Luiz Roberto Guedes é poeta, escritor, cronista, tradutor e letrista sob o pseudônimo de Paulo Flexa.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tomo o café da manhã e ligo o computador. Se estiver escrevendo algo (um conto, uma noveleta juvenil, uma crônica), releio o texto e faço alterações. Quando não estou escrevendo algo novo, faço constantes retoques em contos ainda inéditos, reunidos em novas coletâneas. Essa prática me reassegura em meu ofício, se não estiver escrevendo. Alguém já disse que “escrever é reescrever”.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sou noturnauta. O trabalho flui melhor a partir das 16h. E embala à noite, entrando pela madrugada, quando o tráfego rareia e há mais silêncio. É possível escrever durante duas, três horas, se a “coisa”, a história, tiver sido pensada antes, pré-alinhada. E é preciso interromper a escrita sem ter contado tudo o que se sabe, deixando mais por dizer: assim, ao retomar o texto, ainda sabemos para onde estamos indo. O ritual de preparação inclui café, um charuto, um dicionário de sinônimos, uma espiada no dicionário Houaiss eletrônico, eventuais pesquisas no Google para checar isto e aquilo – detalhes.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
“Nenhum dia sem uma linha”, diz o preceito latino. Reescrever algum trecho também conta como trabalho. Se estiver criando um conto mais longo, escrever mais uma lauda e meia é um bom resultado. Se for um livro para o público juvenil, é possível adiantar mais um capítulo (de cinco ou seis laudas), porque esse tipo de livro tem um Plano de Texto pré-definido, um roteiro que nos permite entregar a história com ritmo e fluência, sem digressões e adiposidades. Mas, como diz o chavão, “cada caso é um caso”. Às vezes, um esboço de conto fica mais de ano em arquivo Word, até que me ocorra fazer alguma “colagem” que resolva o texto.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
No caso de uma noveleta juvenil, a pesquisa é feita pontualmente, a cada capítulo, segundo o roteiro pré-definido da história, o “esqueleto” do livro. A pesquisa de um tema fundante (experiências genéticas, digamos) serve para prover o chamado “substrato paradidático” de uma obra destinada ao público escolar, mas não deve incorrer em didatismo excessivo, que retarde ou atrapalhe o fluxo da narrativa. Se se tratar de um conto, as notas prévias já são uma sinopse da história: do ponto de partida ao desfecho. A escrita busca dar conta do conto com fluidez, clima, efeito. Ademais, a prosa literária moderna sofreu influência da linguagem do cinema. Preciso enxergar os personagens, o cenário, a ação… e acompanhá-los em suas peripécias. O “corte” de cena também é um recurso frequente nessas narrativas aventurescas. Vale observar que, quando Balzac descrevia um coche, por exemplo, dedicava algumas linhas aos arreios dos cavalos, para fazer seu leitor “ver” claramente a cena, e para deixar patente que sabia do que estava falando. Tinha feito sua “lição de casa”.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Abandonando o texto por um tempo. Trabalhando em outro projeto. Li que o célebre viajante inglês Richard Francis Burton chegou a trabalhar em nove livros ao mesmo tempo: tinha nove mesas, sobre as quais depositava todo o material referente a cada narrativa. O medo de falhar está sempre presente, mas redigir uma boa meia lauda, a cada passo, vai nos dando alento para persistir na escritura. Tenho um livro juvenil travado há anos, porque trata de uma navegação pelo rio Uraricoera, em Roraima, que não é navegável em todos os trechos… e pesquisas no Google não satisfazem o ditame da “cor local”. Enfim, todo projeto é longo ou lento. Com exceção dos livros para o público juvenil, que podem ser escritos e revisados em até noventa dias, quando chego a publicar um livro de contos ou de poemas, a coletânea já tem pelo menos quatro anos de idade. Ou mais. Por isso, costumo dizer que sou um “estreante tardio”.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Meus textos são continuamente revisados ou reescritos. Sabemos que Dalton Trevisan revisa seus contos até na hora de nova edição de livros já publicados. Costumo mostrar contos novos para escritores amigos, como Roniwalter Jatobá, Sérgio Fantini e Fernando Portela, e pedir palpites. Ajuda muito. Somos todos operários nessa fabricação literária, e precisamos de um “controle de qualidade”.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevi contos à mão no século passado, se não dispunha de uma máquina de escrever, naquele momento. Mas a tecnologia veio facilitar o processo de escrita. “Copiar” e “colar” é um recurso utilíssimo, inclusive criativo. Basta não nos deixarmos levar pelo facilitário, e pecar pelo excesso, narrar em excesso. Sei de um escritor que abriu mão dessa “facilidade” e voltou a escrever à mão, em cadernos, e só depois transcreve o texto no computador. No caso da poesia, continuo fiel ao papel e à caneta-tinteiro.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias dormem e ressonam num antigo baú mental atulhado de gibis, filmes, aventuras de capa & espada, pocket books, e até grande literatura, é claro. Essas referências se entrecruzam, e dão margem a novas formulações. Tenho um conto, A força de homem, em que há um triângulo amoroso: o marido numa cadeira de rodas, a esposa e o amante. Um dia, com grande surpresa, me dei conta de que era o mesmo trio de personagens do livro O amante de Lady Chatterley, de D. H. Lawrence. Alguém já disse que os livros novos nascem dos livros velhos. E escritores gostam de dizer que “o importante não é o que se conta, mas como se conta”. Além de ser um leitor infatigável, que se deixa arrebatar e ser desafiado por uma boa narrativa, também tenho o hábito de estar atento a uma possível história: costumo ouvir a conversa alheia em locais públicos, no metrô, numa viagem de ônibus etc.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Como jovem leitor impúbere, eu me deliciava com a luxúria verbal de José de Alencar. Quando fui enfrentar Machado de Assis, achei o estilo seco, despojado, quase “pobre”. Machado não é iguaria para leitor jejuno. Mas a “escrita magra” de Graciliano Ramos foi um marco miliário nessa estrada. Em termos de formação profissional, como publicitário ou jornalista bissexto, a síntese, a concisão e a precisão se impuseram desde sempre como modus faciendi. Não por acaso, a poesia é minha linguagem primeira. Assim, fui me adestrando nas chamadas “formas breves”. Como prosador, só posso querer “contar bem” uma história. O que eu diria hoje a mim mesmo? Creio que diria “parabéns, moleque, você realizou o seu sonho infantil de ser um escritor”. E até meio tardiamente, depois de passar vinte e tantos anos escrevendo anúncios.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever um romance sobre São Miguel Paulista, o bairro operário onde nasci, com a grande fábrica que havia lá, multidões de migrantes, vindos do Nordeste ou da Lituânia, a saga pessoal de meu pai, que começou operário e virou burocrata, e que trabalhou na fábrica por mais de trinta anos. Mas isso exigiria uma pesquisa enorme, acima de minhas forças ou empenho. Eu gostaria de ler meu próximo livro, que ainda não existe, e nem imagino por onde começar. Preciso tirar material da gaveta para “zerar” o temário atual. Para descobrir se uma velha serpente pode perder a pele antiga e ganhar uma nova.