Luisa Benevides é escritora, psicóloga e mãe do Tito.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Antes de responder às perguntas, é preciso dizer que há pouco mais de dois anos me tornei mãe, fato que alterou por completo tudo em minha vida, inclusive meu processo de escrita. Meu jeito atual de escrever ainda está se moldando a essa nova conjuntura e, por isso, as respostas a esta entrevista podem ser lidas enquanto uma construção ainda incipiente de um novo modo de trabalho. Desde que me tornei mãe, as rotinas matinais são bastante imprevisíveis, pois tudo depende da hora em que meu filho acorda e, basicamente, se consigo ou não acordar antes dele. Antes da maternidade, minha rotina matinal envolvia acordar, tomar café enquanto me atualizava com as notícias, ler poemas para ajudar na inspiração e, salvo algumas exceções, dedicar o restante da manhã à escrita, hora em que sempre rendi mais. Ah, bons e calmos tempos! Já agora, fico feliz se conseguir acordar antes do meu filho, passar um café e ler algumas páginas do livro que eu estiver lendo. Como sinto que as coisas estão finalmente ficando um pouco mais tranquilas, tenho buscado também rabiscar algumas páginas do meu diário, cultivando uma escrita mais inconsciente e que me ajude com questões pessoais. Embora essa prática não tenha qualquer pretensão literária, acredito ser importante exercitar a escrita assim como exercitamos os músculos; caso contrário, as palavras vão atrofiando. No momento, tenho conseguido manter esse hábito em média uma vez por semana.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sempre rendi melhor de manhã. Como disse, antes de ser mãe, gostava de ler poemas antes de escrever, pois sinto que a poesia me abre para uma escrita mais próxima ao inconsciente, com mais ritmo e menos amarras. Uma escrita mais solta. Naquela época, consegui arranjar minha rotina de modo a ter quase todas as manhãs livres para a escrita: primeiro, umaquecimento com a leitura de poemas, depois, o momento de escrita propriamente dito. Porém, mesmo diante de tal privilégio, vivi um longo período de bloqueio e dificuldade em escrever. Hoje vejo que estava tudo muito arrumadinho e, para escrever, pelo menos para mim, preciso de uma certa bagunça, de uma certa dose de caos que, como já dizia Nietzsche, faz nascer as estrelas. Desde que me tornei mãe, já não tenho mais rituais ou horários reservados para escrever. Escrevo quando dá: no ônibus, na rua, na pracinha, de madrugada, amamentando e por aí vai. Por incrível que pareça, por mais adversas que sejam as condições atuais, sinto-me muito mais inspirada e desbloqueada na escrita. Acho que a falta de obrigações ou expectativas tem feito soltar e saltar as palavras.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Passei um bom tempo da minha vida enquanto escritora acreditando que o “certo” era escrever todos os dias. Nunca estabeleci metas de escrita diária, porém buscava escrever de segunda a sexta, nem que fosse ao menos um parágrafo. Foi um período bem intenso na minha relação com a escrita, porém hoje vejo que, talvez pelo meu jeito de ser já um tanto obsessivo, a obrigação de escrever diariamente possa ter contribuído para eu me desencontrar enquanto escritora. O “tenho que escrever” me enrigecia, me cegava para as inspirações que o dia poderia me trazer. Hoje, devido à minha rotina enquanto mãe, não consigo mais escrever todos os dias, o que fez bem para a minha relação com a escrita. Ela saiu do campo da obrigação e entrou no campo da inspiração. Li, uma vez, uma provocação do Murakami que era mais ou menos assim: “o que você escreveria se não precisasse escrever?”. É uma pergunta simples, mas que tem me guiado nesse meu novo processo de escrita. Hoje, procuro estar atenta às inspirações que me chegam diariamente, muitas delas provocadas pelo meu filho, e pescá-las na hora em que surgem. Atualmente, tenho escrito um ou dois poemas por semana, mas, em épocas mais intensas, cheguei a produzir uns dois poemas por dia. Em suma, ao invés de me forçar a escrever diariamente, procuro ficar atenta às ondas de inspiração que estão no mundo, ser paciente quando elas demoram a chegar e corajosa para surfá-las quando elas finalmente vêm.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como meu processo de escrita mudou radicalmente desde a maternidade, vou me concentrar aqui no meu processo mais recente, que culminou com a publicação do livro “azul de um minuto: poemas entre mãe e filho”, lançado em 2019. Como disse anteriormente, minha relação com a escrita há muito estava no terreno infértil da obrigação; porém, desde que me tornei mãe, me vi finalmente na desobrigação de escrever, o que, não vou mentir, me deu um certo alívio. Eu precisava tomar banho, me alimentar e manter um ser vivo; todo o resto era luxo. E escrever era o luxo dos luxos. Nesse cenário, qual não foi a minha surpresa quando me dei conta de que, apesar da minha despretensão (ou talvez, justamente, por conta dela), eu estava sim escrevendo! Eu escrevia “uma coisinha” quando levava meu filho para passear de carrinho, ele dormia e eu me sentava no banco da rua. Escrevia quando íamos para a pracinha, o colocava deitado no tapete e ganhava uns minutos antes que ele me demandasse. Escrevia de madrugada, quando perdíamos o sono, ou enquanto eu o amamentava. Foi um processo completamente não planejado e um tanto inconsciente: quando me dei conta, já tinha várias “coisinhas” escritas em notas do celular, em cadernos, em margens de livro, em agendas. Foi um processo delicioso, em que consegui mergulhar com tudo numa onda bem potente de escrita e, por isso, não foi nada difícil fazer a compilação dos poemas. Pelo contrário, eu ansiava pelo momento em que meu filho estivesse na creche para que, enfim, eu pudesse me dedicar a esse trabalho. Quando cheguei a por volta de oitenta poemas já escritos, senti o desejo de passá-los a limpo num documento no computador e foi aí que o trabalho de reescrita e de revisão deu início: fui vendo onde eu me repetia, identificando cacoetes de escrita, revisando, cortando. Após publicar o livro, assisti na FLIP um pedacinho de uma palestra com a escritora Sheila Heti e me identifiquei bastante com seu processo de escrita: durante um período de tempo, ela vai escrevendo aleatoriamente e de modo mais ou menos inconsciente. Após acumular um número considerável de escritos, ela os relê e procura identificar uma coesão entre eles, um fio condutor, e é só então que ela chega ao assunto que vai tratar. É o assunto que chega até ela, e não o contrário. Seu trabalho consiste em, através da escrita, estar atenta a ele. Posso dizer que, desde o azul de um minuto, tenho procurado escrever assim.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Se há, para mim, uma coisa certa quanto às dificuldades com a escrita, é que não existe um modo correto ou único de lidar com elas. As formas de lidar com as travas mudam de pessoa para pessoa e mudam também para uma mesma pessoa ao longo do tempo. Atualmente, tenho procurado cada vez mais retirar o “Eu” da jogada: aquele eu cheio de vaidades e obrigações, que tem que escrever, que tem que publicar, que tem que ser reconhecida. Cada vez mais vejo que a escrita não passa por aí. Ela passa por um terreno inconsciente e não-egóico, cabendo a/o escritor/a estar atento/a aos fluxos de escrita e pescá-los a tempo. Os fluxos, assim como as ondas, vêm de tempos em tempos, sendo a procrastinação e a trava os intervalos necessários entre uma e outra onda. Ao invés de procurar ultrapassá-las, busco vivê-las, entendendo que as dificuldades, se bem elaboradas, contribuirão para uma escrita mais sensível e consistente no futuro. Quando me pego com medo de não corresponder às expectativas, com ansiedades de não dar conta, ou culpada por não estar produzindo, procuro pensar que a escrita não é minha, e sim do mundo. Eu, enquanto escritora, não importa; se eu vou escrever ou não, não interessa; o que importa é o fluxo da escrita, um fluxo que não é meu e que, portanto, não há nada a se esperar de mim. Prefiro escrever um único livro ao longo de toda a minha vida, mas que seja um livro advindo de um potente e sincero fluxo de escrita, do que escrever dezenas de livro somente para corresponder a expectativas ou a vaidades. Esta nem sempre é um postura fácil ou clara de se adotar, e eu me pego diversas vezes em armadilhas narcisistas e culpabilizantes. Porém, a cada vez que me vejo afundar numa dessas armadilhas, procuro dar um passo atrás e relembrar para mim mesma estas palavras.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Que pergunta difícil! O que posso dizer, com toda certeza, é que ao longo do processo de revisão eu minto para mim mesma muitas e muitas vezes. Digo para mim que essa será a última revisão, mas aí, quando tenho uma brecha, lá estou eu espiando e revisando o texto de novo. E de novo e de novo. Reviso até cansar, até enjoar dos meus textos. Existe uma fase inicial, de enamoramento, que acredito ser fundamental para o processo de escrita. É um momento delicioso em que o/a escritor/a e seu texto se tornam um só. Rosa Montero, em seu livro “A louca da casa”, fala dessa paixão de uma forma muito bonita. Quando me apaixono pelo que estou escrevendo, me pego pensando no texto a todo momento, a procura de brechas no meu dia para escrever mais um pouco ou para revisar o que já escrevi. Já cheguei ao ponto de gravar meus textos em áudios só para escutá-los no fone quando estivesse na rua, reparando no ritmo da escrita e revisando uma palavra aqui e outra ali que destoasse da musicalidade como um todo. Quando finalmente canso do texto, deixo-o na gaveta por um tempo, procuro esquecer dele um pouco e fazer outras coisas que não seja escrever. Depois da paixão, penso ser necessário um distanciamento temporário, para que, num terceiro momento, a gente possa voltar ao texto de modo mais imparcial, sendo capaz de lê-lo da forma mais próxima possível de um/a leitor/a qualquer. É nesse terceiro momento que gosto de dividir com alguém o que escrevi, pois só então as palavras perdem seu caráter visceral e deintimidade absoluta, podendo engatinhar seus primeiros passos em direção ao mundo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Atualmente, eu escrevo da forma que estiver mais acessível no momento. Quando uma ideia, frase ou poema surge, pego o que estiver ao meu alcance: celular, caderno, agenda, diário, computador. O importante é pescar as palavras, do jeito que for possível. Ao mesmo tempo, porém, percebo que o fato de escrever à mão ou no computador influencia o conteúdo da escrita. Quando posso escrever à mão e disponho de um tempo considerável para isso, sinto que a escrita se aproxima mais de um fluxo inconsciente; as palavras, sem que eu pense muito a respeito, vão saindo da caneta por conta própria e ganhando um ritmo que é delas. A música do texto vem de forma espontânea quando consigo mergulhar nesse fluxo. Escrevo coisas que eu não sabia que sabia e muitas perguntas e aflições pessoais se dissolvem nesse processo. Às vezes é uma escrita pessoal com cunho de diário, às vezes é uma escrita literária; de um jeito ou de outro, escrever a mão me faz mergulhar num processo intenso que me faz muito bem. Já quando escrevo no celular, normalmente estou fora de casa e a escrita é mais como um tiro: para não perder as palavras, tenho que passá-las pra tela o mais rápido possível, antes que meu ponto de ônibus chegue, antes que meu filho chegue, antes que alguém volte a falar. Os poemas do “azul de um minuto” foram em sua maioria escritos nesse estilo “não tenho tempo a perder” e sinto que consegui uma objetividade bem interessante nesse processo (eu, que sempre fui tão prolixa…). Quanto ao momento de revisão, gosto de alternar entre computador e a mão: a praticidade de cortar e colar num documento de word é indiscutível, porém gosto também de imprimir os textos e revisar a lápis em cima das palavras impressas. Resumindo, embora as palavras possam ser as mesmas, é impressionante como nosso olhar muda, nossas inspirações e insights se transformam, quer elas estejam numa tela ou impressas no papel!
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Acredito que as ideias vêm de acordo com a minha capacidade de me conectar com o mundo. Elas vêm do mundo. Tem fases em que estou mais ensimesmada com minhas próprias neuroses; nesses momentos, a tendência é que eu escreva menos. Em outras fases, consigo me esquecer, entrar num fluxo de vida e me conectar com o que acontece ao redor. Então, escrevo mais. Entro em sintonia com as ideias do mundo, consigo pescar uma ou duas; as palavras entram em harmonia com meus dedos e passam para o papel de um modo mais ou menos natural. Falando assim parece fácil, mas a verdade é que entrar nesse fluxo é coisa raríssima, pelo menos para mim. Consegui experimentar essa potência quando tive um filho, pois a maternidade, pelo menos no início, é um dos momentos em que mais nos vemos obrigadas a sairmos de nós mesmas e a nos conectarmos com o outro. Outra forma muito potente de cultivar essa conexão com o mundo é através da leitura. Ela também faz com que a gente largue nossas neuroses e entre em comunhão com as personagens, com ideias e afetos que não são só nossos, mas sobretudo do mundo. Graças à leitura, as palavras que escuto em meu cotidiano se convertem mais facilmente em imagens poéticas, assim como as imagens do meu dia-a-dia se transformam em palavras de um modo mais fluido e espontâneo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou tudo! Comecei a escrever muito nova, no começo da adolescência, e passei muitos anos numa relação de culpa e obrigação com a escrita: ou, por uma suposta falta de tempo, eu não escrevia e me sentia culpada, ou arranjava tempo e me sentia culpada mesmo assim, pois deixava de estudar ou de trabalhar para escrever e as palavras não saíam à altura das abdicações que eu fazia. Passei muito tempo também tentando corresponder a expectativas que não eram minhas, me perdendo entre encomendas de textos, projetos dos outros, deveres de casa das oficinas de escrita que frequentava etc. As palavras tinham um peso enorme. Hoje, tenho buscado me conectar com meu desejo, criar os meus projetos, sentir o fluxo de escrita que às vezes vem, às vezes vai. Se escrever, maravilha! Se não, está tudo bem. Tenho procurado dar leveza às palavras, pois é só assim que elas deslizam, fluem, acontecem. O mais interessante nesse processo é que, ao alterar minha relação com a escrita, tanto a forma quanto o conteúdo do que escrevo se transformaram radicalmente também. Hoje vejo que, quando as palavras se encontram no terreno da obrigação e existe um “Eu” escritor responsável por elas, elas ficam vaidosas, cheias de adjetivos, de rodeios e raciocínios complexos. Não adianta, o/a escritor/a quer sempre escrever bonito e, em meio às suas vaidades, ele se perde e perde o/a leitor/a. A escrita e a leitura travam. Mas quando a gente tenta sair dessa lógica e pescar um fluxo de escrita qualquer, sem nenhuma pretensão ou obrigação, as palavras vêm de outro modo, mais diretas e francas. Elas não querem fazer bonito, apenas passar, sem atrito, do mundo para o/a escritor/a, do/a escritor/a para o papel, do papel para o/a leitor/a. A literatura vira uma questão de passagem. Os adjetivos diminuem, os rodeios diminuem. Acho bem mais gostoso escrever e ler assim.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Após escrever os poemas do “azul de um minuto”, me vi diante da seguinte questão: como fazer para que as pessoas lessem o que eu escrevi? Naquela época, eu ainda não me via enviando meus textos, escritos no momento tão íntimo do puerpério, para uma editora qualquer: me soava frio, quase uma traição. Sentia desde o início que a sua publicação seria outra, mais caseira, mais lenta, mais artesanal. À gestação do meu filho se seguiu a gestação dos poemas; à gestação dos poemas se seguiria a gestação artesanal do livro. Era o que tinha que ser feito, e assim foi. A família, que era a minha rede de apoio nos cuidados com meu filho, virou também a rede de apoio na confecção do livro, me ajudando a costurar os exemplares, a pesquisar sobre serigrafia, diagramação, design. Sobre os livros ilustrados, diz-se que as ilustrações e a diagramação devem conversar com os textos em si; por que, quando se trata de um livro somente com textos, quase não pensamos na conversa entre a apresentação do livro e o seu conteúdo? Por que os livros para adultos em geral são tão caretas, sérios e padronizados? Desde criança, sou apaixonada por papel, canetas, cadernos costurados, carimbos, adesivos. Por que esse esmero artesanal, que remonta à infância, não pode estar presente nos livros ditos para adultos? Desde que publiquei artesanalmente o “azul de um minuto”, tenho tido um retorno muito acima do que esperava, e em grande parte acredito que isso se deve à costura manual dos exemplares, à serigrafia da capa, ao carimbo, ao adesivo. Gostaria de ler, tocar, cheirar mais livros assim. Se os projetos para meus próximos livros possuem uma pretensão, é somente esta: que o conteúdo da escrita não se desvincule da estética do livro, e que a coisa artesanal do “um a um” esteja sempre presente.