Luciano Góes é advogado, doutorando em direito na Universidade de Brasília.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Em condições normais, acordo tarde, não sou muito fã de acordar cedo, salvo, claro, quando tenho compromissos, como dar aulas, mas adoro dormir. Como sou viciado em café, meu dia só começa depois de uma caneca de café, meu humor não é dos melhores antes disso. Não tenho uma rotina definida, após o café, olho ao redor e defino minhas prioridades para o dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Tenho hábitos noturnos, meu trabalho rende, qualitativa e quantitativamente, muito mais à noite e na madrugada. Não tenho nenhum ritual, tudo depende do que estou escrevendo, o que pode incluir, não raras vezes, escutar samba (de raiz, óbvio!), a inspiração de alguns sambistas, me motiva e impulsiona, até por que muitas das histórias ritmadas são minhas histórias, contam trajetórias e dores comuns aos negros, vivências desumanizadas, esvaziadas, pobres que determinaram inúmeras limitações, restrições e precarizações. Isso é fundamental para entender minha escrita, ela tem um marco muito claro, é porta-voz dos marginalizados, instrumento político de desconstrução do monopólio branco no âmbito jurídico, principalmente dentro da Criminologia, mas não limitado à ela, o racismo é a base da nossa sociedade, nascida, arquitetada antes mesmo do desembarque português e projetada para manter a hegemonia branca nos espaços de “produção de conhecimento”, e, por consequência, o saberpoder que legitima a hierarquia e o controle racial. A fala recente do ministro da educação do desgoverno onde reina a ignorância e o senso comum, deixa claro isso, a chamada “elite intelectual” é referência à intelectualidade “tradicional”, ou seja, a mesma que reina quase absoluta desde o início do século XIX e que fornece “especialistas” aos governos racistas. Ter negras e negros na academia resulta em pesquisas e saberes que desmascaram, confrontam e atacam o sistema racista, visando o direito de existir, essa é a missão da intelectualidade negra brasileira, e não é opção, é obrigação perante nossa ancestralidade que deu seu sangue para que nós assumíssemos esses lugares para contar as histórias ignoradas pela historicidade conservadora, o lado negado e escondido dos saberes que legitimam e fundamentam um status colonial que precisa ser declarado, em alto e em bom som (de preferência acompanhado de uma batucada de responsa).
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Minha escrita é diária, me organizo e me planejo para escrever um mínimo, todo dia, para não ser atropelado pelos prazos. Mesmo não tendo uma rotina matinal, procuro manter uma constante durante as escritas, estabeleço horários específicos para sentar na frente do computador e iniciar os trabalhos, o que não significa que começo, imediatamente, a escrever, às vezes retorno ao que tinha escrito anteriormente para embalar no enredo. Mas há um determinado momento em que a escrita se transforma, naturalmente, em rotina, aí escrever já não é mais uma opção, mas uma obrigação a ponto de, quando não posso escrever por motivos plausíveis, a lacuna deixada me faz mal, um sentimento de culpa me assombra e, logo depois, penso em como compensar.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Depende do dia e do que estou escrevendo, existem escritas fáceis e difíceis, como esta, por exemplo, apesar de não aparentar. Talvez pela novidade que traz o olhar para si, enquanto escritor, procurando uma descrição mais metódica e analítica na tentativa de ajudar outras pessoas a escreverem, não é tarefa fácil, muito pelo contrário, mas só se aprende a escrever, escrevendo o que é uma construção muito subjetiva e singular. Dito isto, no meu processo de escrita começo pelo título, que pode, e muito provavelmente, será alterado durante o desenvolvimento, é ele que me serve como bússola. Quando sou convidado para escrever algum artigo, com tema determinado, escrevo alguma coisa, sem qualquer pretensão, contendo minhas primeiras idéias e percepções, traçando linhas bem provisórias de raciocínio, depois sigo para a pesquisa e, durante a leitura, vou escrevendo com apoio de algumas notas, ou mesmo sem elas, aí acrescento elas depois, à medida que as encontrar nos textos pesquisados, se achar necessário, mas é sempre um processo muito dinâmico, sem um único sentido.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Ah… os atraentes e sedutores braços procrastinatórios! (risos) Haja disciplina, mas, às vezes, é impossível largar o controle do Playstation e me afastar da saga de Kratos, do game God Of War (é preferível, inclusive, nem começar a jogar se não estiver de férias!), ou largar o cavaquinho (apesar dele ser mais usado nas pausas durante a escrita, alternado com o café). Mas sou muito exigente comigo mesmo e tenho plena consciência de minhas responsabilidades, individual e coletiva, então, a preguiça, atitudes e ideias procrastinatórias não duram muito tempo e minha construção jurídica me ajuda muito, já que vivemos em meio aos prazos, como se fossem (e na verdade são mesmo) cordas no pescoço. É essa consciência que me guia, mas também me pressiona e por vezes aterroriza, mas isso não me imobiliza, ou constrange a ponto de não escrever ou não falar determinada coisa, procuro sempre fazer o meu melhor, sabedor que isso também é momentâneo e essa relativização ajuda muito a enfrentar e reduzir o medo e a ansiedade.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso inúmeras vezes e é difícil eu mostrá-los, acho que prefiro a surpresa da publicação, seja qual for o resultado. Acho que o texto está finalizado quando a leitura me exaure, quando canso de ler e já sei o texto, praticamente, de cor. Nesse ponto, alguns erros, aparentemente, grosseiros, de português ou gramática, passam despercebidos, aí, sempre que tenho tempo, deixo o trabalho de lado, dou um tempo para esquecer os vícios, aí… após alguns dias de distanciamento, reviso pela última vez e envio o trabalho.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Apesar de ser de outra geração, e ter tido acesso à tecnologia tardiamente, assim como o ingresso à academia, me dou bem com a tecnologia, assimilo as novidades tecnológicas rápido. Vou escrevendo tudo no computador, fazendo várias versões do trabalho, mas não dispenso o papel, vivo em meio aos rascunhos e lembretes! Pode ser um bloco de anotações, uma folha de papel, ou, o próprio aparelho celular quando não tenho opção, mas sempre tenho que ter algo para anotar porque quando os insights aparecem, aqueles fachos de iluminação quase divinos, tenho que escrevê-los para não perder as idéias e as linhas de pensamento que elas traçam. Isso pode acontecer na praia, no samba (certa vez, em uma roda de samba no Praça XI, reduto de samba aqui na Grande Florianópolis, passei boa parte da tarde com o celular na mão, “articulando”!), no banho e acontece com muita frequência durante o sono (as vezes não consigo “desligar” e a cabeça continua a trabalhar).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias estão, visceralmente, ligadas às vivências que formam nosso “realismo marginal racial” e, portanto, às estruturas dialéticas que se originaram com o racismo e mantidas hoje, então, os pontos centrais decorrem, direta ou indiretamente, dos modos de manutenção de um regime genocida e enfrentamento/sobrevivências perante um sistema desumanizante, cuja essência é a negação de qualquer direito decorrente da democracia e, portanto, dessa mesma democracia. Não tenho um conjunto de hábitos, acho que a criatividade anda de mãos dadas com a concentração e leitura (não necessariamente nessa ordem!), mas, como já mencionei, o samba, negro, forte, destemido e nascido no cativeiro, como eternizou o mestre Nelson Sargento, é um hábito imprescindível, meu bem viver está vinculado aos batuques por onde a ancestralidade se mantém e é transmitida. Escutar, cantar e/ou tocar me traz inspiração, principalmente quando ele se transforma em instrumento de denúncia e enfrentamento à uma política excludente e exterminante, como costumeiramente vemos nas margens da margem brasileira. Desnaturalizar um contexto, histórico e ininterrupto, de violência e violação que demonstram que a vida não é tida como um direito, mas uma mera “concessão” que pode (e é) ser considerada ilegítima a qualquer momento, manifestação básica de um país segregacionistas, demarcando espaços de (sobre)vivências.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Várias coisas mudaram e para melhor, a maturidade, em sentido amplo, favoreceu minha escrita, estou mais consciente do meu papel dentro do cenário político racista que se renova e se fortalece com um inegável acirramento das questões raciais promovido por um novo velho governo orientado e motivado pelo conservadorismo colonizado, portanto, recrudescendo o sistema de controle de um país que se orgulha de seu racismo. Meu comprometimento com a destruição de um sistema objetificante é proporcional ao aumento, considerável, de minha responsabilidade, pois sei tudo que enfrentei e superei para ter a visibilidade que tenho e alcance das minhas palavras, e isso não é um discurso meritocrático que é, ontologicamente, falso, pois sou apenas resultado de ações e resistências coletivas, sou fruto de um Baobá cujas raízes são intercontinentais, minha voz ecoa brados milenares em busca de liberdade. Assim, minha orientação ao iniciante Luciano seria: “Vá ao encontro de suas raízes, da sua negritude, se descubra, se reconstrua e não tenha medo, ou receio, de nada e de ninguém, quem te protege não dorme! Você nasceu com uma missão muito clara, foi forjado para batalhas e sobreviverá somente na medida em que estiver de mãos dadas com seus pares. Todas as respostas, sobre passado, presente e futuro, estão em sua ancestralidade e dependem, invariavelmente, de uma postura radical, pois, liberdade nunca será dada, tolerância não é respeito, o racismo não dá nenhuma trégua, portanto, o combate a ele deve ser contínuo e incessante!”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto que eu tanto queria fazer, comecei este ano, com ingresso no doutorado em Direito na Universidade de Brasília (UnB), que é assentado em uma Criminologia Marginal e para além dela, continuando, de certa forma, minha pesquisa de mestrado, mas alinhavado pela prática de enfrentamento às manifestações do racismo enquanto coordenador do núcleo jurídico do Projeto de Extensão “Vicente do Espírito Santo – SOS Racismo”, onde as vítimas de delitos raciais recebiam acolhimento e atendimento jurídico e psicológico. As experiências vivenciadas, as dores e revoltas compartilhadas, as tentativas de judicializar ações danosas tipificadas como “crimes” raciais, as discussões com o Ministério Público que culminaram com o Judiciário não apenas endossando, mas incentivando tais atitudes, apenas reforçaram a seletividade racial e a ignorância de direitos tidos como “fundamentais”. Acredito que tudo o que eu gostaria de ler já foi escrito, em algum lugar, de alguma forma, é uma questão de tempo até encontrá-lo, por indicação ou sorte, ou ainda, através de uma releitura que sempre reserva surpresas adoráveis, ideias e olhares novos.