Luiz Carlos Montans Braga é professor de filosofia na Universidade Estadual de Feira de Santana.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
O dia vem sorrateiro e invade. É sempre uma doce violência (bruta flor, como disse o aedo baiano) acordar. Onde estávamos no momento do sono e do sonho? Mistério para o qual os budistas dão muita atenção – o bardo do sonho, como diz o Lama Padma Samten, a partir da tradição budista tibetana. Mas nós só nos vemos quando a consciência desperta, olha para si, e nos esquecemos de que ela é toda – ou quase – determinada pelas afecções que nos levam de um lado a outro. Espinosa já nos advertiu da ilusão do livre-arbítrio. Estou vacinado quanto a esse delírio. Bom, o que sobra? Sobra a coisa como é, a realidade efetiva da coisa, como diria Maquiavel, aqui usado com mil licenças poéticas e ressalvas conceituais: não começo meu dia, o dia me começa, por assim dizer – o que não é dizer muito.
Feitas as ressalvas, à resposta: café, já sinto o aroma antes de o fazer. E tem que ser em grãos, moídos no moedor elétrico, variedades do sul de Minas ou do Cerrado mineiro. Frescura? Não! Fundamento de uma boa manhã. E de um ótimo dia. Depois de tomar um “café de café”, e não as mentiras vendidas em forma de pó de café nos supermercados, aí sim – aí sim! -, o dia pode vir. Após, ao escritório resolver os probleminhas e os problemões. Leio os jornais pela manhã quando há tempo, quando as urgências não invadem os minutos e levam a leitura de dois – ou três – jornais para depois. Também sites e blogs na internet. Mas a análise a ser feita é que importa. Essa é sempre fresca. A tarde fica com as leituras do pós-doc. E com a escrita. Uma invade o tempo da outra. Mas prefiro ler bem mais – e, quanto a escrever, bem menos e em períodos concentrados, em geral.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho bem de manhã e de tarde. Quando é preciso invadir a noite, o outro dia cobra a fatura. É como uma ressaca por excesso. Mas às vezes é preciso – para terminar um artigo, elaborar apresentação para algum evento, terminar de ler um livro ou artigo referente à pesquisa. O et cetera é longo. Longuíssimo. E é preciso encontrar um tempo para um exercício físico, seja bicicleta, seja caminhada. Ao menos três vezes na semana.
Tenho dificuldade, invariavelmente, para começar um texto. A página – hoje a tela – olha pra mim. Eu olho pra ela. Esboço algo. O algo esboçado olha pra mim. Eu olho pra ele. E vou a mais um café. Apago tudo. Volto a escrever uma ou duas linhas. E leio. E penso. É uma labuta esse início, que se estende. Depois flui melhor.
Às vezes faço um esquema no papel. Uso lápis ou caneta. E tento seguir o mapa traçado. Mas minha mente é selvagem. Avessa à disciplina, mesmo tendo uma das formações em filosofia, tão exigente com o conceito. A mente é indomável. Vou conseguir, na linha dos budistas, certamente, um dia, meditar no início do dia. Minha esperança é deixar a mente, essa coisa que sai aos trancos de nós mesmos, mais dócil – com efeitos no corpo, na vida. Muita inquietação mental pode ser simultaneamente muito desgastante. Mas é como opera em mim essa coisa que não sabemos – saberemos? – o que é: a mente. A questão é antiga e estão no ringue muitas teses. Suspeito que todas já perderam a batalha da compreensão da natureza da mente. Assim como desconfio, com o passar do tempo, que as batalhas pelo saber, pela verdade, usando as vias da razão e da ciência, são inúteis. Porém, o ofício me leva a pensar ao mesmo tempo a contrapelo de mim mesmo, de modo que insisto em procurar o que sei que fugirá sempre, a verdade ou cacos do que ela seja. Aporias, arapucas da cognição, à caça de nossa soberba. Valeu a pena roubar o fogo dos deuses? O resultado está à vista. Instrumentalização geral, absoluta, da vida. Cada poro tem um ringtone de WhatsApp, um e-mail a clamar por resposta, um sinal. Sina e sinal dos tempos de aceleração máxima, o que influi nas subjetividades e no ato de escrever. Alguém ainda lê? A pergunta em neon vermelho, fundo azul, no horizonte, é essa. Em letras garrafais. Acho que fugi do tema. Mas fugir é encontrar, talvez a si mesmo, seja lá o que isso – si mesmo – for.
Para dizer em duas palavras: para escrever é preciso… escrever, mesmo que isso signifique não escrever quando mais se quer escrever. O ritual é achar que há um ritual e olhar a tela ou o papel, ensaiar, tentar. Algo sai, na hora ou bem, bem depois.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Começo pelo fim: já tentei, no período da tese, ter metas de leitura – tal texto em tantos dias. Não funcionou muito bem, ainda que tenha servido de quadro geral, de grande relógio. Hoje, no pós-doc, deixo a coisa mais solta para leituras. Isso quanto à leitura, sem a qual nenhuma escrita vem.
Quanto à escrita, às vezes me concentro num texto e fico horas, em vários dias, até terminá-lo, só nele – mas só após muita leitura sobre o tema. Fico períodos só lendo, sem escrever, exceto coisas técnicas, curtas, do trabalho jurídico, que não se referem a pesquisa. Leio bem mais do que escrevo. Em uma palavra: em geral, escrevo em períodos concentrados e não tenho meta de escrita diária.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Para o mestrado foi assim: li muitas coisas e fichei manualmente. Tenho muitas e muitas fichas desse período. Depois dá uma preguiça estranha de revisitar as fichas, parece que passo a querer distância, o que é paradoxal, pois o fichamento foi feito para facilitar.
Para o doutorado passei a fazer fichas no computador, mas imprimia e ainda as mantinha físicas. Mas ao fim, só consultei via computador para escrever, exceto as feitas manualmente, do período do mestrado.
Agora no pós-doc leio e depois ficho no computador, num texto corrido separado pelas próprias referências iniciais (nome do autor, título do artigo ou livro, etc., depois considerações minhas e/ou citações do texto, com passagens-chave).
Depois do paciencioso e difícil trabalho de fichamento de muitos textos, passei a escrever a tese. O mesmo ocorreu com o mestrado. Já tinha bastante material acumulado, de modo que me colocava um tema e ia escrevendo e puxando pela memória e pelo computador as referências a serem citadas, as páginas, num vai e vem de escrita e consulta. No mestrado fazia o mesmo, porém com as fichas manuais. Sempre daquele modo concentrado de escrita quanto a um capítulo ou item de capítulo.
Agora no pós-doc resolvi mudar, um pouco, o método. Continuo a ler muito, mas os fichamentos de cada livro ou artigo estão menos carregados, mais fluidos. Tenho feito o fichamento corrido, mas menos minucioso que os que fazia no mestrado e no doutorado.
Algo curioso é que sempre tenho a paranoia de que vou perder tudo, os livros que baixei ou os fichamentos, de modo que mantenho um arquivo dos principais livros no dropbox, e os fichamentos, por ocuparem menos espaço, envio por e-mail a mim mesmo e arquivo, além de manter uma cópia disso no dropbox também. E, cereja no bolo da paranoia, tudo isso ainda está arquivado num drive externo.
Certa vez vi uma astrofísica dizer, em documentário sobre a internet e sua fragilidade, que uma tempestade solar de magnitude não tão grande, no início ou meados do século XX, não me lembro ao certo, queimou vários equipamentos da época, como telégrafos, etc. E arrematou dizendo que uma dessas tempestades solares, daquela magnitude, em nosso tempo, reduziria nossas comunicações a pó. Assim, o que eu achava que era paranoia se revelou intuição correta. O que é o virtual? Como disse, acho, o Vilém Flusser, ao tocar o teclado do computador, que operações ocorrem até que a letra apareça na tela? Algo bem diferente da máquina de escrever mecânica, sob controle, acontece aí. E não sabemos o que é. Aqui o controle é o da máquina virtual. Uma alienação de proporções bem significativas a do escritor escravo do editor de texto e dos mistérios do fluir dos softwares, que comandam nossas vidas e cujos percursos só os criadores entendem e conhecem. Nunca foi tão profunda a frase do Bento Prado segundo a qual escrever e publicar são atos de alienação – no sentido preciso de sair de si. Com efeito, o que alguém faz com o que escrevemos? Como será usado o texto, a que fim? Lembremos o que a irmã de Nietzsche fez com os textos do grande filósofo. Até a história consertar tudo, o estrago estava feito. O além-do-homem, conceito preciso, virou super-homem, conceito deformado. Daí a Hitler foi um passo. De fato, o máximo da alienação é a escrita e a publicação.
Pois bem: somemos essa tese de Bento Prado à de Flusser. O que temos? Uma espécie de alienação da alienação, uma alienação potenciada, ao quadrado, ao cubo, talvez à décima potência.
Volto ao ponto das várias cópias. Há alto grau de auto engano nessa estratégia. Se uma tempestade solar queimar nosso sistema de internet, o que sobra do mundo? Pra onde iriam os aviões que estivessem voando no momento do colapso? E o sistema bancário, o que sobraria dele? E a defesa dos Estados, como ficaria? Quanto ao sistema bancário, exceto pelos meus precários caraminguás lá depositados, seu fim seria o nirvana na terra.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Tento encarar isso como da estrutura da coisa. Guilhotinas que nos entravam um pouco. Por outro lado, a escrita é uma forma de libertação. Lido mal com as travas, com a procrastinação, mas simultaneamente encaro como parte do processo. Desenvolvo isso a seguir.
Estamos aqui no fio do paradoxo. É preciso ter um espírito um pouco macunaímico com prazos e medos de não corresponder às expectativas. Para usar uma expressão do Nuno Ramos – artista que cria e escreve a marteladas, ao modo nietzschiano -, um “fooquedeu” (foi o que deu). Do contrário, o peso da burocratização – métodos e meios com vistas a fins – mata a criatividade. Por isso Macunaíma, esse lado solto que ele representa, criativo, do romper com regras, da preguiça produtiva, é fundante.
Quanto aos projetos longos, como o de uma tese de doutorado, é preciso dosar o espírito de Apolo com o de Dioniso. É preciso a Suécia de mãos dadas com Macunaíma. Nada mais dionisíaco que Macunaíma. Ele e sua ética-criativa, rompedora, pode bem ser muito ruim a um país, a uma sociedade – como disse Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, em terra de Barão, difícil um acordo coletivo durável -, mas é preciso ver o que há de bom nesse ruim, sem esquecer, simultaneamente, da tese atualíssima, resumida na frase acima, do Sérgio Buarque de Holanda. Pois apenas o romper adequado da regra pode fazer o novo surgir. Ou, até, um operar novo com as regras que há. Tudo isso é Dioniso, é Macunaíma, é criatividade. Mas o excesso do remédio mata o paciente. Eis a tese grega, platônica, do phármakon, do veneno-remédio. A diferença entre um e outro está na dose. Pode-se matar um bom projeto com muita “porra-louquice”, com excesso de ódio à regra. E também o contrário pode ocorrer. Excesso de regras, prazos, medos, isso paralisa.
Em suma, para projetos curtos, muito Dioniso e Macunaíma; pouca burocracia. Para projetos longos, meio a meio. Afinal, a conjuntura implica o tipo de phármakon a ser empregado. Inocular Dioniso em Apolo, inocular Macunaíma nas regras e, igualmente, vice-versa. Um equilíbrio de castelo de cartas, bem apropriado à escrita, pode daí sair.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Para publicação, seja de artigo de revista, seja para livros e capítulos de livros, reviso uma vez na tela e, depois, imprimo e faço mais uma revisão. Novamente corrijo tudo na tela, a partir do texto impresso. Em geral é assim.
Textos mais longos, como o da tese, passaram por várias correções na tela e ao menos duas em vias impressas. Para o livro (Trama afetiva da política: uma leitura da filosofia de Espinosa, ed. PRISMAS) – versão um pouco modificada da tese -, foram várias as idas e vindas. E alguns errinhos sempre restam ao final… Já me conformei.
Costumo mostrar a poucas pessoas. Sempre acho que elas estão cheias de coisas a fazer, de modo que fico com receio de incomodar. Minha esposa, Gabriela, é ótima leitora e me traz ao chão muitas vezes. Como ela é da sociologia, me retira os ímpetos do filosofês, faz a coisa ficar palatável a quem não tem formação em filosofia, o que faz que o texto, após as dicas dela, possa ser lido por mais gente. Ela é minha revisora mais frequente. Também tenho um amigo de Sampa, o Arilson Borges, que é leitor dos meus textos e sempre me deu dicas valiosas, conceituais e de estilo. A eles sou muito grato.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Faço um mapa à mão, uma espécie de caminho a ser percorrido, em geral, ainda que nem sempre. E, com esse esquema à frente, vou ao computador. O esquema feito à mão me ajuda a não me perder em caminhos que saem do tema.
Por outro lado, isso muda quando sou aluno, seja de um curso, seja de uma palestra. Para isso não uso o computador. A máquina nesse caso vira um entrave. Gosto de anotar tudo à mão. Fica ao final um esquema do que foi dito pelo palestrante ou professor de um curso.
Tem uma tese do Umberto Eco muito interessante. Vi isso em uma entrevista dele, se não me engano dada ao Aliás, caderno de cultura do Estadão. Há coisas que chegaram a um aperfeiçoamento técnico tal que não há como mudar para melhor. O exemplo dele é o da colher: como fazer uma colher melhor do que ela já é? Mudam-se os detalhes, mas o que há de colher na colher não muda. Digo isso para falar da caneta, ou do lápis, como instrumentos simplérrimos e que, para muitas coisas, são melhores que o computador, com suas mil intermediações (novamente Vilém Flusser). Para fazer mapas mentais no papel, nada melhor que caneta e lápis. O computador cria tantos entraves que a ideia vai embora no momento em que já teria que estar na tela. Para isso, a esferográfica – esse nome é ótimo, pois é literal – e o lápis são invenções insubstituíveis.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minha mente é um pouco selvagem, vai aos trancos associando coisas aparentemente não associáveis. Não sei se foi Hume ou Rousseau – ou ambos – que disse que a razão é um instinto. Sinto que as ideias me vêm assim, como resultado de um instinto em ação.
Um bom hábito, inspirado em uma tese do Renato Janine Ribeiro, de quem fui aluno na graduação em filosofia, é ler coisas, bastantes, fora das minhas áreas, que são o direito e a filosofia. Há um livro do Janine que se chama A universidade e a vida atual: Fellini não via filmes. Acho que essa é a ideia central, a saber, transitar por outras áreas faz que coisas novas venham para a nossa área específica. Isso é uma espécie de interdisciplinaridade cujo resultado é sempre frutífero, inovador, inusitado.
Para resumir, o hábito que tenho é o de ler assuntos de várias áreas, fora da específica de formação, o mais possível. E deixar a mente fluir entre teses e argumentos aparentemente incompatíveis. Do aparentemente incompatível pode nascer algo que não nasceria se não transitássemos por esses terrenos desconhecidos. Um exemplo de leitura fora de minha área específica e que, penso, azeita a criatividade, é sempre ter literatura por perto – seja prosa ou poesia. E um exemplo mais direto, de área conceitual próxima que inspira novas ideias: ler Milton Santos é ter acesso a uma filosofia da geografia e a conceitos postos de modo inusitado e claro. Ler Maurício Tragtenberg é transitar por novelos interdisciplinares de alta voltagem explicativa. E assim vai.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Penso que antes minha escrita era mais repetitiva, mais prolixa, e hoje procuro ser mais direto e claro.
Caso eu pudesse voltar à confecção da tese, procuraria fazer fichamentos menos minuciosos, que fossem direto à tese do artigo ou do livro lido. Perdi muito tempo anotando lateralidades, hoje vejo com mais clareza. Isso tornou o processo de pesquisa muito penoso.
Para a escrita, deixaria as notas de rodapé menos longas, com menos referências, isto é, apenas com as mais essenciais. Há notas de rodapé em minha tese que são uma tese dentro da tese, o que, hoje, não me agrada. Em suma, acho que atualmente tenho uma escrita mais clara. Uso o repertório teórico mais para me fazer entender e menos como erudição. Fiquei muito bem impressionado com a escrita direta de Fernand Braudel em um livro chamado O modelo italiano. Exemplo acabado de como se pode ser profundo sem ser prolixo. Gosto do jeito como escrevem a Laura de Mello e Souza, da história, o Luís César Oliva, da filosofia. Num outro tipo de escrita, que também admiro, há o Antonio Valverde, da filosofia, bem como o Leon Kossovitch.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho um pé no barco da escrita e leitura. E outro no barco do abandono disso tudo, de uma busca de carpe diem, locus amoenus, inutilia truncat. Esse horizonte acalma a alma. Afinal, escrever pra quê, num tempo de leitura entrecortada pelos chamados do mundo virtual, dividido entre tecnologias sombrias? Ilusão, penso, essa de mais tempo livre que as ideologias de nosso tempo apregoam. O tempo está todo virtualmente – facebookwhatsAppmente – tomado. O que sobra para o ato paciencioso da escrita e da leitura? Entretanto, continuo no projeto de escrita e leitura, não obstante este mundo. A princípio, sou quase um esquizofrênico sobre esse ponto. Pensando bem, por outro lado, o barco do locus amoenus, do carpe diem e do inutilia truncat é adequado para o tempo da escrita e da leitura, e não com ele incompatível. Mas quando penso no segundo barco, quero fugir da escrita e da leitura… Os desejos humanos, como nos lembra Espinosa, são assim mesmo: arrastam-nos para um lado e outro ao mesmo tempo, de modo que não sabemos para onde queremos ir.
Dado o quadro do barco dois, o projeto seria o de um visitar constante de cachoeiras, todas que ainda não conheço e que estão ao lado – as de Carrancas, de Luminárias, isso pra ficar aqui no sul de Minas, onde moro. Mas sei que o tédio venceria. E é preciso um desprendimento, um desligar que não é tão banal, não é tão simples. Em suma sobre este ponto: simplificar é difícil. Dificultar é simples, é o que mais sabemos fazer.
Ao outro momento da pergunta: um livro com tais características, bem, seria o paradoxo da beleza extrema de um poema em prosa cujo conteúdo fosse simultaneamente o absoluto conceitual. Uma espécie de materialização, de resposta ao projeto presente no poema de Drummond, A máquina do mundo (E como eu palmilhasse vagamente uma estrada de Minas…). Melhor dizendo: a revelação dos segredos mais ínfimos (como funciona o átomo, o que ele é, como é a usina micro das células das plantas, etc.) e os mais amplos (de onde viemos e pra onde vamos, o que é o mundo, quem ou o quê o fez etc.) em um livro em prosa poética e, ao mesmo tempo, conceitual. Sei que esse livro não existe, não existirá, é o impossível. Jorge Luis Borges talvez tenha chegado perto com seus delírios ficcionais tão conceituais e tão simultaneamente verdadeiros. Mas algum slogan disse, se minha memória não me prega uma peça, que o cinema – e isso vale para a prosa, para a poesia – é a verdade da imaginação dos homens. É por aí, no trilho da aporia, que esse livro impossível seguiria. Esse o livro que eu gostaria de ler. E ele não existe, nem existirá. Mas fica como utopia, como horizonte que se desloca e nos faz andar. Rumo ao abismo? Talvez no abismo mesmo. Afinal, a terra é uma bolinha de lava – tem mais lava que terra e água, afinal -, com uma crosta finíssima, que flutua no nada. E a galáxia mais próxima da Via Láctea está a 163.000 anos-luz. Se lembrarmos que a velocidade da luz, a mais alta que há, é de 300.000 quilômetros por segundo, bem, aí fica fácil ver como tudo é um grande mistério. Se para chegar ao lado teríamos que viajar – se isso fosse possível – a 300.000 quilômetros por segundo, por 163.000 anos…, sendo que nossa civilização tem pouco mais de 2.500 anos… Caminhamos no abismo, no mistério, e isso é o que há, paradoxalmente, de mais claro e distinto.