Luiz Felipe Leprevost é escritor.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tento me organizar para não ter compromissos fora de casa pela manhã. Gosto de acordar, tomar café com calma e então sentar para escrever. De uns anos para cá, tornou-se o período ideal de trabalho. Claro que driblar os demais afazeres, as urgências burocráticas, as correrias, não é nada fácil. Para ser bem sincero, até o ano de 2019 (morando no Rio) era impossível, eu tinha que sair de casa por volta de 8:30 para estar na sede da companhia teatral, com a qual colaborava, às 10 horas em ponto. Ao longo de 2020 (já tendo voltado para Curitiba), por conta do isolamento imposto pela pandemia, mais um contrato que nos permitiu (a mim e aos meus colegas de elenco) realizar um projeto nas redes sociais, pude ter certa rotina de escrita ao longo das manhãs. Infelizmente, não vou conseguir me manter assim agora em 2021, pois se impõe a necessidade de um emprego formal fora da área artística.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Como vinha dizendo, de manhã trabalho melhor. Não tenho nenhum ritual, apenas abro o caderno ou o computador (dependendo da fase em que o texto ou o livro se encontra) e escrevo. Quer dizer, não tenho ritual mas tenho processo. Caderno e caneta sempre comigo, vivo fazendo anotações. Tento ter versões, na medida do possível, inteiras, bem estruturadas, escritas à mão. Depois, numa tentativa de organização do trânsito no fundo do oceano, vou passando os manuscritos (que, apesar dos meus esforços, revelam-se caóticos) para o computador. É um jeito de criar bem artesanal e demorado.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho metas diárias. Mas posso considerar que escrevo todos os dias, pois me parece que estar em estado de atenção, de interesse poético na relação com a vida, é já de várias maneiras escrever. É um pouco estar treinado até mesmo para o aspecto “distraídos venceremos” da coisa, colhendo ideias em lugares que para a maioria das pessoas não suscitariam inspiração nenhuma. E há a parcela nessa brincadeira que é trabalho, se não sério, duro. É querer fazer e aí de fato fazer, pois não basta só querer. No meu caso, a prática, o hábito das anotações, da observação do mundo externo e do interior (sentimentos, intuições), coloca-se como ofício. Diria o seguinte: eu meio que sempre estou a fim. Tipo: vamos? Vamos. O poema então, quando vai surgindo, é aquele lugar em que esses espaços (dentro, fora) se amalgamam e materializam um outro universo, até então desconhecido (identificável por alguns aspectos, ao mesmo tempo carregado de mistério).
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Hoje consigo compreender e aceitar que meu processo de escrita não tem começo nem fim, é um contínuo. O que está aí, digo, o que já publiquei, são fragmentos do contínuo. São recortes, escolhas, compilações. São fluxos, espaços de transmissão e de transição. As pesquisas, por sua vez, são diárias e constantes também – um livro que leio, uma conversa, algo que me mobiliza, os conflitos da sociedade, a bizarria da política, um erro que cometo e me obriga a repensar minhas ações, etc.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
O tempo da escrita, o tempo do processo, confesso, me causa mistura de prazer e angustia. Se digo que o fazer é um contínuo, ainda assim tenho vontade (ou a vaidade?) de escolher, recortar, montar, conceituar e ver a coisa publicada em formato de livro. De tal sorte que se faz necessário administrar fases, etapas e dizer, em dado momento, é a hora. Compreender quando é possível passar do caderno ao computador, do computador ao livro (agir dentro das exigências de tais feituras), gera bastante gozo (e ansiedade). Sabe, o processo é sem fim, mas os projetos é melhor que não sejam. É preciso concluir ciclos, o que não implica em fecharmo-nos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Tento revisar o máximo de vezes, especialmente quando o intuito é publicar. É um cuidado que procuro ter. Alguns errinhos aqui e ali sempre passam. Sofro com isso, porém, humana e humildemente, aceito.
Tive e tenho bons amigos-artistas-interlocutores-criativos-e-críticos com quem privei e privo de tempo de conversa, discussões, ócio e parceria. A influência de nosso encontro na vida, os afetos gerados e colocados em circulação, sempre foram e são motrizes, impulsos, danças da experiência da troca, da relação – pelo exemplo, pela comparação (no bom sentido, espero, rs), pelo desafio, pela provocação, pelo desejo de realização, pelo entendimento, pelo amor ao outro.
Tais confluências também podem se dar de modo mais objetivo, como quando Otavio Linhares editou meu livro TUDO URGE NO MEU ESTAR TRANQUILO, pelo selo Encrenca (da Arte & Letra). Aproveito, inclusive, para fazer uma menção ao Thiago Tizzot, com sua editora (Arte & Letra) tem depositado grande confiança em meu trabalho (há seis livros de minha autoria publicados pela casa).
Mais recentemente, digo, desde o começo de março de 2020, tendo começado pouco tempo antes um relacionamento amoroso e, coincidentemente, me vendo obrigado ao isolamento, acabei por ter na inteligência, sagacidade e sensibilidade de Lívia Costa a mais direta, perfeccionista e impiedosa interlocutora. Também tenho trocado bastante com Fabiano Vianna, que me envia vez ou outra seus contos (serão publicados este ano pela – alegria – Arte & Letra) e para quem envio alguns dos meus. Também indicações de livros e filmes circulam pelos igarapés das nossas cavaqueiras.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Primeiro, toda vida com a caneta abrindo sulcos coloridos no caderno, na luta vã entre a mão selvagem e a mão domesticada. Depois, em algum momento, transpondo (ou traduzindo? rs) o caos para o computador, tentando encontrar algo que faça sentido ali. Que possa ser uma espécie de estrutura, mesmo que imperfeita. Algo que se sustente, contenha e suporte tudo do que aquilo é feito e, de um jeito ou de outro, será atravessado e vazará.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Leio bastante. Tento intercalar os livros de autores contemporâneos com as obras ditas clássicas. Teatro, filmes, artes visuais, são alimentos. Eu me sinto, de modo geral, conectado com o universo artístico. O meu dia a dia está bastante preenchido por esses interesses, desejos e práticas. Ao mesmo tempo, há os demais aspectos da vida e é, especialmente, com esses limões (mais ou menos amargos) que precisamos fazer a tal limonada (no caso, poética). Afinal, temos uma vida pela frente, ou, pelo menos, um pedaço dela. E é desse pedaço – o que sempre falta – que a faremos inteira.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que a gente vai ganhando mais consistência e consciência do ofício. Aprendendo maneiras de escrever, inventando as próprias técnicas. Por exemplo: coçar a perna até alcançar o osso; ou a tentativa de compreender a fúria-ternura da água; ou ainda imprimir o próprio rosto no musgo. Também comove o que está a colar penas umas nas outras com o intuito de produzir asas, mas para o poeta o Paraíso é ao rés do chão e impossível, por mais que o texto voe divindades. Por fim, é impossível não lembrar velho coração humano dilacerado, perpetuamente buscando restituição. No turbilhão disso tudo se vai adquirindo repertório, não é mesmo? O lado ruim é que a gente corre o risco de ir perdendo aquele elemento selvagem, pulsional da escrita, aquela permissão de que o inconsciente verta pela mão irrigando o papel.
Pudesse voltar aos meus primeiros textos, requeria ainda com mais radicalidade: escreva, solte a mão, experimente o máximo de possibilidades, não se preocupe em encontrar uma voz, você tem o corpo todo, não me diga que vai querer agora isolar uma voz e enfiar num laboratório (num curso de escrita criativa, numa oficina de forma e metreficação)? É como li numa postagem no Facebook do poeta Ricardo Pedrosa Alves: “não existe isso de uma voz. a voz é um vendaval, detritos voando, janelas quebradas.” Se o seminovo (hehehe) que sou gosta de ouvir uma provocação assim, imagine aquele garoto-reboque-de-Rimbaud.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho uma ideia para um poema épico-contemporâneo sobre certo acontecimento histórico que liga a região do litoral do Paraná com Curitiba. Veja, a ideia existe mas sequer sei por onde começar, rs. Outros projetos estão em andamento, sabe como é, um romance inacabado, um conjunto de contos, cardumes de poemas saltando na piracema em que tenho estado e gostavam de virar livro.
Gostaria de ler o livro que resultasse da experiência da paz mundial. Que resultasse da experiência da real comunhão entre nós seres humanos e o nosso planeta, o meio ambiente. Todos os livros que foram escritos até agora (ao menos os que conheço e os que li) são sobre a guerra, a guerra do humano contra forças divinas, contra a natureza, contra o seu igual, o seu irmão, contra si mesmo. De um jeito ou de outro, a história da literatura é a história da guerra humana, é o resultado dos modos (até agora) destrutivos de se viver aqui na Terra. Sonho com um livro que fosse o resultado de algo inédito, nunca ainda experimentado por nós, e que contivesse a paz (de modo amplo e irrestrito, não utópico) dentro dele.