Luís Filipe Sarmento é jornalista, editor, realizador de cinema e vídeo, professor de Escrita Criativa, História dos Modernismos e Estética.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho rotinas. Um escritor não é um funcionário. Tudo depende do dia anterior. Todos os programas estabelecidos são, inevitavelmente, quebrados por sucessivos imprevistos que, por sua vez, irão interferir dramaticamente no projecto ou nos projectos que se têm em mãos. As manhãs são irreparavelmente diferentes. Os humores também. Hoje, levanto-me mais cedo do que há uns anos. E os rituais alteram-se com o tempo e com o espaço. Um café é um lugar-comum. Depois, a ilusão das ideias ou a conclusão injusta de que a fonte misteriosa terá secado «eurekas». Nada que não se resolva com movimento. Tudo se produz em movimento. E a manhã será na hora que se quiser. Original. Inimitável. Insegura. Fabulosa. Enigmática.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho rituais nem horas nem caos nem organização. A melhor hora para escrever é quando a escrita se torna inevitável. E nesse momento tudo o resto deixa de ter importância exclusiva. Por vezes, é mais violento do que a fome ou a sede. E quando me deixo entregue ao alimento e me sacio o resultado poderá ser um bom naco de prosa, um poema, uma ideia consubstanciada, ou uma amálgama de merda que acabará no lixo. A vantagem do computador, como um dia disse um dos grandes prosadores portugueses do século XX, José Cardoso Pires, é porque em si é uma máquina de apagar. Tudo depende do critério de quem o usa. Nunca conheceremos antecipadamente o minuto seguinte, donde a impossibilidade de rituais. E evitaremos, assim, farsas mediáticas.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias quando não tenho mais nada para fazer. A escrita é um modo de sobrevivência contra a solidão das multidões. Escrever a qualquer hora e em qualquer lugar é uma imposição à qual estamos eternamente subjugados. O resto, é trabalho de laboratório. A experiência de burilar e polir a pedra bruta. Mas até esta experiência foge ao controlo racional. Ela impõe-se e exige. Uma exigência com açúcar. Gostosa. Ainda que seja uma exposição ao perigo. A versão definitiva não existe. O limite expande-se. Até ao cansaço.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não há processo. Há ofício. Sou um péssimo companheiro de viagem. O movimento estimula-me a abertura de todas as portas ao mistério das ideias. Por vezes, o sorriso mantem-se. E não troco palavras com ninguém. É a matéria bruta que será trabalhada no laboratório. Por vezes, há notas de segurança. As viagens de longo curso são altamente produtivas. É nelas que me encontro na mais profunda e instigante solidão. Onde me confronto com o inusitado. Onde dialogo com esse mundo desconhecido que em nós reside e que não marca hora para a entrevista derradeira.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Com a idade, esses bloqueios vão-se desvanecendo. Mas quando eles acontecem a vida corre e está aí para ser deglutida com prazer. Não sou escravo, nunca fui, desse tipo de medos. Há ideias, muito bem. Não há ideias é porque o seu momento não chegou. Entretanto, há o cinema, o teatro, os jardins, as praias, o bom vinho, a riquíssima gastronomia portuguesa, a libertação do disparate, as paixões, as inúmeras paixões, os amigos em volta, os sonhos, o sono.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Como lhe disse anteriormente, o trabalho de revisão é ilimitado e só o cansaço lhe coloca um ponto final provisório. Os meus livros em segundas edições são diferentes das suas primeiras publicações. E as terceiras das segundas. Nada se repete. Tudo se transforma. Uma nova edição tem um novo ISBN, logo terá novos conteúdos. Por vezes, partilho com amigos próximos alguns fragmentos do que considero provisoriamente um produto acabado. Mas a amizade não é crítica. Os que não são amigos não entram nessa relação íntima. Nesse sentido, confio-me à minha convicção. Também ela em constante mutação.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Venho da velha escola do jornalismo, da rapidez, da exigência de uma ginástica mental que a velocidade da notícia impõe. O jornalismo foi uma disciplina superior da literatura. E que não se compadece com carícias à cria que acaba de nascer. Se nasceu, está na vida a correr. Essa escola ajudou-me muito na transição para as novas tecnologias que se renovam diariamente. Sempre escrevi em teclados, salvo as notas de segurança que, inevitavelmente, escrevo à mão. Contudo, sinto uma paixão romântica pelo desenho da letra, pela caligrafia. E quando esse momento me exige, desfruto por momentos, sentindo a ponta de nylon arranhando suavemente o papel. É um ritmo diferente. E raro. E absolutamente adorável, mas que não se compadece com o vício do teclado com um outro tempo com o qual o pensamento já estabeleceu um pacto.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
O movimento abre essas portas da percepção que são accionadas e estimuladas com a viagem. Ser é sair. E é no espaço exterior que o interior explode nessa necessidade de se inovar. E neste sentido, a criação é muito mais importante que a criatividade. O resultado desta disponibilidade surge, mais tarde, no laboratório com a organização dos flashes, com a percepção das obscuridades, o que dá lugar a um outro corpo cujo mistério se vai desvendando em cada palavra, em cada significado.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Tudo muda ao longo da vida. Mas desde cedo tive a percepção que não deveria nunca insistir numa busca que não se deixa procurar. Tudo influi os estímulos que o mistério da criação nos proporciona a cada momento. É um trabalho de paciência. De muitas derrotas. De muitas vitórias. Do fascínio juvenil pela noite à paixão actual pelo despontar do dia. O tempo é outro. A disponibilidade também. O objecto de reflexão é hoje o que não era ontem. Coleccionamos episódios que nascem, morrem e renascem. E se assim é por que não aproveitá-los nessa mescla de emoções que constitui a singularidade de uma peça literária que tem e terá sempre a ver com o seu tempo. Aparentemente é uma contradição com o que disse atrás. Mas não é. Se uma obra é reeditada, ela deverá conter os novos ritmos que uma nova leitura exige. A literatura move-se.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou. Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Se eu soubesse já o teria feito. E a literatura deixaria de ter graça. Somos feitos de imprevistos. E a literatura também.