Luiz Frazon é poeta e educador social, autor de “O nome pela metade” (Patuá, 2018).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Ao longo da minha vida acordar cedo sempre foi um problema. Sofro demais quando sei que terei que acordar muito cedo, a ponto de não dormir a noite toda, de entrar em estado depressivo. As manhãs na cidade não fazem muito sentido pra mim. As únicas vezes que acordo cedo sem hesitar é quando estou em meio à natureza. É por isso que sempre que pude optei por trabalhos noturnos. Trabalho como educador social em um abrigo e já a uns 10 anos no período noturno. Chego em casa por volta das 06:30 e durmo até 12:00, salvo quando tenho algum compromisso, ou quando fiz faculdade no período diurno, aí a coisa era louca, ficava 24 horas sem dormir, chegava do trampo e ia para a aula. Á noite sou uma pessoa melhor, acredito. Fui compreender um pouco mais dessa coisa toda quando meu amigo Leonardo Mathias certa vez tirou cartas xamânicas para mim e lá dizia sobre os lugares e também as horas de poder. Creio que muitas crenças, a psicologia e a própria filosofia explicam essa mesma coisa de inúmeras formas. Sem dúvida, a noite, a madrugada, é minha hora de poder. E se a contrapartida serve, nas manhãs me sinto menos animado, digamos assim, então prefiro dormir ou quando não consigo, quando a insônia bate (acontece de vez em quando) gosto de passar um bom café curtindo lentamente o momento e esvaziando a cabeça.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
O final da tarde é algo magnífico para mim, uma espécie de portal para a entrada da noite. Eu realmente acho que o por-do-sol é uma das coisas mais lindas da vida. À medida que o mundo escurece e o lusco fusco predomina num curto espaço de tempo, vou me tornando alguém capaz de produzir melhor, de pensar com mais afinco, com mais ânimo. Quando minha rotina se encaixa e eu consigo dormir bem pela manhã, fazer algum exercício físico no fim de tarde, a noite flui muito bem. Pensando no processo de escrita, não me recordo de ter sentado para escrever (o labor em si) fora do período noturno. Aquilo que precede a linguagem, a centelha de inspiração, a observação, a cena, as falas, isso tudo não tem hora pra acontecer e costumo ficar atento a isso, embora muitas vezes essas coisas se percam por uma falta de método ou disciplina mesmo. Eu sou um pouco descuidado com a minha escrita, nesse sentido mais prático. No entanto, quando consigo formar o bojo de um livro, de entender os poemas já como uma unidade, gosto de ir para um lugar tranquilo para terminá-lo. Aquela coisa de uma escrivaninha numa janela, a natureza como paisagem, livros empilhados, uma taça de vinho e o note e a máquina de escrever na frente é um clichê que para mim é necessário. É exatamente a ruptura com todo o resto. No meu último livro, levei todo esse bojo para a Rosa dos Ventos, sítio do professor Carlos Rodrigues Brandão e que costuma acolher pessoas que buscam um certo sossego. Não é difícil cruzar com músicos, professoras, escritores, pesquisadoras por lá. É um lugar pelo qual tenho muito carinho. De manhã (lá eu acordava cedo…) eu saia para caminhar pelo mar de morros de Minas, nos riachos até ver o por do sol, depois de um banho e de comer, ia para o quarto escrever. Mesmo que eu tenha repetido isso pouquíssimas vezes, não abro mão de que isso seja meu principal ritual de escrita.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Na verdade passo grandes períodos sem escrever. De modo geral eu escrevo pouco. A rotina e o trabalho acabam criando uma impossibilidade de que o ócio, no sentido grego da palavra, se estabeleça no espaço / tempo necessário. “O tempo que mais nos pertence: são as horas em que não fizemos nada” disse Cioran, e eu acredito nessa necessidade de esvaziar o tempo e a mente para que outras coisas fluam… de maneira geral, escrevo concentrado. Aproveitando folgas ou períodos de férias etc. Percebo que o que eu consigo fazer na leitura não consigo estabelecer na escrita. Ao ler, parece que consigo criar fissuras nesse emaranhado da vida. Para mim, ler é mais importante e mais prazeroso que escrever exatamente por permitir essa quebra com mais facilidade.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Pensando agora nessa pergunta, eu percebo que o meu movimento flui da escrita para a pesquisa. Por mais que a poesia envolva milhares de coisas que precedem a palavra raramente vou para o bloco de notas ou para o note sem um primeiro verso. E é a partir desse verso, da capacidade de potência que ele pode ter, da encarnação do verbo, é que vou me debruçar em outros livros, pesquisar, trabalhar para desenvolvê-lo. Agora, pensando aqui comigo, creio que é por isso que perco muita coisa. Esse verso que surge primeiro é como água. Difícil de segurar nas mãos. A pesquisa já detém em si um método, um modus operandi que no mínimo faz a pessoa sentar e ter por perto algo para anotações. É um começo mais alicerçado. Mas na maioria das vezes primeiro surge o verso, o impacto do verbo, depois o trabalho e muito trabalho, como diria Orides Fontela: a teia, não arte, mas trabalho, tensa. Às vezes escrevo na máquina de escrever. Mas aí o processo é outro. É outra vibe. Nesse caso, o mais importante é o momento e sua composição espacial, é o som metálico das teclas da máquina, é o papel, a luz, uma bebida, um disco rolando. Geralmente as poesias escritas assim saem ruins, exatamente por não protagonizarem no momento, mas eu não ligo e até já aproveitei bastante coisa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu nunca me senti procrastinando ao escrever poesia. No meio acadêmico, na época escolar sim! E como procrastinava… Já com poemas a relação é outra. A não ser que existam relações mais complexas do mundo editorial com o autor etc., ou mesmo quem se dedica a escrever um romance, de costuras extremamente complicadas, híbridas, que exigem maior conhecimento das estruturas do gênero, e que devem exigir uma maior disciplina no processo de escrita (aliás, li a entrevista do Itamar Vieira Junior para o Como eu escrevo e ele fala exatamente isso), mas aí desconheço, um romance é muita areia para o meu caminhão. Enfim nesse sentido gosto muito de uma fala do mago Gandalf em O senhor dos Anéise penso que poetas podem parafraseá-la: Um poeta nunca se atrasa, nem se adianta, ele escreve exatamente quando deve escrever. É engraçado, mas é real.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A contemplação da obra de arte é parte fundamental do todo. Acredito que a maioria das pessoas que criam necessitam de um respaldo, de uma leitura ou contemplação que revele a princípio outras impressões que não as que nós que escrevemos conhecemos. Eu pelo menos sinto a necessidade de mostrar os meus trabalhos antes da publicação. Pareyson diz que “a arte é um tal fazer que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer”, é o tal do aprender a fazer, fazendo. Isso para mim é muito real. Sendo assim, voltar ao texto, revisá-lo incansavelmente é parte do próprio modo de criação. As revisões juntamente com a leitura de outras pessoas ajudam a consolidar o que foi criado e como e porque foi criado. São coisas fundamentais. Acho que uma das coisas mais prazerosas que existe é quando alguém dá atenção ao seu texto. O que é raro, mas existe.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Vou partir do fim para o começo: no fim de tudo, depois de organizados os poemas, de ter um original, eu gosto de visualizá-lo impecavelmente em PDF. Tudo digitalizado e organizado. Daí pra frente, ou melhor, daí pra traz é cada vez mais uma bagunça. No início de tudo, tenho coisas escritas no computador (que é uma bagunça), em rascunhos de papel, na máquina de escrever e até no celular. Uma das coisas que faço ultimamente é mandar whatssap para mim mesmo, para não perder os versos que surgem e que posso usar eventualmente. A tecnologia ajuda, mas às vezes faz a gente morrer de raiva. Esta entrevista mesmo: estou respondendo pelo celular porque fui abrir o meu computador e deu pau…
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acho que uma das maiores fontes de criatividade é o outro, o próximo. A alteridade, a empatia, a benignidade, a misericórdia, o perdão, a clemência… A prática dessas virtudes estão intimamente ligadas à criatividade, porque ser criativo requer, sobremaneira, olhar para fora de si. Dentro de nós apenas podemos transformar coisas, mas coisas novas só conseguimos ao olhar para fora: “Aquele que agora morre em qualquer parte do mundo / sem motivo morre no mundo / me vê a mim.”. A partir disso, outros hábitos contemplam a criatividade. Ler, por exemplo, é algo fundamental. Nesse universo da leitura, podemos entender filosofia na língua de Orides Fontela, sentir amor na língua de Guimarães Rosa, temer a morte na língua de Tolstoi. É literalmente o rosto de outra pessoa interpelado ao seu rosto. Nada pode suscitar maior criatividade que isso. A partir desse macro é possível partir para as coisas mais esmiuçadas, mais próximas e mais proporcionais à minha capacidade, que é a de tatear o poema, de tocá-lo ainda em mistério. Os grandes não, os grandes como Orides, Plath, Drummond, Rilke pegam a poesia pelos chifres e fazem o que querem com ela.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho difícil responder para além das mudanças mais convencionais que sempre gostaríamos de fazer, mudar uma palavra aqui, uma disposição ali. Na verdade, eu não retomo muito meus escritos depois de publicados. É como um parto, depois que o livro nasce ele exige alguns cuidados, mas a relação que se estabelece é apenas de amor. Não dá pra criar um filho e mantê-lo debaixo das asas, tem que deixar ele ser no mundo. O livro é a mesma coisa. Mas sim, eu me daria alguns conselhos. Diria que eu poderia confiar mais em mim, que eu poderia me sentir um pouco mais escritor, que não é porque eu escrevo pouco que não posso me apropriar desse lindo ofício.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria muito de escrever um livro de contos. Um livro que ao mesmo tempo trouxesse algumas de minhas experiências como educador social em um abrigo para crianças e adolescentes vitimizados ao longo dos 15 anos de profissão. Esse seria o livro que gostaria de ler, mas que ainda não existe.