Lucinda Persona é poeta e contista, autora de Tempo comum e Entre uma noite e outra.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Há muitos anos que certo sentimento de estar despertando e certos gestos do amanhecer estão integrados à minha quase rotina. E tão impregnados se encontram que preciso apontá-los para ser fiel ao que realmente acontece. Uma vez, por volta dos meus oito anos de idade, em meu Estado natal, Paraná, numa manhã de inverno, minha mãe abriu a janela do quarto e com voz cristalina avisou para a sua meia dúzia de filhos: “hora de levantar, olhem, olhem, o sol já está alto! ” E, na ligeireza própria de criança, saltei para a cabeceira da cama colada abaixo da janela. Havia gelo derretendo no peitoril e uma luz perfeita derramada sobre a placidez de nosso quintal. Isso, além de me impressionar, ajustou-se tanto ao meu destino que desde então, esteja onde estiver, tenho por hábito acompanhar a novidade das manhãs dos meus dias. As inúmeras janelas dos quartos pelos quais vou passando têm uma importância que ultrapassa a de sua óbvia serventia arquitetônica. Há cerca de quatro anos, desde que me aposentei das atividades docentes nas universidades onde atuei, embora com plena liberdade de horário, tenho despertado de acordo com meu viciado relógio biológico, entre seis e sete horas. Afasto a cortina da janela de sacada e por alguns instantes examino o pedaço de céu e terra ali comparecendo, as árvores do quintal fronteiro e o sol rondando a casa, nesta sempre ensolarada cidade onde vivo.
Os passos seguintes fazem parte das ações comuns de um início de dia (gestos refletidos no espelho e depois o café da manhã). Invariavelmente, leio jornais ou vejo telejornais e atualizo correspondências. Por duas ou três vezes na semana, com meu marido, faço caminhadas no Parque Mãe Bonifácia, nas proximidades do meu bairro. Seria estupendo trabalhar na escrita também no período matutino, mas isso é pouco frequente, pois sou arrastada para fora de casa por certas urgências como compras, pagamento de contas e equivalentes. De certo modo, a resolução das demandas econômico-domésticas e das correspondências pendentes, por exemplo, logo na primeira metade do dia, dão-me um estado ideal, livre, para a jornada (vespertina e noturna) da escrita. Na verdade, desembaraçar-me dos afazeres mencionados é uma condição indispensável. Preciso estar tranquila. É como renascer exclusivamente para a palavra.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Experimento uma espécie de relação inefável com a noite. A propósito, nasci às dezenove horas de uma terça-feira. Nunca procurei entender esse interesse, mas a noite é um espaço de tempo que me leva mais longe do que se possa imaginar. É quando os rumores da cidade se aquietam que minha alma melhor decola e circula por aí. A quietude noturna me proporciona o sossego necessário para a escrita. Minhas fantasias deslizam numa corrente significante povoada de lembranças, sonhos, obsessões e então vem à tona o que me alegra. Assim, nomeio a noite como meu espaço predileto de habitação literária. Ocorre-me agora existirem algumas aves naturalmente noturnas, acho que sou uma delas. Entretanto, estou pronta para outros períodos. Também me alojo com diligência nas páginas da tarde.
Não tenho nenhum ritual ou procedimento pré-estabelecido para a escrita, exceto a já mencionada e necessária condição de me livrar primeiramente de alguns compromissos e demandas do cotidiano. Escolho horários de interferências mínimas. Embora eu ame e prefira o silêncio, convivo bem com os ruídos normais da cidade, não me incomoda ouvir o que se passa, mas é tentador dizer que o toque eventual de um telefone é um enorme confisco de minhas concentrações, porém jamais o desligo.
Quando em casa, escrevo em meu escritório, com a janela de sacada aberta, mostrando boa cota de paisagem, a constante e a que passa. Isso sim é importante, pois coisas de fora ressuscitam as de dentro.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias, porém sem meta diária. Minha escrita está mesclada a um sentimento remoto e particular que me anima naturalmente, ad infinitum. Escrever todos os dias, seja um verso, um pedaço de conto, crônica ou resenha, é algo essencial, uma exigência gritante do espírito, recompensada no confronto com o cotidiano da mesma forma que satisfaço necessidade de água e pão. Volta e meia, podem ocorrer períodos concentrados, em geral para dar acabamento a um livro ou parte dele. É quando me recolho a um trabalho mais intenso e difícil de sondar minha própria voz, de verificar se há vida e coerência no que foi escrito e finalmente de apostar em meu modo de dizer e compor.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Talvez seja conveniente começar apontando que eu sempre tenho vontade de escrever. Eu o faria full time não fossem os chamados da vida prática. Sempre tenho a mente cheia de coisas a dizer. Começar não é difícil, porque é algo proporcional ao próprio gosto pela vida. Na grande trama de elementos e valores, sobressai meu enorme fascínio pelas palavras, dou-me conta a cada instante que me agrada até a dificuldade no ato de integrá-las à realidade visitada, às imagens exploradas e ao texto em curso.
No fundo, não faço pesquisa prévia, mas anoto muito os temas instigantes no dia a dia. Anoto em casa, nas viagens e em locais de espera. Às vezes, alguma pesquisa acontece em meio à elaboração do texto, quando desejo ampliar conhecimento sobre o objeto em mira, para melhor explorar suas potencialidades. Tenho centenas de escritos em páginas soltas e um sem número de ideias ainda nos rascunhos, inúmeras páginas de jornais com reportagens sobre fatos insólitos e sugestivos (enquanto fonte para contos), enfim, material para futuros livros.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Penso que na escrita palmilhamos, em algum grau, o campo das incertezas e que estamos naturalmente sujeitos às tensões interiores e expectativas várias. No texto “O meu ofício” (do livro As pequenas virtudes) Natalia Ginzburg aponta dois aspectos presentes no processo da escrita, caracterizando-a como um ofício “bastante complicado: mas é o melhor do mundo”, e diz ainda: “somos continuamente ameaçados por graves perigos já no ato de preencher nossa página”. Concordo com isso. Embora apreensiva, caminho possuída pela alegria de escrever. Eu poderia melhor dimensionar revelando que abro na poesia uma vasta conversa comigo mesma, numa dinâmica secreta, uma tessitura muito íntima, portanto, sem cogitar destinatários. É algo parecido com o “Canto a mim mesmo” de Walt Whitman, quando ele diz: “Descanso e convido a minha alma”. Escrevo dentro de uma espécie de desambição, não penso senão no escrito em si, no objeto do meu entusiasmo, eleito pelo espírito e que vai encontrando sua forma e sentido de modo muito particular na vastidão da fantasia. Realmente, não há direcionamentos. Emprestando uma pequena frase de Clarice Lispector: “Deixo-me acontecer”. Em relação ao meu lado procrastinador, ele se evidencia um pouco no momento de encaminhar um livro à publicação. Isso acontece desde o primeiro. É nesse ponto que travo e protelo. Quase um paradoxo, pois o que foi escrito sob o signo de liberdade (através de uma via particular, de certa forma desligada do destino do texto), no momento de ganhar as ruas fica preso pelas rédeas da autocrítica. Até que uma hora acabo me aprovando e abro o sinal verde.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Faço incontáveis revisões, sempre com longas considerações, remoção do supérfluo e daquilo que não tenha força. Em verdade, um processo demorado, como num vagaroso cozimento, mobilizando o quanto posso a capacidade de percepção estética e de discernimento. Revejo aspectos relacionados à linguagem usada, verifico os pontos obscuros, modifico, retiro e acrescento, retrabalho tudo de ponta a ponta até chegar à aceitação de que esteja pronto.
Sobre mostrar meu trabalho, nunca o fiz em relação à prosa. Entretanto, a poesia, sim, já submeti a alguns olhares, conforme aconteceu com meu primeiro livro, lido por três professores de literatura e uma poeta. A seguir, mostrei mais duas obras (cada uma em sua época) para escritores amigos, ambos atuantes também na crítica literária. Depois, parei. Cada livro vem à luz no seu tempo, com seu corpo e alma e vai direto ao editor.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Com essa indagação, retorno ao final da década de oitenta, professora na universidade, quando acompanhei a informatização dos vários setores, inclusive de meu departamento. Desde então, os computadores fazem parte de minha rotina. Entretanto, apesar desse laço de muitos anos com a tecnologia, quando escrevo meus textos, é sempre à mão. Somente depois faço a digitação. Amo escrever à mão, com caneta e folhas tamanho ofício, em minha escrivaninha e, conforme já contei num poema: “à luz do sol / à luz de lâmpadas / escrevo / como se nenhum princípio estivesse / envolto em trevas”. Realmente, o manuscrito me permite maior tranquilidade. Quero ter todo o meu tempo, riscar e acrescentar palavras, trocá-las de lugar, procurá-las sem pressa, valer-me do dicionário. Acho que a página de papel é mais paciente do que a tela do computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm de tudo, vêm das diversidades do mundo, vêm principalmente a partir do que vejo. Deste modo, a realidade tem um papel indutor de destaque, ocorrendo muito na poesia. Incontáveis temas são ditados pelo exercício de contemplação/observação. Detenho-me, quase intemporal, a considerar as coisas, objetos e seres. Meu acolhimento é muito amplo. De formação biológica, não resisto a comparar-me às esponjas (metazoários poríferos) em cujos poros penetra e sai água continuamente. Em mim, penetram e saem as correntes da poesia. Tudo o que nasce na luz do olhar representa um desafio às minhas elaborações. As paisagens atuam como forças impositivas e são armazenadas com suas mil e uma informações. A título de exemplo, meu conto infanto-juvenil: A cidade sem sol, nasceu durante uma viagem por terra, quando de carro, na madrugada, presenciei o amanhecer com sua fabulosa gradação de cores, num horizonte interceptado por nuvens. De fato, ver, para mim, é sumamente importante e tem grande significado na aventura da escrita. Mas, existe a ação concomitante e enfática dos outros sentidos fundamentais, pois a mente, além de ser espaço para infinitas imagens, codificações, sonhos, é também espaço onde se cruzam, colidem e se sustentam incontáveis vozes, ruídos, aromas, sabores, sensações táteis, térmicas, enfim, o substrato que desencadeia nossos processos de percepção. Além dos significativos chamados do mundo e da leitura cósmica que vou fazendo, preciso apontar ainda a leitura propriamente dita, dos numerosos livros sobre os quais me debrucei, desde a infância.
Sem querer abusar de reiterações, meus incentivos vêm de fora, mas também de dentro, ou seja, dos abismos da psique onde pervaga a poesia, misturada às inquietudes, ao trágico e aos júbilos, produzindo tumultos quase irresolúveis. Às vezes, são certas palavras, de substância estética intensa, que tomam proporção e me levam ao poema (minha forma predileta de expressão). Sempre estive submetida a um comando poético sem fim e a uma vibração amorosa por tudo, algo que se expande e exige manifestação.
Em suma, meu espírito faz perene vigília, toma conta de tudo, para as conversações com o mundo e com as emoções alheias.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Com essa questão, sigo diretamente a um patamar de reflexões, e, consequentemente, a vasculhar meus modos, motivações, inquietudes, limitações, percepções e tantos outros aspectos do processo.
Houve uma primeira etapa que eu denominaria de escrita engavetada. Depois, um novo momento, quando fui criando, escrevendo, reescrevendo e publicando. Realmente, a partir de minha estreia com um livro de poemas, em 1995, teve início um novo ciclo, acrescido pelo desafio da opinião do leitor. Em termos de emoção, eu diria que a escrita teve uma fase mais da pele para dentro e depois passou a ser também da pele para fora, com todas as intercorrências inerentes. Para indicar alguns pontos, passei a me observar melhor, a me conhecer mais, a me aprofundar nos estudos acerca da língua e de tudo que seja adequado a um texto bem-sucedido. Não me direciono ao inacessível. Misturo-me à vida, ao coração da realidade com suas durezas e suavidades, razão e loucura, luzes e sombras.
Sempre tive uma relação de amor com as letras, desejando com elas, à semelhança de um trabalho fotográfico, retratar/revelar tudo o que vejo e experimento, levando em conta o máximo possível de recursos visuais para descortinar o objeto considerado. Meus escritos surgiram em diversos momentos, em diversas paisagens e estados de espírito. Grande parte do que produzi e produzo pertence à atmosfera do centro-oeste, às rajadas de vento quente do cerrado, à marcha do cotidiano no locus doméstico, mergulhada no pingue-pongue das alegrias e penas, das serenidades e tumultos. De tudo isso, não sei dizer com exatidão o que mudou em minha escrita. Basicamente, creio ter sido um avanço na intensidade. Vou surgindo e ressurgindo de vários modos conforme o tempo passa. A escrita vai consolidando laços com as verdades. Minha observação constante tem sido: escrever de corpo inteiro e jamais esquecer a importância da linguagem, a cada verso ou parágrafo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Nunca deixei de acalentar projetos ligados à escrita. Sempre descubro alguma coisa que se agita, intenções tomando forma, tanto para novos livros, quanto para outros trabalhos envolvendo a literatura. Tenho algumas propostas, por enquanto no campo das ideias. Tomando a frente e na iminência de passar ao papel, está o projeto de um livro de poesia para a infância. Seria algo que depois de pronto pudesse conduzir a novos caminhos e novas ações envolvendo a criança. Um trabalho que se desdobrasse como um recurso importante dentro da estrutura pedagógica.
Que livro eu gostaria de ler e ainda não existe? De imediato, penso na espantosa abundância de livros no mundo. É assombroso imaginar acerca do que já foi produzido através dos tempos. E sigo pensando ser impossível, em uma vida, ler tudo o que a alma pede. De repente, posso incorrer na coincidência de desejar aquilo que talvez já esteja em algum lugar. Divagando pelos ares incertos à minha volta, ao querer isso e aquilo e mais isso e mais aquilo, acredito não estar ainda cristalino para mim o meu próprio desejo. Entretanto, posso afirmar, li muito do que gostaria, vários assuntos, abordagens das mais variadas, romances, contos, ensaios, que me ajudaram não apenas na trajetória, mas permitiram inesperadas fulgurações na tarefa de viver. Então, já encontrei muitos livros que me interessavam sobremaneira. De um deles (do poeta que via exuberâncias no ínfimo, Manoel de Barros) recolho um fragmento contendo uma das explicações animadoras de minha aventura nas letras: “Não quero a boa razão das coisas. / Quero o feitiço das palavras”.
Finalmente, aqui da antessala do Alto Pantanal, em época de fim da seca (terceiro domingo de setembro), quando até as lâminas de água reclamam por chuvas, agradeço imensamente a boa oportunidade desta entrevista, ótimo e regenerador exercício de remexer no íntimo. Tudo, em excelentes companhias.