Luiz Antonio Caldas Filho é escritor, autor de “Zé Muquém Pegou o Trem” (2017).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Em primeiro lugar, gostaria de te agradecer pela oportunidade de trocar ideias nesse projeto tão desinteressado e tão interessante.
Bom, eu meio que vivo em função do despertador do celular, sabe? Até para sonecas no fim de semana costumo colocar um horário para acordar. Durante a semana, sou servidor público. Considerando meu horário fixo, por regra, preciso ter uma rotina. É o jeito. Depois do despertador, tomo café, me arrumo e vou pro trabalho. Só volto a ficar livre no final da tarde.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu acho que aquela hora pós-soneca do almoço (veja, eu não tenho essa hora durante a semana) é onde eu vejo meu corpo mais disposto e desperto para trabalhar em textos, mas dessa hora em diante, também, a sensação é a mesma. Tarde-noite para mim estão dentro do que estou habituado a produzir.
Não tenho um ritual, pelo menos não que eu perceba. Claro, o ambiente precisa ter silêncio, isolado, não uso música. Às vezes quando a ideia é boa a gente consegue colocar pra fora mesmo num ambiente barulhento, porque você consegue se focar naquilo. É um momento muito privilegiado pra mim, porque de um modo geral me distraio com qualquer besteira. Mas, quando isso acontece, é só no momento da verborragia, da materialização. Edição e revisão comigo só funcionam na quietude, até porque já é um hábito ler os textos em “voz alta”, e não dá pra ficar lendo isso e qualquer lugar.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A meta atual é conseguir estabelecer uma meta. Sério. Gostaria muito de poder estipular uma meta diária, mas meu cérebro e minha rotina ainda não se adaptaram a isso. O que me impulsiona geralmente é quando há um prazo externo, um período de edital, por exemplo, ou um deadline para uma atividade do coletivo do qual faço parte, o Pernoite. As ideias, essas pipocam a todo o tempo e é preciso anotá-las. Fato é que eu nunca sei se aquela nota no celular vai vingar num texto, às vezes eu nem entendo o que quis escrever na hora, às vezes a empolgação pela fábula se esvai. Mas se a ideia é boa mesmo, cedo ou tarde ela vinga.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Começar não é difícil. Eu geralmente escrevo o cerne do meu texto na nota e penso naquilo por alguns minutos até sair um período inicial ou um esqueleto, a depender do texto. Se já deixei a nota com um início de texto, melhor ainda. Re-começar, porém, exige um pouco mais de esforço. É que às vezes eu já sei que fim aquela história vai ter, e o cérebro parece precisar de mais energia para se motivar a desenvolver uma história que ele já conhece. Entende?
A pesquisa é geralmente concomitante à composição, e às vezes é um elemento de entrave. Diante de um entrave, faço um esforço para ver se as informações que estou buscando na pesquisa são determinantes, importantes ou superficiais. Se são determinantes, geralmente não consigo prosseguir na história, posso antecipar um parágrafo de acordo com o esqueleto, mas aquela pesquisa fica martelando até que eu saiba a resposta. Se a informação é “apenas” importante, continuo o texto com o que tenho e deixo aquilo pendente para complemento posterior. Se eu entender como algo superficial, é sinal de que nem deveria estar no texto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Os travamentos eu comparo a uma situação em que você precisa colocar um cinto de segurança às pressas: quando você trava, o primeiro impulso é puxar o cinto com toda força, e ele trava, então sua cabeça puxa o cinto com mais força, e ele trava de novo; você racionaliza que precisa puxar com mais calma, mas ele trava novamente porque você ainda está acelerado. Quando eu me dou conta de que estou travado, eu realmente preciso sair daquela atividade, me desligo fácil, por que sei que não vai sair nada, e forçar um texto que não quer sair pode ser tão desconfortável quanto prisão de ventre, e o resultado é o mesmo, se é que me entende.
Procrastinação é o mal desta e das próximas décadas. Podem dizer que é inveja, mas eu fico duvidando se grandes nomes da literatura clássica mundial conseguiriam escrever suas obras em tempos de whatsapp e redes sociais. Também falo isso de maneira muito hermética, mas fico sentindo como se a minha geração fosse das que mais sofreram mudanças bruscas na organização do tempo em função da tecnologia. Explico: Tive uma educação básica nos moldes clássicos, quando aulas de informática eram uma vez na semana para basicamente digitar textos e aprender programinhas básicos do pacote office. Quando entrei na faculdade, era comum o acesso a chats, bate-papos, mas no meu caso era só aos fins de semana. Quando passei efetivamente a trabalhar como regra, veio o boom dos smartphones, a revolução na comunicação social que tornou o “offline” uma exceção. Penso que a geração que já nasça num contexto de capilaridade tecnológica talvez consiga lidar com essa dependência de maneira mais orgânica, até mesmo conciliando com mecanismos de gerenciamento de tempo que permitam afastar o verdadeiro vício em tecnologia a que estamos(estou) submetidos.
Não tenho tanto esse medo de não corresponder às expectativas. Quando escrevo, busco satisfazer a mim mesmo, em primeiro lugar. Claro, quando você gosta de uma versão do seu texto, cria-se dentro de nós o desejo de que ele também toque a outras pessoas, que elas entendam o que tentamos passar. Porém, a possibilidade de elas não serem tocadas não me causa medo, às vezes apenas a frustração, que também deve ser digerida. Nem toda incompreensão ou desgosto de outros pelo nosso texto precisa resultar numa alteração ou extinção dele. Às vezes o desejo de que o texto exista do jeito que está é maior que qualquer coisa, e não devemos sofrer por isso.
Atualmente estou focando na produção de contos e de fato já mexo num projeto de livro há pelo menos um ano. Já estive ansioso, mas hoje entendo que é um processo natural de maturação, que não necessariamente deságua na procrastinação. Quanto mais você achar que o livro tem que, obrigatoriamente, sair até tal data, pior você vai ficar, assim como seus textos. Eu entendo que os prazos têm que ser usados a nosso favor, como um estímulo para concluir textos e obras que estejam de fato maduras, não como a última chance da vida para publicar uma obra.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso inúmeras vezes. Cada vez que releio, me permito mudar alguma coisa que achar necessária. Não sou inseguro a ponto de nunca finalizar um texto, não. Porém, enquanto ele está em meu domínio, e enquanto não o submeto a uma análise de leitores críticos, como minha esposa, como faço no Pernoite, reviso e altero o texto até o momento em que o primeiro leitor(eu) entende que existe uma coesão que permita que a gente dê a cara a tapa(s). Acredito que ouvir a percepção de outros sobre o nosso texto é essencial para que ampliemos nossa própria percepção. Não é que tenhamos sempre que concordar com o que falam, mas é como cozinhar e ver se gostam do seu tempero tanto quanto você gostou. Às vezes uma sugestão faz com que a receita fique ainda mais saborosa, né?
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu sou uma pessoa que meio que coleciona agendas velhas, em branco, pensando na possibilidade de usá-las para escrever. Apesar disso, a dependência tecnológica me faz usar o computador e o celular em 99% das vezes, no que diz respeito a escrever, criar. Quanto à leitura, o papel costumava ter minha preferência, até que eu experimentei um e-reader e agora a competição está acirrada. Não há como negar a facilidade que é você anotar uma ideia, um parágrafo numa nota do celular, que depois você pode já acessar pelo notebook sem nenhum problema. Gosto da experiência de oficinas de escrita e reuniões do Pernoite, que naturalmente me fazem usar o papel e caneta, mas isso é exceção.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
É uma pergunta interessante. Gostaria de saber de onde elas vêm, mas principalmente para onde elas vão quando me abandonam(risos). Hoje entendo que os insights surgem quando a gente menos espera, e por isso a necessidade de anotar tudo, e não falo apenas aquilo que seja o mote do texto, mas coisas que poderão torná-lo mais rico. Por exemplo, a gente aprende que não se deve dizer que “o personagem está com preguiça”, que nós devemos mostrar isso de outras formas. Essas “outras formas” são infinitas, mas às vezes você não consegue pinçar uma delas sequer, e ninguém vai te ensinar isso; anotar ajuda nesse processo de recuperar ideias, mesmo as secundárias, que poderão dar mais camadas ao nosso texto.
Eu era meio pilhado com isso de estimular a criatividade, usava sites que sorteavam palavras aleatórias, participava de desafios de escrita, ainda hoje gosto de participar, mas mudei o foco para escrever mais sobre aquilo que me incomoda, que me perturba individual ou socialmente, deixando que a criatividade seja guiada mais pelo “como” falar sobre esses fantasmas, do que por um exercício vazio. Podemos falar muito, e acabar não dizendo nada de relevante. É preciso ter algo a dizer, em primeiro lugar. Saber o que é que se quer dizer. Daí fazer nascer o texto.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu tenho a compreensão de que a mudança, seja ela uma evolução ou involução, é inevitável. Porém, quando a gente para e compara os textos de um tempo atrás, por mais noção que você tenha das mudanças, é incrível como isso passa desapercebido. E não estou falando de pequenas mudanças, mas de grandes reviravoltas não só na forma de escrever, como de ler.
Quando passamos a ler um texto literário de forma crítica, nos é dito é um caminho sem volta, é algo que não se desaprende. Isso é até perigoso, podemos perder a capacidade de saborear um texto que talvez não tenha a mais revolucionária das narrativas, mas que cuja fábula poderia nos tocar, estabelecer uma identificação. Isso vai ao encontro do que falei, de que o texto deve ter algo a dizer, a sua força vem daí. E daí o desafio que é usar de uma linguagem que dê voz a essa força, uma linguagem que faça a gente esquecer que aquilo é uma ficção, que aquilo é um texto.
O que eu diria a mim se pudesse voltar era “Leia mais”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Muito me pego pensando às vezes em escrever um romance, acho que todo escritor reflete sobre a magia que envolve esse gênero, e no meu caso a ideia me surge mais como um desafio, serei capaz de escrever um romance? Não qualquer romance, mas um bom romance? E não que falte ideias, mas enquanto a motivação principal for essa, a de desafio, não vai rolar. Volto sempre a esse raciocínio, de que se eu não tenho algo a dizer cuja melhor forma de dizer seja um romance, eu não escreverei, nem romance, nem nada.
O livro que eu gostaria de ler e ainda não existe: gosto de pensar que, se eu gostaria de ler, ele já existe, lá na Biblioteca de Babel de Borges, talvez, e talvez caiba a mim encontrá-lo, ou (re)escrevê-lo.