Luciano Portela é escritor e um dos editores da revista Chorume Brasil.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não sou uma pessoa muito presa a rotinas. Quando o assunto é criar eu costumo fazer isso no tempo em que estou totalmente livre. Sou professor, o que torna o tempo hábil raro em diversas situações. Não gosto de fazer anotações soltas em cadernetas, ou escrever em caderninho e todo e qualquer tipo de clichê que ligam a quem escreve. Quando trabalho, costumo escrever à noite, adequo os meus horários e, após uma caminhada noturna, ligo o computador. No período de férias eu costumo escrever mais e em horários díspares (ora de tarde, ora numa madrugada, etc.), justamente por não ter muitas preocupações ligadas ao trabalho ou à minha vida particular.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Acho rituais de escrita um pouco clichê. Substitua a palavra ritual por mania, no meu caso acho que se enquadra melhor. Prefiro escrever nas madrugadas quando posso. No meu caso tudo depende do meu momento, se estiver tranquilo e calmo comigo mesmo. Escrever deve ser um ato pragmático e disciplinado, o que não significa que não se tenha apelo emocional. Costumo fazer minhas coisas independente se irei escrever ou não no dia. Posso caminhar, como disse, beber com amigos ou até ter voltado de uma festa. O que vai prevalecer é a vontade de escrever, se eu sentir em meu íntimo que é o momento. Então meu “ritual” se resume em sentar em frente o meu computador velho da positivo, ligá-lo e pôr a mão na massa.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tudo depende do livro que estou escrevendo, criar é sentir o feeling do processo todo. E a consequência disso é adequar-se ao livro também. Citando um breve exemplo, meu romance anterior, o Tudo que Afeta o Movimento (Editora Penalux, 2017), foi escrito em capítulos longos e aos poucos amarrados. Eu fazia verdadeiras maratonas de escrita, para depois lapidar com calma cada capítulo. O meu atual é com capítulos curtos e soltos, numa estrutura similar aos romances do Milan Kundera, do Cortázar. Então posso lhe assegurar que já não sinto a mesma necessidade de escrever um caminhão de textos curtos. Escrevo aos poucos, como quem despeja migalhas. Quando escrevo esse romance, procuro escrever um pequeno texto sem uma preocupação exata com a quantidade de páginas e paro. Depois penso em como amarrá-lo e quais assuntos trarei ao longo da narrativa.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Geralmente começo de uma situação x específica, essa situação pode ser algo ligado à memória ou uma vivência pessoal. Acho sempre a realidade o principal ponto de partida. Como disse acima, não gosto de fazer anotações em cadernetas, para mim não costuma ter muita utilidade. Quanto a pesquisas, isso eu faço. Posso abordar o universo de um autor específico, uma situação histórica, fazer algumas leituras sobre determinado assunto, etc. Mas o que prefiro ainda é conversar com pessoas ligadas ao que eu pesquiso, isso quando é possível. Citando novamente meu romance Tudo que Afeta o Movimento, eu abordei a questão do fetiche do Devoteísmo (Devotées são pessoas que têm fetiche por tudo que afete o movimento, no geral cadeirantes e em casos mais extremos amputados) e nada melhor do que conversar com os próprios fetichistas sobre o assunto. Para entender como eles compreendem o mundo e não reproduzir de forma preconceituosa ou torta. É quase um trabalho antropológico do qual eu prezo muito. Dá consistência à escrita.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Posso te dizer que tive um grande hiato na vida. E foi lá pelos idos de 2013, 2014. Quando estava prestes a publicar meu livro de contos (Carolina foi para o bar exibir seus lindos pés, Editora Giostri). Sinceramente não reagi mal. Até gosto de ter momentos sem escrever, significa que tenho maior paz de espírito. Minha escrita é movida a desespero. Então quando sei que estou verborrágico demais pode ter certeza que tenho algum incômodo que preciso materializar. Quanto a lidar com processos de escrita eu não fico ansioso, gosto de trabalhar no meu ritmo, um texto não é um produto de mercado para mim. Respeito o meu ritmo. Então ao escrever penso se ele vai corresponder primeiramente às minhas expectativas, o outro será um processo. Não costumo me importar, embora adore ser lido, obviamente. Percebi que na literatura era muito comum começarem com contos curtos, romances curtos. Eu segui o caminho inverso. Escrevi contos longos por questão de teste pessoal, queria sentir até que ponto eu sustentaria uma narrativa. Daí veio o romance. Hoje posso dizer que me dou ao luxo de escrever narrativas curtas. E me espelho muito no Dalton Trevisan e no Juan Rulfo que considero verdadeiros artesões da palavra. Para mim, hoje, o texto curto e enxuto é perfeito.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Muitas vezes. Fico obsessivo com isso. Porque escrevo uma vez, depois termino e começo a revisar. Leio em voz alta para sentir o ritmo, enxugo excessos porque penso que ao escrever o texto deve ser bruto, algo como Graciliano Ramos e Kafka além dos citados na pergunta anterior fazem. Depois de algumas revisões eu até passo para alguns amigos próximos. Posto trechos no Facebook, porque considero interessante colher impressões. E as que mais me interessam são de leitores comuns. Porque trazem um olhar mais imparcial, a meu ver.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre no computador. Odeio papel em excesso.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Cara, isso é algo a se pensar. Posso dizer que a memória é o começo de tudo. Memórias de infância, traumas, ódios antigos, amores mal resolvidos, tudo o que fica preso na cabeça serve de material. O cotidiano comum também me interessa, situações específicas como uma família comendo no McDonalds da praça de alimentação de um shopping qualquer, um frentista de posto vendo pornografia escondido, pessoas dançando num forró fuleiro risca faca de bairro, tudo pode ser um material riquíssimo se você souber observar e usar. Fora isso costumo pesquisar muitas coisas ligadas à indústria cultural. Gosto de ver novelas, ouvir músicas ditas sem conteúdo, amo o senso comum. Isso é literário ao extremo. A maioria dos escritores brasileiros fogem disso (olham o mundo pela janela da academia), exceto o Marcelo Mirisola, o Giordano Andriola, o Marcelo Adifa, o Samuel Mallentacchi, o Bruno Brum etc. Eu só levo a um padrão mais fundo, gosto do fosso mesmo. A rotina para manter-me criativo consiste em ler fofocas, ler sobre signos, observar postagens aleatórias de Facebook, ver talk shows, seguir o Instagram do Guilherme de Pádua, buscar informações de artistas e por aí vai.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Há um conto bacana do Borges que abre O Livro de Areia (não me lembro do nome) aonde o mesmo se encontra com sua versão mais jovem e rola uma longa conversa. No meu caso eu diria “Continue confundindo os outros eternamente como o assassino do Zodíaco fazia.”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Adoraria trabalhar roteirizando. Um curta-metragem seria um bom começo. Mas por enquanto fico tranquilo, uma hora acontece. Quanto a livros? Gostaria de livros mais audaciosos. Sem medo, gosto e aprecio quando o escritor é arisco, isso se reflete em sua obra. É o caso de um Céline, Thomas Bernhard, Nelson Rodrigues, gosto de escritores fora da curva, que mesmo mortos incomodam e geram boas discussões. Por isso, atualmente poucas obras me impactam. Tem muita gente morta lançando um livro atrás do outro, acho deplorável. Ler um livro implica em ter uma boa dose de entretenimento em que eu saia com algo daquilo. A literatura brasileira tende a cair num academicismo exacerbado, floreado demais, metafórico também, chega a ser pior que solo de rock progressivo porque só quem é aficionado é quem irá consumir. Escreve-se para os pares, e vira um desfile da São Paulo Fashion Week. Como disse acima, veem o mundo pela janela da academia, e quando algo destoa de suas bibliografias literárias tendem a resumir tudo a Bukowski. O que acho tolo, porque consigo perceber nitidamente que eles mesmos nunca leram Bukowski.
Um livro ideal para mim tem que ser bruto, direto, claro e conciso. Como um episódio do Polícia 24 horas. Posso citar O Estrangeiro, ou O Azul do Filho Morto como exemplos básicos. Pouquíssimos são assim hoje.