Lucas Matos é ator, poeta, e professor de Língua e Literatura do CAp-UERJ.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
A minha rotina foi bastante alterada a partir de 2015, quando passei a ser professor efetivo de um colégio público, curiosamente onde me formei, o CAp-UERJ. Em função dos horários das aulas, do tempo envolvido em pesquisa, preparação de materiais, etc. sobra pouco espaço para um número grande de outras atividades. De 2016 para cá, essa situação se complicou em função de compromissos com tarefas administrativas que assumi. Desde então, assumi uma assessoria na Direção dessa Unidade Acadêmica da UERJ, a chefia departamental, entre outras responsabilidades. Começo dizendo isso porque a minha rotina hoje é: acordar por volta das 05h30m, me arrumar e sair para o trabalho. Regularmente, trabalho das 07h às 17h10m, pelo menos. Ocasionalmente, folgo em alguns turnos. É um contexto muito específico, e, diante do qual, não consegui fixar nenhum tipo de rotina de escrita. Pelo contrário: a pergunta que se coloca diariamente, para mim, é: como continuar escrevendo diante desta rotina? Com tanto trabalho complexo e delicado envolvido em participar e pensar uma escola – assim como pensar universidade e ensino públicos – trabalho que em muitos aspectos se dissociou historicamente do que é um fazer artístico, como continuar se pensando e propondo como artista e poeta? Não sei se tenho uma boa resposta. Percebo que acabo estabelecendo dinâmicas mais sazonais: tem os momentos que o trabalho consome mais (fechamento de notas, apresentação de trabalhos em eventos, aulas sobre uma matéria que preciso rever e replanejar minha abordagem) – são períodos em que escrevo menos, ou vou acumulando pequenas ideias cuja realização vou postergando – e tem momentos em que a dinâmica do trabalho se torna mais espaçada e consigo mais tempo para criar. Daí, meio que intuitivamente passei a escrever a partir de projetos – é um livro, é um disco, é algum elemento maior que estou construindo aos quais me dedico mais ou menos de acordo com o tempo que consigo furtar à rotina.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Em qualquer aspecto, sinto que opero melhor de manhã. Em especial se tive uma noite de sono razoável, acordo disposto no sentido de capacidade para concentração e atenção. Na maioria dos dias, acordo alegre, então, leitura e escrita, para mim, combinam com momentos diurnos. A noite, para mim, ou se destina a alguma atividade que exija maior engajamento físico, ou ao lazer e ao descanso pura e simplesmente. Quando trabalho com teatro, prefiro os ensaios noturnos, talvez por hábito. Estive durante 10 anos, de 2002 a 2012, numa Cia Teatral chamada Nosconosco e nossos ensaios iam de 18h a 22h mais ou menos. Quanto à escrita, não tenho ritual de preparação, ou nada parecido. Tenho algumas preferências: escrevo a mão, quase sempre a lápis, em cadernos diversos, depois passo para o computador, e vou fazendo alterações. Prefiro lápis mais macios, de 2B em diante, gosto de lápis com pontas afiadas.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não escrevo todos os dias, como disse acima. Todas as vezes em que tentei me colocar metas, não cumpri os prazos, de modo que me parece uma dinâmica com pouco sentido.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Se me permite, acho as perguntas curiosas, porque não tomo notas nem penso em termos de “pesquisa”. Começo com alguns materiais que me interessam. São frases em que estou pensando, ou pequenas narrativas. Às vezes passo bastante tempo pensando nelas antes de anotar/escrever de fato. Os temas vêm a partir desse interesse, desses materiais, desses pequenos projetos de verso, e não o contrário. Também não trabalho de um modo sistemático ou a partir de um método – que me parecem elementos envolvidos numa pesquisa. Eu procuro, sim, estudar a partir de algumas práticas. Quando me deparo com uma poesia que me impressiona, faço várias cópias do poema alterando algum detalhe ou não alterando nada. Ou então, procuro encontrar um modo de dizer em voz alta um poema. Também estudo outros artistas e seus “modos de dizer” um poema, ou “modos de cantar” uma canção. Ouço várias vezes, repito igual, repito diferente. Tendo a pensar nisso, de modo geral, como estudos de ritmo. Tento também me manter sempre atento a alterações sintáticas, construções diversas na fala e na escrita que introduzem algum tipo de fraseado novo no mundo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Tento respeitar o tempo de cada coisa. Acho que procrastinar é um elemento essencial da escrita. Mesmo num processo de escrever algo, às vezes acho necessário estabelecer intervalos em que fico fazendo nada, e fazer nada muitas vezes é o melhor que você pode fazer. Quando escrevo até me sentir esgotado, costumo fazer uma pausa para um cochilo. Cochilar é fundamental em certos momentos. Normalmente, fico mais ansioso depois que considero algo pronto, até ver o livro publicado, ou depois que ele foi publicado, tentando entender possíveis respostas, retornos. Para mim, o processo criativo, em si, é composto de momentos de alegria e espanto. Então, mesmo quando estou trabalhando em algo mais longo, ou quando não estou satisfeito com um poema, ou quando há elementos angustiantes em torno do que estou elaborando, penso em procurar um acordo entre o meu tempo e o tempo da realização. É tipo assim: faço dramas, mas não dramatizo o que faço.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não tem um número de vezes pré-fixado. Reviso até sentir que não consigo mais alterá-los, ou que não há razões, não faz diferença. Já fiz revisões ao lado da Isadora Travassos, na 7Letras, logo antes de enviar o livro para a gráfica, porque às vezes a formatação coloca novas questões que você não tinha antecipado. Às vezes faço alterações ao reler, ainda no caderno antes de passar para um arquivo digital. Na passagem, quase sempre mudo alguma coisa. Por fim, depois imprimo e vou trabalhando novas mudanças. Tenho hábito de mostrar o trabalho para outros amigos, artistas com quem já fiz algo em parceria. O Thiago Gallego contribuiu muito nas últimas versões do meu primeiro livro (“Três semblantes”, pela 7Letras). Além dele, sempre mostro o que estou fazendo pros parceiros da “Bliss não tem bis”: Marcio Junqueira e Clarissa Freitas. A “Bliss” é um coletivo de que participo e que, por mais que não estejamos trabalhando em algo imediato no momento, nunca deixa de ser minha referência básica, primeira, na poesia. Não à toa, tenho até uma tatuagem com o nome/logo de nossa primeira revista publicada em 2009. E mais recentemente também divido o que estou escrevendo com o Rafael Zacca, a Ana Carolina Assis, o Lucas van Hombeeck. Acho que o olhar do outro é importante para esclarecer elementos do que você está tentando elaborar. Em especial, quando você consegue uma relação de troca sobre a criação de cada um em que se reconhece uma confiança minimamente recíproca.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho uma relação de estranhamento com os atuais avanços tecnológicos. O celular que uso hoje foi presente da Adriana Freitas, uma amiga que ficou impaciente com minha recusa em adquirir um novo aparelho após perder o meu durante um carnaval. Ela logo depois de me dar o celular criou uma conta de instagram para mim que eu uso e que até me diverte até hoje. Mas dispositivos tecnológicos podem me entediar ou me exasperar com alguma facilidade. Uso o computador de modo bastante banal, principalmente. Gosto mesmo é do acesso ao material que a internet proporciona em termos de vídeos, músicas e textos. Agora, não costumo integrar de modo profundo esses avanços tecnológicos ao que faço. Como disse, escrevo a mão primeiro, só depois passo para um arquivo no computador. (Mas papel, caderno, lápis, caneta, etc. tudo isso também é tecnologia). Gosto de propostas de reflexão que aproximam a escrita de uma prática física concreta. Por isso, em outro aspecto, penso que o fato de usar essas tecnologias em algum momento da minha escrita já tenha estabelecido diferenças e influências. O que estou querendo dizer é que passar as coisas do caderno ao computador também é um momento em que estou escrevendo e que isso altera superficialmente o texto pelo menos. (Relendo, penso que posso estar invertendo o que é profundidade e o que é superfície, mas vai como está). Olha, eu gostei muito de poder recuperar a prática do desenho quando fui publicar livros. Foi assim: fiz as duas capas dos livros que publiquei, e no mais recente, “1989” (7Letras), também fiz desenhos para demarcar as passagens de uma parte do livro à outra. Em cada caso, foi um processo de investigação – no primeiro livro, usei lápis de cor aquarelável e fiz uma série de desenhos com, digamos, o mesmo estilo (nem todos utilizei, mas um deles passou a ser a capa do “Três semblantes”, uns outros distribuí no lançamento); no segundo, usei canetinhas hidrocor e demorei até encontrar o “estilo” que queria. Nas duas situações, escolhi o papel que ia usar com calma e tirei dias para ficar desenhando, escutando música, até encontrar o que queria. No caso, é uma questão curiosa pensar se a digitalização dessas imagens também são uma etapa do gesto de desenhar. De qualquer forma, escrever e desenhar são gestos, e gestos diferentes, para mim, se você começa com um material como o lápis ou com outro como a canetinha, ou com outro como o celular, ou o computador etc. Recentemente, comecei a compor despretensiosamente algumas canções. Cantar também é um gesto, mas aqui passo ao registro assim que consigo estabelecer um padrão claro pro texto cancional. É algo que acontece mais rápido e com menos alterações entre um momento e outro do que na escrita de poemas. Nesse caso, registro no gravador de voz do celular que minha amiga deu.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Não sei se ideias têm um lugar de origem, por assim dizer, uma fonte de onde jorram. Acho que elas circulam, e que passam de um modo de circulação para outro, como se mudassem de circuito. Além dos estudos que já mencionei, e que penso que fazem parte da atividade de qualquer artista como prática, não mantenho hábitos com a intenção de disciplinar minha criatividade/ minha criação. De um modo geral, gosto da palavra “inspiração” no seu sentido concreto, da passagem do ar até os pulmões. Existem, é verdade, várias práticas para disciplinar a “inspiração”, as mais próximas e as mais distantes da meditação. Penso que “inspiração” envolve sempre um conjunto de relações entre o seu corpo e o mundo, de que modo você recebe, capta ou captura o que está ao seu redor. Aí, valorizo a observação: procuro manter a escuta aberta em meu cotidiano, manter uma atenção ainda que flutuante pro mundo, pro que se apresentar.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu diria que perdi o medo de trabalhar com alguns elementos que me interessam – som, voz, canção – e que me livrei de alguma insegurança diante da escrita. Acho que eu diria para não me preocupar tanto, para fazer minhas escolhas com tranquilidade. No fundo, fazer escolhas é uma alegria a partir do momento em que a gente deixa de pensar que existe em algum lugar ou em algum outro o que nos dará garantias de estarmos num caminho bom/ certo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto que mais quero fazer e que começou a engatinhar, mas ainda preciso definir parcerias e construir com o tempo é o de fazer um “disco” de poemas e canções. Não sei, a segunda parte é uma pergunta difícil – acho que me interessaria por ler/ouvir obras que partam de ou que dialoguem com perspectivas não humanas. Gosto muito das cenas em que a Laurie Anderson, no filme “Heart of a dog” (“Coração de cachorro” na tradução), aparece fazendo shows para os cachorros. Acho que gostaria de ler livros escritos para ou por felinos extraterrestres, talvez.