Luís Carmelo é escritor, autor de A Falha.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho rotinas. Sigo a sombra. Confio nos passos que ameaçam ser passos perdidos. Tomo o meu duche, deixo-me invadir pela luz e dou um passeio a sós, geralmente pelo Jardim da Estrela (Lisboa).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Variou muito. Conforme as fases da vida. Não tenho qualquer ritual. Parto para as coisas como se não houvesse um começo definido. Um tempo apeado das continuidades (que são ilusões sem dor).
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados?
Escrevo todos os dias em várias frentes: romance, ensaio e poesia.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Tenho mais de cinquenta livros publicados e um sem número que não desejo publicar. Cada um é (e foi sempre) um mundo inteiro, de modo que é impossível aqui condensar essa informação. Seria matéria para um ensaio inteiro. Uma boa ideia, afinal.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não ligo absolutamente nada a quem poderá vir a ler o que escrevo (enquanto estou a escrever, bem entendido). Escrevo sem ansiedade alguma. Escrever é desabar o mundo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Nenhuma. Peço a amigos. E confio depois no extraordinário revisor da minha editora (o Raul Henriques da Abysmo Editora, Lisboa). Mas não tenho nada contra as gralhas: um bom livro sem uma única gralha (e/ou sem qualquer erro ou falha) é como um corpo absoluto; coisa perfectível e perigosa que não existe na realidade. Os humanos dão passos em falso. É esse o seu devir. Já tenho dado a ler, de vez em quando, os meus textos, sobretudo a quem mostra interesse em lê-los. Mas são poucas as pessoas nessa condição. E, por mim, raramente o faço. Nem à minha mulher mostro o que escrevo (e o que estou a escrever). Nem disso falo cá em casa.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Boa. Criei uma escola online de escritas, a EC.ON, há mais de dez anos. Aí trabalho com escritores dos dois lados do Atlântico e com pessoas que se inscrevem nos nossos cursos em todo o planeta. Foi o modo de me tornar economicamente livre (a liberdade negativa, conceptualizada por Isaiah Berlin, é tão importante como a positiva). Daí a minha proximidade à tecnologia que trato como um meio e não como uma consciência que me ocupasse o ser. Desde 1991 que escrevo sempre no computador (só Macs na última década).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Creio que as ideias e as imagens emergem do olhar com que vincamos o mundo. Vicamo-lo como se vinca uma folha de papel e o nosso acolhimento do mundo é, igualmente, parte do modo como o mundo se deixa vincar. Desse processo plural surgem rascunhos abstractos que podem ser vertidos ou convertidos em matéria que, por sua vez, pode ser elástica ou da ordem do indizível (poesia), corpórea ou da ordem do dizível (ensaio) e segmentada ou da ordem da fantasia controlada (romance). Ou da ordem da loucura (rasgada e sem apelo nem apêndices). Ou do nada (desvivida e ausente). Dá para tudo, como se vê. Mas inspiração e expiração são coisas respiratórias ou pulmonares e não próprias do ofício da escrita. Não cultivo hábito nenhum, embora desenhe amiúde cidades inventadas a partir do zero.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Tudo. Já fui muitos escritores e muitos ensaístas. Com a idade estão a surgir poetas à solta na minha pessoa. Um nomadismo que me intriga. Sobre a segunda parte da sua pergunta: doutorei-me na Holanda em 1995 e escrevi a tese entre 1991 e 1994. Jamais regressaria a essa tortura. Deixei a vida académica institucional por a achar inútil, vã e criadora de pessoas que repetem sempre o que aprenderam uma vez (burocratas de papel vegetal sentados à mesa em reuniões inacabadas e intermináveis, com honrosas excepções, é claro).
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou a escrever um ensaio na minha cabeça sobre a correcção (a aventura do literária e política e socialmente correcto). Ainda não comecei a transformá-lo em corpo. O seu tempo virá. Livro tipo último Barthes, com mistura de ensaio sem apologias e uma linguagem poética despojada a acompanhá-lo num fomato de coro grego sufocado e insolente. Tudo para radiografar a vida em fluxos (que cria uma moral invisível para preencher a ilusão de que a liberdade não é senão, pelo menos para um vasto mainstream, um conjunto de posturas e usos tipificados, dirigidos e cegos).