Luciana Nabuco é escritora e pintora, acreana e macumbeira.

Umas das coisas maravilhosas de envelhecer é poder respeitar o seu próprio tempo. Viver conforme suas manias, desejos e sentidos. Não tenho absolutamente nenhuma rotina, ritual de preparação, meta, horário. Apenas a necessidade de escrever que pode me pegar sonhando, onde já tive encontros memoráveis com personagens, poesias, na fila do supermercado observando as pessoas, ou parada na frente de um pacote de biscoitos e tendo naquele momento uma regressão infantil que certamente me dará material sensorial ao escrever.
Um escritor é um bicho observador. Um leitor, um doido, um mandingueiro da encruzilhada, um mentiroso adorável e um pele queimada. Nossa carne é exposta em cada livro escrito. Nossas defesas e nossa alma. Somos todos e nenhum.
Nesse processo há os vazios, as viagens intermináveis no inconsciente que podem durar meses.
Eu gesto um livro e uma pintura da mesma forma que a terra acolhe suas sementes. E alguns grãos nunca crescem, porque o terreno não se mostra propício. Nisso a sabedoria do envelhecer te faz menos teimoso. Porque somente com a experiência das frustações podemos enxergar que nem sempre um livro acontece no tempo do mundo. Acontece no tempo do invisível, da magia.
Claro que é preciso haver o trabalho, a entrega. Certa vez Jean Marais disse que Jean Cocteau precisava escrever uma peça. Alugaram uma casa agradável na Provence e os dias iam passando e Marais vendo Cocteau abstrair em outros afazeres. Lia, fazia caminhadas, e ficava se perguntando “mas quando ele vai começar a escrever a peça?” Marais aflito com os dias se escoando e nada da peça. Ao retornar para Paris, Cocteau a escreveu. Marais entendeu que durante todo aquele tempo de abstração a escrita estava sendo gestada.
Um livro não é um acontecimento apenas do presente. Sinto que ao escrever e ao publicar tudo será transformado com o tempo, e irá perdurar se houver qualidade. Desse modo é preciso saber o que se deseja realmente colocar na terra. E como uma semente, meus escritos podem ficar muitos anos guardados, esperando uma chuva boa, uma sombra, um passarinho que fertilize e traga notícias.
Quando uma determinada inspiração não vem, abandono e vou procurar a libertinagem da criação. Libertinagem mesmo, porque misturo músicas, angústias e alegrias no meu íntimo. E converso bastante com o passado, e faço minhas macumbas artísticas, me permito muito mais agora que sou essa velha senhorinha do que antes quando encarnei uma jovem jornalista que precisava estar tal hora na redação, produzir textos, e escrever conforme uma linha editorial. Viva a libertinagem, e me lembro do meu querido Bandeira que dizia: “Quero antes o lirismo dos loucos, o lirismo dos bêbedos, não quero mais saber do lirismo que não é libertação”.
Nisso reside minha busca. Pela libertação, o desate.
Um bom livro pode ser um experimento arqueológico. Os escritos ficam, você morre, alguém um dia decide desenterrar para tentar descobrir algo. Esse alguém é o leitor, que se apropria da história, porque ela ecoa nele.
Se algum dia eu me transformar em um desses objetos desenterrados terá valido a pena todo esse caminho de dúvidas, de indagações. Escrevo e pinto porque é parte do que eu sou. Vivo de vadiar e trabalhar como o amor feito preguiçosamente depois de um lauto almoço, de preferência com sabor do Norte, de tucupi ardido e pimenta de cheiro.