos só para a escrita e até hoje isso não funcionou – questões do cotidiano sempre os atrapalham, assim como uma vida de 33 anos dedicada ao jornalismo, com jornadas na maioria das vezes com início à tarde e término quando o Sol já estava do outro lado do planeta. Não gosto de rituais, aliás.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Entre os 10 e os 30 anos eu escrevia praticamente todos os dias. Tinha diário, um ótimo exercício literário, pois, às vezes, os poemas nasciam e cresciam no meio dos meus relatos, regidos por profunda melancolia e sensação de inadaptação ao mundo. Depois, o cansaço por causa do trabalho, a dedicação a relacionamentos amorosos e sociais fez que esse bom hábito sumisse. Tentei várias vezes retomá-lo. Sem sucesso. Nem mesmo agora que não tenho emprego fixo e disponho de mais autonomia para me organizar. Já essa “meta de escrita diária” me parece algo meio burocrático e ditado pela nossa sociedade fortemente capitalista – usar o tempo para essa atividade “inútil” que é qualquer arte seria perdê-lo para sempre. O que faz de artistas (escritores incluídos, óbvio) pessoas temerárias, ociosas e inconsequentes na opinião da maioria das pessoas. Claro que, se eu fosse autora de best-sellers de ocasião e vivesse disso, teria de produzir de maneira comercial e constante, o que está longe de ser o caso.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Escrevo quando sinto vontade e me sinto imersa em outra “frequência” – um estado de consciência leve e naturalmente alterada. No caso da prosa, sou lentíssima. Estou tentando um romance e acho que o primeiro capítulo está pronto, mas o restante vai depender ainda de muita programação e pesquisa. Sim, pesquiso tanto sobre os assuntos que quero abordar que as informações me engolem. Leio livros sobre o que preciso e textos que guardo em uma pasta do Word. Anoto tudo o que me ocorre no bloco de notas do celular ou do tablet e depois passo para o notebook. Foi assim que as personagens começaram a se delinear. Imaginei como seriam e busquei muitas imagens no Pinterest e no Google – coleciono-as numa pasta no computador que visito de vez em quando para me inspirar. Também a música me ajuda muito a entrar no clima – instrumental, erudita e jazz “calmos” e melódicos (piano, harpa, alaúde, violão, solos, trios, quartetos; nada de sinfonias, óperas, malabarismos virtuosísticos e improvisos). Os ruídos e a claridade excessiva são uma maldição. Para mim, fazem perder o foco e a paciência.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Muito mal. Tenho uma autocrítica feroz que volta e meia me paralisa. Sim, medo de não corresponder a nenhuma expectativa (afinal, ao abraçar o jornalismo, parei de escrever o que gostava de ler para dirigir-me a muitos, ao público heterogêneo de leitores de veículos impressos). Esse medo me persegue em qualquer gênero literário, incluindo o infantil, ao qual me dedico esporadicamente, com um livro publicado – “O Travesseiro Mágico” (Giostri, 2013) – e histórias que saíram no antigo suplemento “Estadinho” e na “Recreio”. Deve ser por isso que amei tanto (e fiquei aterrorizada com) o livro “Bartleby e Companhia”, de Enrique Vila-Matas, hoje um dos meus autores preferidos. Quanto à ansiedade, nesse setor ela não me pega, só se for na hora de fazer um texto encomendado, com prazo de entrega.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Numerosas vezes, desde que “nascem”. Como fui revisora do jornal “O Estado de S. Paulo” no início da minha carreira e editora-assistente na maior parte da vida, tenho o vício de revisar tudo, inclusive livros de outros e traduções que leio – e são muitos os rabiscos e correções à margem! Costumo submeter o que escrevo a menos de meia dúzia de pessoas – para um escritor amigo e para quem não é escritor (assim terei a visão do leitor). O meu saudoso amigo e talentoso poeta Donizete Galvão leu o rascunho do meu “Inventário da Solidão” (Giordano, 1999) e fez vários comentários à mão. Não fiz algumas mudanças que ele sugeriu, mas outras, sim. Já o infantil “O Travesseiro Mágico” passou pelas mãos da também saudosa Edla van Steen e fiz tudo o que ela pediu (ainda mais que era editora!). Já “Vênus em Escorpião” (Patuá, 2016) teve o aval de Carlos Machado (já entrevistado para este site) e de Alexandre Bonafim (poeta, professor de literatura e ensaísta) e foi o próprio editor da Patuá, Eduardo Lacerda, quem me convidou a publicá-lo. Antes, alguns poemas saíram em suplementos literários e revistas do Brasil e de Portugal – um indício de que eram bons… –, assim como quatro textos infantojuvenis. Também gosto de mostrar a mim mesma meus livros e os faço artesanalmente antes de submetê-los a avaliações (nesse caso, vão em Word mesmo, sem enfeites). A “primeira edição” de “Vênus em Escorpião”, por exemplo, foi uma caixa encapada com papel-camurça verde-escuro que continha folhas soltas com os poemas e reproduções de pinturas pré-rafaelitas. A ilustração que escolhi para a tampa da caixa inspirou a bela capa que Leonardo Mathias fez para o livro da Patuá.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia é muito boa. Minha adaptação ao computador foi natural desde o início, além de supernecessária, por trabalhar em jornais e revistas. Adorei a mudança. Passei por diversos programas de edição e aprendi bastante. Mas é muito difícil escrever poemas diretamente no computador (assim como era no tempo da máquina de escrever) – eles são algo corpóreo e emocional ao mesmo tempo, vêm de um impulso imediato e inadiável e pego qualquer papel e caneta que estiver à frente para escrevê-los. Mais recentemente, dirigindo numa estrada, um deles começou a insinuar-se e se compor no meu pensamento. Se não o registrasse de imediato, sabia que iria perdê-lo. Parei o carro num posto de serviços e gravei no celular o que vinha para passar a limpo depois e editá-lo. Já textos de ficção e não ficção não dão certo em cadernos e gravadores – outra vez deve ser vício de profissão. Prosa vai diretamente para a página em branco da tela. Uma curiosidade: meu primeiro livro infantil (ainda inédito) começou num e-mail que eu escrevia para minha primeira sobrinha, com 7 anos na época. Deixei o e-mail para depois e me pus a contar a história que estava imaginando. Depois confeccionei o livro com vários tipos e cores de papel, ilustrações retiradas da internet, e dei de presente a ela, que o amou e, como desenha muito bem desde criança, fez uma réplica com uma historinha parecida, escrita em letras de forma e ilustrada por ela mesma, que guardo até hoje, claro.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm de tudo o que me circunda – muitas nascem de diálogos imaginários, interiores –, de viagens, do que leio, de músicas, filmes e, algumas vezes, artes plásticas. Até a condição climática me influencia, principalmente (quando há) a de tempos outonais e invernais. Acho que o contato com tudo isso pode me manter criativa, são hábitos inerentes ao meu ser e estar.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Parece que perdi um certo lirismo, mais presente nos livros já publicados. Na prosa fiquei mais concisa, cortando trechos “adiposos” de cara, numa primeira relida ou no ato mesmo de escrever. A última coisa que eu gostaria de fazer é enrolar o leitor. E meus textos jornalísticos, muito objetivos no início, ganharam mais “literatura”. Não diria nada a mim mesma quanto aos primeiros escritos – eles não poderiam ter sido diferentes, dada a imaturidade etária e literária. Tudo tem seu tempo. O importante é querer melhorar sempre.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho um livro de poemas, a maioria inéditos, e alguns infantis que gostaria de ver impressos. O de poemas está sendo avaliado por um escritor e um leitor. Foi criticado (negativamente) pelo primeiro escritor que o leu; a primeira leitora gostou. Que fazer? Também penso em um romance que só tem um capítulo por enquanto. Estou em fase de pesquisa. Talvez vá ser um e-book. Se ficar muito bom, pode ser que eu contrate um agente literário para promovê-lo nas editoras porque o acesso ao responsável pelos departamento editoriais é quase sempre impossível, a não ser que você tenha muitos conhecidos influentes. Infelizmente, a literatura continua a viver de “panelinhas”. Se você não tem aptidão para bajular, fica de fora. Não há livro que eu gostaria de ler e ainda não exista. Há apenas livros que não existem e eu mesma gostaria de escrevê-los.