Luis Maffei é poeta, escritor e professor de Literatura Portuguesa da UFF.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia tem de começar com a leitura. Logo após os ajustes do corpo, preciso ler, tenho de ler. Parece que a mente, neste momento (tenha eu acordado às 7, 9 ou 11 horas), se abre como um corpo erotizado à leitura. É por isso que não aprecio compromissos matinais fora de casa, pois eles me sequestram este começo quase lento de dia, este adagio.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Os finais das manhãs costumam ser produtivos, mas a escrita pode aparecer em qualquer hora do dia − e, no caso da escrita poética, em qualquer lugar. Quando sou assaltado por um começo de poema, o ritual se basta em começar. Quando planejo escrever, o que consigo, na maioria das vezes, no caso da escrita ensaística, o ritual envolve algum (outro) prazer: às vezes há música (necessariamente do século XIX para trás, ou, se posterior, jazzística), nunca falta alguma bebida − dependendo da hora, café, chá ou um álcool nobre. E gosto de ter à vista a paisagem da minha janela.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Só tenho meta em tarefas chatas ou burocráticas, como avaliar trabalhos de faculdade, por exemplo (que meus alunos não me leiam), ou preparar um relatório. Mas tento escrever todos os dias, nem que seja para manter a mão em ação. Segundo um poema da Luiza Neto Jorge, a mão que escreve é ateia. Neste caso, como não temos a possibilidade da salvação, temos a do exercício, que é forçosamente corporal.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Na poesia, muitas vezes me vejo escrevendo livros, por assim dizer, orgânicos, não necessariamente recolhas. É o caso da experiência da primeira participação do Vasco na série B (2009), que virou 38 círculos, com um poema por jogo, ou de 40(2015), com um poema para cada ano de minha vida até então. É o caso também do Minidicionário de Paris, ainda inédito (quase no prelo), que reúne uma série de contos-cronísticos- labirínticos escritos durante meu período parisiense. No ensaio é diferente. Muitas vezes os textos resultam diretamente da pesquisa acadêmica, e as reflexões tocadas em aula, em diálogos etc. alimentam o ensaio. Nesse caso, o ensaio também é uma experiência de risco, sem dúvida, porque o escrito se vê sob ameaça pelo que virá depois.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A escrita, para mim, se dá no tempo, de um modo corrente. Ou seja, não há procrastinação, porque a demanda é da própria escrita − quando não há, não há, e não há problema se não houver. Penso em poesia e ficção. No caso do ensaio, se mais próximo à pesquisa, também não costumo me encontrar procrastinando: é a escrita que move o pensamento sobre os problemas que me toca pensar, que quero investigar. Portanto, escrever não é buscar um resultado satisfatório ou decepcionante, isto é, sequer noto que haja expectativas, mas procurar o processo, sempre o processo, ainda que ele seja capaz de algumas conclusões.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Quem escreve não revisa os próprios textos. Quer dizer, revisa-os (deve revisá-los) obsessivamente, mas isso eu não entendo como revisão, e sim como parte do processo da própria escrita. Em resumo: se o entendo como revisão, revejo meus textos o máximo que posso (três vezes? Quatro? O bastante para detestá-los?); se o entendo como parte da escrita, não tenho condições de ser meu próprio revisor. Por isso, preciso que alguns olhos atentos e críticos vejam meus originais, porque eles, sim, podem empreender uma abordagem mais próxima do que entendo como revisão.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Como a poesia às vezes é uma assaltante, muitas vezes ela me obriga a escrever à mão − num transporte público, por exemplo. Em circunstâncias mais pacíficas, consigo escrever diretamente no computador, sem qualquer óbice. A propósito, eu tenho uma das caligrafias mais feias e ilegíveis com que já me deparei, e não é raro eu não entender o que escrevi. Nesse aspecto, o computador me evita aborrecimentos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
A leitura é excelente para manter a criatividade. Não só a leitura de livros, e leio muitos livros, obviamente, mas a leitura do mundo. Inclusive a permissão de sermos lidos, não apenas nossos textos, mas nós como gente que se dá à leitura. Franquear a legibilidade de si (e, por consequência, a crítica de si) é altamente criativo, é um cultivo. E as ideias vêm de toda parte, ou melhor, de partes sensíveis − de Paris, do Vasco, do corpo que amamos, dos prazeres, dos ódios… O mundo é cheio de ideias, e talvez ainda seja um pouquinho cheio de deuses.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Minha escrita mudou, claro, porque não poderia não mudar, e ainda bem que mudou. Talvez eu me perceba (percebendo que a maior parte eu não percebo) procurando menos as referências, digamos, eruditas, o intertexto, o diálogo deflagrado. Mas ainda os busco, pronto, porém menos. O que eu diria ao eu de treze anos atrás (a marca é meu primeiro livro de poemas,A,de 2006)? Talvez nada. Hoje eu entendo a importância da história toda, mais ou menos como foi.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu preciso de livros, não vivo sem livros, estou curioso pelos que ainda não existem, mas deixo-os para as que os escreverão, cantarão, dirão. Em certo sentido, sou um leitor que se submete como que sexualmente aos textos, e gosto disso. Meu projeto por vir, e estou me nutrindo para escrevê-lo, é um longo ensaio sobre o sequestro do presente feito por aplicativos de celular e redes sociais, que se tornam mecanismos de ponta para a concretização da sociedade de controle prevista pelo Deleuze no começo dos anos 90. Ainda demora uns bons anos, preciso de muito estudo, mas este livro está ali no meu horizonte.