Luciana Krissak Salum é psicanalista e ensaísta, doutora pela Universidade de São Paulo e autora de “Fragmentos. Sobre o que se escreve de uma psicanálise” (Iluminuras, 2016).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Desde que minha filha nasceu eu tenho uma rotina.
Nunca tive. Sequer rotina.
Um dia sempre foi significativamente diferente do outro.
O que se segue do que poderia chamar de hábito de outrora é o café preto antes de qualquer bom-dia. Assumo que não sou dada ao bom-humor matinal… Mas hoje, sequer ele, o humor, concorre com os minutos a mais que posso dormir antes de acordá-la, amamentar, leva-la para a “escolinha” (sempre preferi falar “escolinha” à “creche”: traz uma melodia que ampara o cru da creche) e ir ao meu consultório, chegar praticamente junto com o meu primeiro analisante (sempre preferi falar “analisante” à “paciente” ou “analisando”: é uma posição ativa. A única vez em que concordei com a palavra “paciente” foi quando um analisante, – temos sempre o analista que merecemos – me disse: “sorte que o paciente sou eu. Se eu dependesse da tua paciência estava fudido”), trabalhar seguidamente (atender, escrever e ler) e ir busca-la ao final do dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não importa muito a hora, o que importa é a duração.
Preciso de longos períodos para conseguir escrever. Isso também funciona para a escuta. Aliás, muitas coisas, ao meu ver, se parecem entre a psicanálise – a que eu faço -, e a minha escrita. Sinto que escuto melhor quando passo um dia inteiro no consultório, sem intervalo, à períodos curtos de atendimentos diários.
Incluo a minha vivência no divã.
Sentia que fugia ao diário semanal que uma narrativa pode ser seduzida quando marcava sessões seguidas. Seja no mesmo dia, seja em dias seguidos.
Pensando aqui enquanto escrevo essas respostas…, acho que funciono bem na exaustão.
Quanto ao ritual…
Escrever sempre foi coisa séria. Assim como brincar.
Creio que toda a minha neurose obsessiva se condensa ali. É a bagunça mais requintada que posso ter. Insisto na bagunça e no requinte porque escolho a dedo o caderno, a caneta, o lápis, a letra no computador… a luz da sala, pego a taça de vinho, faço o café, empilho os livros que me ajudam a pensar e… por fim, depois de tanto detalhe, não tenho a mínima ideia de em qual caderno anotei, em qual arquivo guardei…
Quando na faculdade, – atualmente faço letras francesas na UnB (digo atualmente como uma tentativa de compactuar o tempo e iludir-me não em licença), compro meus cadernos e sempre, sempre!, as matérias se misturam umas nas outras e, também, aos desenhos, às matérias que dou como professora, às listas do mercado, aos pensamentos aleatórios, ao telefone do médico ou a algumas cenas que precisam atestar a sua existência.
O que acontece para acontecer alguma coisa? (voltarei a isso)
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem alguma meta de escrita diária?
Como já escrevi, prefiro períodos concentrados. Até porque, ateia como sou, sempre penso que escrevo por incorporar algum espirito que escreve em mim. A concentração do tempo é uma espécie de ajuda ao santo.
Fora os detalhes também já salientados, quando acontece o que disse que voltaria a falar, da cena ou da ideia se imporem ao momento, eu escrevo em qualquer lugar. Algo cai aos meus olhos e só me resta roubar a cena e “simplesmente escrever”. Como se escrever, em algum momento, fosse algo simples.
Tenho cenas recortadas e frases roubadas que certamente estão em algum caderno que, num segundo momento, me servirá de estímulo para escrever sobre alguma coisa.
Como se a partir da escrita a vivência virasse experiência.
O que precisa acontecer para acontecer alguma coisa?
A escrita marca o acontecimento. Mesmo quando ficcional.
Quanto as metas…
Impossível trabalhar com metas!
(nem na época do doutorado)
Sequer consigo cumprir metas para emagrecer.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Mesmo quando escrevo literatura, preciso estar acompanhada.
Busco livros que eu gosto. Leio e escrevo. Nunca fico apenas na escrita. Posso estar somente com a leitura. Nunca em companhia exclusiva da escrita.
E ela, a escrita, às vezes se impõe.
Chega uma hora em que voltamos a escrever.
Seja por uma cena, um afeto, uma carta, uma dor, um filme ou apenas uma desculpa qualquer que reconheça que a letra insiste. Que ela quase se escreve, como quem preza a solidão.
Isso serve também para textos acadêmicos.
Eles, os textos, nunca me decepcionam. Uma hora eles sempre aparecem.
Embora na academia a demanda facilite a existência do texto.
Principalmente quando o assunto é encomendado.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Olha… quanto às travas…eu sempre confio no santo!
Sou uma mulher de fé!
Procrastinação também pouco me pega pois sinto que estou sempre atrasada.
Isso mesmo quando eu tinha tempo.
O relógio sempre está a cinco minutos do meu prazo final.
Sempre cinco-para-o-meio-dia. Meio-dia é a hora a clareza. Eu estou sempre quase-lá.
O medo é companheiro de toda escrita. Tendo a pensar, negando-me a realidade, que o texto se manterá comigo. Quando flagro o meu livro na mão de um estranho ou quando recebo uma mensagem de um desconhecido (ou conhecido) trazendo movimento ao meu texto com sua leitura, sou tomada por uma ternura sem fim.
Fico quase-envergonhada.
Dificilmente alguém aparece exclusivamente para te criticar. No sentido maldoso e destrutivo da crítica. Essas ficam mais restritas aos bastidores. E eu não me interesso por eles.
Quantas vezes vocêrevisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Infinitas vezes.
Fora o hábito de me ler em voz alta. Gosto da melodia, da sonoridade das palavras.
Outra opção é pedir que me leiam em voz alta quando estou revisando.
Meu marido (acho estranho falar “marido”, me soa antiquado… mas as outras opções me caem ainda pior. “Namorado” parece infantil, “Companheiro” parece uma militância, “esposo” é simplesmente terrível! Enfim… ainda fico com “marido”).
Voltando…
Meu marido é o mais convocado nesta tarefa. Adoro me ouvir pela voz dele. Diante de outras pausas e entonações.
Peço, também, para alguns amigos.
E, fora eles, peço para pessoas que eu respeito intelectualmente. Já cheguei a mandar textos em produção para autores que eu sequer conhecia, mas conversava com alguma produção já desenvolvida por eles. Ou até autores literários que haviam me ajudado sem terem a mínima ideia. Acho graça quando um entra na tangencia da vida do outro e sequer imagina que o seu gesto (ou sua escrita) foi determinante para um retorno.
Alguns me responderam.
Outros não.
Com os que me responderam a continuidade foi maravilhosa.
No que me concerne.
(são essas as vantagens do facebook, por exemplo. Essas pequenas-grandes-trocas. Esses contatos improváveis.)
Com os que não responderam reconheço que já fui inconveniente.
Digamos que sou insistente.
Acredito que ainda não viram a que não querem dialogar.
Resquícios da (falta de) castração.
Como é a sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Péssima.
Para você ter uma ideia tive que reescrever todas as tuas perguntas no word porque não consegui preencher o formulário que você me mandou e sequer copiar-e-colar as perguntas.
Tenho uma certa antipatia pela tecnologia.
Acho que perdemos muito do “tempo para compreender”, diria numa conversa com Lacan.
O artesanal do convívio e da escrita dão margens para outros movimentos, muito mais ligados à imagem do que à manutenção do simbólico.
O próprio facebook, por exemplo, onde estou publicando esta entrevista, me é completamente ambíguo atualmente. Aquilo que eu atestei linhas acima como bons encontros acabou se tornando um portfolio pessoal. E quando o gesto não gera movimento ele pouco me interessa.
Movimento melhor compreendido caso analisarmos à família semântica do alemão ruhr, destacado por Jean-Luc Nancy. Trata-se de um movimento não vinculado exclusivamente ao deslocamento, mas ao afeto. Àquilo que age e reage entre seres que compartilham o tempo. Uma intimidade pela proximidade de um toque que recorda a distância entre um e outro necessária ao encontro. Um movimento, poderia dizer, rítmico. Ou ainda, desencadeado, como numa dança, por uma sequencia… afinal, a dança não é composta por passos, mas sim por entre um passo e outro criado pela melodia.
Ao encontro que, em sua melhor forma, é, também, desencontrado.
Desses esbarrões que nos tiram o fôlego. Veja, “de tirar o fôlego” é uma expressão habitualmente revestida por um oximoro. Sem fôlego somos imersos no movimento que, contrário à ideia da vida a inflar ar – dando fôlego – insufla-nos de vida perdendo, então, o ar.
De onde vêem suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Sei lá.
Se eu soubesse certamente viveria lá, onde minhas ideias estão.
Não cultivo hábito nenhum.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Diria “não devemos renegar amores antigos”.
Hoje sou muito mais crítica.
Tanto no amor, como no texto.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ainda não existe?
Meu maior projeto, atualmente, é voltar a dançar.
Atividade vital que foi significativamente comprometida pela minha maternidade.
Quanto aos livros… ainda me ocupo dos tantos que eu gostaria de ler e existem.
Uma pena já ser cinco-para-o-meio-dia.
Queria ter mais tempo.
O tempo, lógico!