Luiz Filipe Araújo é professor de Filosofia do Direito e Teoria do Direito da Universidade Federal de Viçosa.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha rotina pode ser bastante variável, a depender se dou aulas bem cedo ou se tenho algum outro compromisso inadiável pela manhã. Mesmo já tendo utilizado sono polifásico em momentos mais críticos da minha vida acadêmica, atualmente dou bastante valor à qualidade do sono para o bom estado de espírito, tendo conseguido manter ao menos 8 horas de descanso inclusive durante os períodos de redação da tese de doutorado. Sobre isto, não posso deixar de mencionar que passei a dormir muito melhor depois de começar a tomar melatonina, hormônio natural que acaba sendo afetado pela luz, já que utilizo telas iluminadas até logo antes de dormir. Ainda que eu tenha passado a usar as telas quase sempre com as luzes invertidas, deixando o fundo preto, reconheço os males que a luminosidade das telas causa no adormecimento e consequentemente no despertar. Por outro lado, uma vez acordado, a rotina matinal que mais me agrada é alongar e, se há tempo, fazer em jejum alguns exercícios moderados com kettlebell, para logo depois tomar um café expresso ou um chá sem açúcar. Aí, sinto-me pronto para começar o dia com ânimo e disposição para atividades acadêmicas, especialmente as aulas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho um melhor momento do dia para trabalhar, meu estado de vigília é bem constante. Todavia, hoje sempre tento otimizar minhas atividades, adequando-as aos períodos do dia de acordo com a minha vivência pessoal. Depois de muito experimentar, cheguei a uma fórmula particular: estudos e leituras na parte da manhã, atividades mecânicas e burocráticas à tarde e atividades criativas à noite, nisto se incluindo a escrita e a preparação de aulas. Claro que isso depende bastante do clima e da época do ano. No Brasil, quase em regra com nosso verão constante e inverno tropical, certamente deve se buscar o conforto climático. Como costumo brincar, o ar condicionado é um marco civilizatório para a dignidade humana em nossas terras.
Inegavelmente tenho um ritual para escrita, mas preferiria não tê-lo. Seria perfeito poder escrever a toda hora e em qualquer lugar, entretanto não é possível para mim pensar e escrever criteriosamente numa praia em pleno verão, por exemplo. Isso porque sou apegado, até dependente, de tecnologia. Assim, meu set de computador, telas múltiplas e apetrechos devem estar organizados e à mão para a escrita em profundidade com pesquisa constante. Mais uma vez, conforto do corpo, clareza para a mente. Afinal, não sou um escolástico conimbrense que vai estudar numa cadeira dura com os pés imersos em água fria para não dormir. Claro que para breves anotações ou textos curtos essa metódica não se aplica.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quem me dera escrever todos os dias, isso sim é uma meta. Gostaria de escrever muito mais do que escrevo, mas as atividades de ensino, como meticulosamente as organizo, podem demandar bastante tempo ao longo do semestre letivo. Sem contar os encargos administrativos que a universidade pública exige dos docentes, no meu caso especialmente a coordenação de curso. Estas são experiências engrandecedoras, mas que deslocam o eixo da pesquisa para outros pilares do ensino superior.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Essa pergunta merece uma digressão. Certa vez vi uma imagem que me marcou profundamente: uma foto de Umberto Eco, que para mim foi um dos intelectuais mais brilhantes que já pude ler, em sua biblioteca de 30.000 volumes em Milão. Ele estava próximo de sua mesa de pesquisa, onde estavam dezenas de livros abertos no que parecia um caos infindável de obras. Ao ver essa imagem, lembrei de meu orientador de monografia que certa vez me disse retoricamente: “livros não são feitos para serem lidos, mas consultados”. À época, isso me pareceu radical demais, mas hoje vejo que a grande maioria dos livros existem para serem consultados em variados níveis de leitura, como ensina Mortimer Adler. Só os clássicos devem ser realmente lidos com atenção e profundidade únicas.
Assim, uma vez que fiz as leituras que achei necessárias, após várias pesquisas numa espécie de labirinto bibliográfico, passo à escrita com liberdade, recorrendo seguramente às notas para as devidas referências. Faço isso sem abrir mão de ter um sumário estruturado do texto sempre acessível. Hoje tento equalizar melhor a relação entre inputs e outputs na vida acadêmica. Depois de certo tempo, você percebe que se pesquisou seriamente um assunto poderia passar o resto da vida lendo sobre um só tema sem produzir uma só página. Assim, este salto da leitura para escrita poderia se transformar num abismo intransponível. Deste modo, hoje valorizo muito o esquema prévio do texto a ser escrito, pois ele é meu fio de Ariadne. Escrever deve ser visto como uma forma de intensificar e expandir o fluxo de conhecimento para além da mente do pesquisador, alcançando a sala de aula e a comunidade acadêmica.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não tenho tantas travas da escrita. Todavia, a procrastinação é um dos males do nosso tempo. Quase sempre existem coisas mais agradáveis para se fazer e somos assediados a todo tempo pela mídia, consumismo e trabalho. Nestes momentos que devo escrever me lembro de Beethoven citado por Milan Kundera no romance “A Insustentável Leveza do Ser”: Muss es sein? Es muss sein! Que numa tradução bem livre seria: Assim deve ser? Assim deve ser! E ponho-me a escrever.
A bem da verdade é que excesso de tempo pode ser desperdício de tempo. Meus momentos de maior atividade acabaram sendo de maior qualidade de vida e resultados acadêmicos. Você acaba aproveitando cada minuto disponível.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muitas vezes, especialmente dando um tempo de pelo menos um dia entre escrita e revisão, mas podem ser semanas ou meses. Trata-se de um modo de assentar o pensamento e melhorar o estilo, como se fossem outros olhos. Gostaria de expor mais meus trabalhos para outros acadêmicos antes de publicá-los. É difícil exigir até dos amigos tempo para a leitura meticulosa de nossos textos. Na verdade, no Brasil publicamos muito, mas lemos pouco os nossos pares. Discutir ideias então, muito menos. Se você não está integrado a um programa de pós-graduação de excelência, é difícil se inserir em discussões acadêmicas sérias a todo tempo. Quando muito seu melhor leitor será um bom revisor de periódico, que o faz por obrigação na maioria das vezes, sem o mesmo ímpeto necessário para uma produção agonística do pensamento.
Por isso cada vez mais me agradam os pequenos encontros acadêmicos, seminários de pesquisa, grupos de estudos, pois são oportunidades privilegiadas para o embate de ideias. No Brasil há muito glamour nos congressos jurídicos, muita pompa e ostentação. Conferências com grande oratória, mas pouca densidade. Fala-se e congratula-se com palmas, mas sem maiores questionamentos. Sempre tive essa impressão ao comparar tais congressos com os eventos da filosofia; é outro modo de articular o pensamento, a pesquisa e a debate. No direito só vi isso nos modestos eventos nacionais que mencionei. Ainda me encontro bastante impactado pelos seminários de pesquisa que presenciei durante meu doutorado sanduíche na Áustria e pelos eventos da IVR na Alemanha; paradoxalmente, são mais simples, porém mais intensos. As pessoas realmente estão lá para aprender algo e discutir, seja um vetusto catedrático ou um novel pós-graduando.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Para quem foi introduzido ao mundo da pesquisa através de “Como fazer uma tese” de Eco, compilo notas, anotações, referências etc. Não posso confiar apenas em minha memória. Todavia, sou de outra geração, as tradicionais fichas brancas em arquivos físicos não fazem parte da minha realidade. Desde 2005, ainda no tempo que eu usava um PocketPC – mais conhecido como Palmtop -, guardo tudo em bancos de dados digitais. Adaptei os fichamentos físicos de Eco ao mundo digital e hoje mantenho tudo em nuvem. Um risco? Sim. Mas uma comodidade e potente ferramenta.
Sou aficionado por tecnologias. Nunca estou sem um gadget. Desde a adolescência só estudo e trabalho com música. Assim, sempre tenho à mão fones de ouvido para me refugiar no meu mundo pessoal e focar na tarefa a ser realizada. Um certo tipo de autismo adquirido, é verdade. Basta saber escolher qual estilo musical irá apreciar para cada atividade. Além disso sou um entusiasta de telas múltiplas, já cheguei a usar quatro monitores ao mesmo tempo. Os alunos e professores que chegavam ao meu gabinete achavam que estavam em Matrix. Hoje basta um monitor com alta resolução que você consegue separar várias janelas de trabalho. Recomendo, façam um teste num monitor 4K: certamente será suficiente para quatro janelas confortáveis e, dependendo do tamanho da tela, até oito delas. Parece insano, mas é um modo de trabalho muito interessante e imersivo – e sobretudo produtivo.
Entretanto, mais uma vez Umberto Eco é um exemplo e inspiração, mesmo sabendo que ele discordaria de mim quando torno secundário o contato físico com os livros. Nassim Nicholas Taleb em sua “Lógica do Cisne Negro” fala do que seria a anti-biblioteca de Eco. Por ser uma entrevista, faço questão de citar livremente a obra:
“Umberto Eco pertence a um pequeno grupo de acadêmicos que são enciclopédicos, inteligentes e interessantes. Ele é dono de uma biblioteca pessoal enorme (contendo 30 mil livros) e separa os visitantes em duas categorias: aqueles que reagem dizendo, ‘uau! Signore professore dottore Eco, que biblioteca você tem! Quantos desses livros você já leu?’ e aqueles – uma pequena minoria – que entendem que uma biblioteca particular não serve para inflar o ego, mas é uma ferramenta de pesquisa. Os livros já lidos são muito menos valiosos que os não lidos. A biblioteca deveria conter o máximo do que você não conhece conforme seus recursos financeiros, taxas de hipoteca e o atualmente inflexível mercado imobiliário permitem. Você vai acumular mais conhecimento e mais livros conforme envelhece e o crescente número de livros não lidos nas prateleiras olharão para você ameaçadoramente. Na verdade, quanto mais você sabe, maiores são as fileiras de livros não lidos. Vamos chamar essa coleção de livros não lidos de ‘anti-biblioteca’.”
Eu adaptei a ideia à minha realidade. Praticamente a totalidade do meu acervo está digitalizado, muitas vezes por e para mim, e, portanto, à minha disposição em quase todas as circunstâncias. Meu prazer de descanso é organizar “minha impalpável biblioteca”. Tenho até uma quantidade razoável de livros físicos, por volta de 1.000, mas fico satisfeito por isso a cada vez que penso como seria impossível para mim adquirir e gerenciar 30.000 volumes como Eco; os recursos materiais para tal proeza só sendo um autor de best-sellers. Por outro lado, uma boa biblioteca digital, organizada e conhecida pelo seu dono pode ser uma grande fonte de pesquisa. Ainda mais pensando nas limitações de nossas bibliotecas nacionais. Enfim, me vejo como um José Mindlin virtual.
Deste modo, unindo as inspirações a partir de Eco a uma anti-biblioteca digital, transito rapidamente de meus fichamentos digitais, referências acessíveis, para o texto preliminar. Sempre a partir de um rigoroso esquema textual feito em um mapa mental. Sempre tenho um mapa mental para cada aula, exposição e projeto, é meu modo de fazer o primeiro esboço e pouco a pouco avançar para o texto. Enfim, sou daqueles que não acham o Word o sumo bem da edição digital. Existem ferramentas muito mais interessantes.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As minhas melhores ideias vêm antes de dormir e logo depois de acordar. Por isso, não são raras as vezes em que recorro ao celular para anotá-las. Todavia, todo momento se bem experenciado, pensando em Miguel Reale, pode ser fonte de grandes reflexões. Muitas ideias também surgem durante minhas aulas, ou quando faço um diálogo silente num evento, recorrendo mais uma vez às anotações. Criatividade vem da sua capacidade de perceber a realidade além do que se vê. Dito de outro modo, aprender a ler o livro da vida como diria Schopenhauer.
Para mim certamente grandes fontes de inspirações são as leituras descompromissadas de filosofia, história e literatura, especialmente biografias e auto-biografias. Quanto a estas duas últimas tenho lido com grande interesse nos últimos tempos. Nelas encontramos os exemplos das grandes mentes em suas mais singelas experiências, positivas ou mesmo negativas, já que até os gênios se frustram. Recomendo três, para ficar mais próximo do mundo jurídico, que são extremamente interessantes e divergentes: Hans Kelsen, Eric Voegelin e Miguel Reale.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
O meu processo de escrita foi se aprofundando ao longo de minha formação, porém a base do meu modo de argumentação desde a monografia de graduação é deveras semelhante a partir de um modo agonístico de exposição. Assim, ao longo do meu processo de escrita, a tecnologia aliada à imersão tem sido a tônica, porém a grande questão que se impõe para mim é de estilo, o qual se deve lapidar lentamente. Sobre o estilo, deixo uma recomendação de Nietzsche, de acordo com Lou Andreas-Salomé, que é quase um aforismo de cabeceira para a redação:
“Para a Teoria do Estilo
1. A primeira coisa necessária é vida: o estilo deve estar vivo.
2. O estilo deve ser apropriado a ti em vista de outra pessoa bem definida com a qual queres te comunicar (lei da dupla relação).
3. Antes de escrever, deveríamos saber exatamente como diríamos e exporíamos o assunto. Escrever deve ser imitação.
4. Por faltarem ao escritor muitos dos recursos do expositor, deve em geral ter como modelo um modo de exposição muito mais expressivo: a cópia, o escrito, necessariamente resultará muito mais pálido.
5. A riqueza de vida revela-se na riqueza de gestos. Devemos aprender a sentir tudo — comprimento e concisão das frases, pontuação, escolha das palavras, pausas, sequência dos argumentos — como gestos.
6. Cuidado com o período! Só devem usá-lo aqueles que, ao falar, têm uma longa respiração. Com os demais, o período é afetação.
7. O estilo deve prover que acreditamos em nossos pensamentos, que não só os pensamos, mas também os sentimos.
8. Quanto mais abstrata a verdade que queremos ensinar, tanto mais devemos atrair para ela os sentidos.
9. O tato do bom prosador na escolha de seus meios consiste em chegar bem perto da poesia, mas nunca transferir-se para ela.
10. Não é polido nem prudente antecipar ao leitor as objeções mais leves. É muito polido e muito prudente deixar ao critério do leitor expressar ele mesmo a última quintessência de nossa verdade.”
(in ANDREAS-SALOMÉ, Lou. Nietzsche em suas obras. São Paulo: Brasiliense, 1992. Pág. 141)
Quanto ao segundo questionamento, se eu pudesse, com certeza continuaria eternamente a escrever e reescrever a dissertação e a tese; no entanto, como aprendi com meu orientador, professor Renato Cesar Cardoso: você não conclui a tese, mas desiste temporariamente dela. É claro que sempre há algo novo a se incluir e algo a aperfeiçoar, todavia são trabalhos que devem ser datados como ritos de passagem para aqueles que almejam verdadeiramente a vida acadêmica.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho dois grandes projetos bibliográficos, um curso de teoria do direito e um de filosofia do direito, traçando em ambos a formação histórica do pensamento jurídico, sem deixar de lado aspectos práticos da ciência do direito. Sei que é um projeto de vida, muitas vezes adequado para o professor após uma longa jornada, mas acredito que inverterei um pouco a ordem, como comumente gosto de fazer, para se tornar um projeto de médio prazo de forma a me ajudar no próprio percurso da vida acadêmica.
Outra paixão bibliográfica que tenho são dicionários e enciclopédias, tenho quase 600. Espero ainda encontrar um dicionário enciclopédico que trabalhe bem as principais categorias da ciência do direito e temas da teoria e filosofia do direito; uma versão jurídica do Historisches Wörterbuch der Philosophie. Deposito minhas expectativas na enciclopédia que está sendo organizada pelos professores Stephan Kirste, meu co-orientador de doutorado, e o professor Mortimer Sellers: Encyclopedia of the Philosophy of Law and Social Philosophy da IVR, que será publicada pela Springer nos próximos anos.