Luana Muniz é formada em Letras e especialista em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu tenho um problema crônico pra dormir. A insônia é uma visita inesperada que bate campainha num domingo de manhã, sabe? Você atende desagradado, amargoso, ciente que não pode fingir de égua ou os vizinhos vão te delatar. A despeito disso, não sou competente em operar rotinas. Eu acordo (ou só levanto), penso um pouco na morte da bezerra (qualquer bezerra) e tomo um café. Preto, encorpado, coado no pano, mineiro. Café é o tipo de combustível que considero improrrogável. Só depois desse protocolo eu começo a racionalizar o dia mesmo. Não dá certo, é óbvio.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
As manhãs têm mais frescor, eu acho. Dá pra produzir num fluxo, parece vicejante, a vida é mais branda. No entanto, as madrugadas são legitimamente repletas de uma energia não sei qual, que faz a gente bater palma pro pecado. Gosto da sensação meditativa que elas causam. É a calefação de um túnel apertado e, de certo modo, me induz ao movimento.
Eu sempre escrevo com maior generosidade quando estou lendo, não importa bem a hora. Me parece uma matéria primal, não sei. Tipo quando a gente bota água no feijão pra ver se ele rende. Ritualizo tudo que existe, é bem verdade, mas não sei reconhecer o modus operandi. Acredito que depende demais do dia, do humor, da ontologia íntima, da minha condição psíquica, da flora intestinal, do prazer dionisíaco do momento.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu escrevo todo dia. Nem sempre é poético. Sendo franca, quase nunca é. Pelo menos não consigo divisar onde começa essa dobra e quando termina a outra. Às vezes é uma lista supérflua de filmes que ainda não vi. Às vezes é uma safadeza qualquer que me ocorre (são muitas). Às vezes é uma piada descabida que ninguém poderia ler, mas vou mostrar mesmo assim por pura malcriação. Tenho um histórico jônico em não conseguir me concentrar. Não termino nem curso de tricô online. Escrevo uns negócios soltos, ocasionalmente desleixada e elétrica, e, como diz minha avó, “morreu bahia”. Falta de meta também vira meta e pode ser um ato bem-sucedido.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Em termos de técnica, há sempre o momento em que a palavra ganha uma nova dimensão para mim, uma nova plasticidade. Quando a linguagem, as notas, as listas fúteis adquirem corpo. É coisa de escritor isso?
Não sei sentar e escrever, assim zen budista, eunuca, meditando no alto de uma colina no Sri Lanka. Nem mesmo quando escrevia academicamente meus ensaios e artigos e mananciais teóricos todos. Fica alojado. Eu sou uma anotadora de coisinha à toa só. Anoto tudo que me abrasa, enternece, irrita. Digo, quando se trata de lirismo, no caso.
De modo geral, é difícil pra dedéu começar. Igual morder uma coxinha, sedenta do frango, e acabar mastigando um punhado de massa fria e insossa. Eu miro no recheio, é claro, não sou boba. Mas até chegar nele – no caroço ruidoso – passo bastante aperto. Quando eu era graduanda na faculdade de Letras, e precisava pesquisar, autorreferendar, criticar, recolher corpora, excerto, etc; a escrita tinha um outro tom. Adequar meu jeito de escrever a esse tom também foi custoso, porque a paleta era mais terrosa. No começo, tentei melhorar o critério, regular mesmo, muito autocentrada, business woman. Depois fui aparando as arestas. Era um exercício meio aborrecido pra mim, mas saia eficiente. Saia a contento, saia organizadinho, de deixar o velho Antonio Candido feliz como o diabo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu não lido. Às vezes prefiro só gargalhar num descomunal. Não tenho um compromisso fiel com a escrita, digamos assim. Dei uns pegas nela num carnaval passado que sempre vem à tona. A escrita sabia que eu vivia uma relação estável e poligâmica com a rebeldia. Meus amassos na ficção são outros quinhentos, sabe? Passo por longos períodos de hiato e igualmente longos períodos de efervescência. Procrastino por prazer. As expectativas que existem, se existem, são minhas. Minha autocrítica é impiedosa. Tem dia que resolvo ir ao inferno passear e volto de lá com donuts e poemas eróticos. Os temas dos meus textos são assim particulares. No panteão tradicional literário, onde homens seguram o maldito cetro, questões sobre sexualidade, prazer e busca da identidade feminina ainda são coisas de torcer o nariz. Parece só metáfora triste, não é? Antes fosse.
Sucintamente, quando escrevo ficção (se escrevo) são novelinhas bem histéricas, cheias de ruído e sombra e insanidades. Raramente gosto deles. Eu não gosto do que escrevo. Deve ser por isso que escrevo. Pra corromper o que amo, talvez por amor (veja bem que perigo).
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Mais vezes do que Napoleão chorou no dia da Batalha de Waterloo (risos). Como eu disse antes, sou muito criteriosa com o que produzo. Deve ser achaque de estudante de literatura. Esse é o único momento de todo o processo de escrita em que eu encarno o self da mulher sisuda e compenetrada no trabalho. Revisar, em minha opinião, é repaginar. Minha preocupação básica não é nem as questões de crivo gramatical ou linguístico. Eu reviso o conteúdo, os tópicos, os ritmos, a potência. Leio todos os textos em voz alta e se faltar pujança, ou humor, ou blasfêmia (os temas sagrados são caros à minha pessoa, com o perdão do cristo), eu mudo toda a lógica e a sintaxe.
A maioria dos poemas e textos eu posto nas minhas redes sociais. Entretanto, confesso que alguns deles representam uma lambança moral muito grande, de modo que prefiro guardá-los como armas. A gente sempre tem um baú trancado onde coloca as velharias, eu acho. Oxalá um dia serão velharias que virarão pedras preciosas póstumas (risos).
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu tenho uma vida virtual bem dinâmica, sendo honesta. Meus perfis nas plataformas digitais são tremendamente ativos, porque quando uma mulher bota suas experiências em palavras e outra mulher lê/escuta/se identifica, então AS DUAS mulheres perdem algum medo. Falo sempre pelas mulheres na internet. É das mulheres o pódio hegemônico e as mulheres o mantém. A maioria dos meus compartilhamentos e posts são feitos por e para mulheres. Não é mero acaso. É a minha forma de nos valorizar cotidianamente, de colocá-las (nós todas) como referência intelectual e afetiva, principalmente quando o coletivo é hostil à nossa vida e reprime nossa liberdade.
A marca poderosa do feminino aparece em todos os meus textos, sejam eles poéticos, sejam jocosos, sejam políticos.
Escrevo demais à mão. Só depois de muito rabisco eu passo pro computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Não sei administrar minha criatividade. Ela se retroalimenta de muita coisa até banal. Até hoje eu só me lembro de ter escrito poesia erótica ou predominantemente cabalística, se é que posso denominá-la assim. Vai ver é autorreferencial, memorialístico no que há de mais inconsciente, vai ver é narcísico. Bebi muito na fonte dos eróticos, Hilda Hilst, Adélia Prado, Gilka Machado, Anaïs Nin, Marquês de Sade, Bataille e tantos outros incontáveis amigos contemporâneos. Estive me avizinhando da questão desde cedo. Lendo. Buscando. O sexo é um assunto açucarado e absurdo pra um mundaréu de gente. Falar dele me faz rir gostosamente, me faz costurar bonequinhos de vodu, me faz botar a mão melada nas coisas. Atrelar o sexo ao divino, então, deixa todos embasbacados. Acho que escolhi esse tema justamente porque o manual de etiqueta dizia que eu não podia falar dele em voz alta. Estou farta de sumidouros, de silêncios e de animais domados. Quando dizem “você não pode”, aí é que eu faço mesmo, com a boca boa e com delícia redobrada, definitivamente desvelada em chutar a porta da negação. Esse é meu (péssimo) hábito vital que garante que eu registre meus pensamentos e me versatilize pra caber na poesia.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu era mais docinha, não nego. Tinha outro espírito que não esse, falava de temas mais vulgares, era a mocinha do tempo dos telejornais: lisura, pureza e virtudes inalienáveis. Escrevia bastante sobre o amor romântico, bem saquinho de jujuba. Ao longo dos anos a imoralidade entrou na minha vida e nunca mais saiu. Acredito que toda pessoa vivencie uma certa maturidade literária, quando a gente escreve mais ajuizadamente, tomando notas, ponderando a linguagem. Faz parte do exercício estético e sinto que a faculdade de Letras ajudou muito a sublimar esse aspecto. Mas não foram só os motes que se converteram. Alberguei muitos vícios, quis transgredir a linearidade das coisas. Acerquei-me de nuances mais memorialísticas, do fluxo de pensamento, da montagem, do empilhamento das frases. Antigamente, eu fazia associações mais leves entre o amor e o sexo, mas a medida que meus estudos sobre o Sagrado foram se aprofundando, me pus a testar uma poesia mais “herética”, mais litúrgica. Quando dei por mim estava escrevendo literalmente sobre Deus.
Se fosse para retroceder no tempo, a única coisa que eu diria para a Luana daquele período seria: “você se venceu e está de parabéns”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu ainda não terminei o projeto do meu livro, então é um “começado-mal-feito”. Preciso demais me compenetrar nessa proposta, pois já protelei demais o urgente e desconfiei igualmente dele.
Sobre o livro que eu gostaria de ler e ainda não existe, serei, com a vossa permissão, despudoradamente pretensiosa: o meu.