Luana Chnaiderman é professora de português escritora, autora de Minhocas (Cosac & Naify), Fuga (FTD) e Os animais domésticos e outras receitas (Perspectiva).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu gosto muito de ter uma rotina matinal, mas eu a tenho sempre que consigo, e como isso não é sempre, não sei se posso chamá-la de rotina.
Mas tenho uma cachorrinha, a Pipa, que me ajuda muito na manutenção dos ritmos do dia. Então eu acordo cedo. Gosto de acordar junto ao amanhecer do dia, no verão antes das sete, quando esfria, por volta das sete. Gosto do começo do dia, e gostaria de escrever que gosto do silêncio e do ar fresco da manhã, mas é mentira porque ao lado da minha casa tem uma escola chique na qual os alunos entram cedo e são levados de carro e forma-se uma fila de pais e mães motoristas de famílias impacientes e barulhentas, às vezes sai briga e as pessoas se xingam e buzinam umas para as outras e há também agora uma construção ao lado, caminhões e poeira, então bem cedo já há barulhos de britadeiras e furadeiras e buzinas e caminhões, então não existe o ar puro ou silêncio da manhã mais matinal dos primeiros raios de sol nem nada disso. Ainda assim, na minha existência um dia bom começa com acordar cedo, arrumar a cama, varrer a casa (no dia ótimo inclusive não há nenhuma louça na pia e a casa está arrumada), sair para andar com a Pipa, sentar e escrever por meia hora, à mão, minha letra corrida, a caneta preta e as páginas beges e sem linha, muito finas, do meu caderno de escrita.
Depois tomar um café da manhã lento, que eu mesma preparo. Com mamão papaia, sementes ótimas para mim como linhaça girassol e outras cujos nomes esqueci, queijo branco e ovos mexidos de galinhas felizes que não sofreram presas em granjas horríveis, café preto sem açúcar, um pouco fraco e muito quente.
Depois, só depois, olho os compromissos, o e-mail, as redes sociais, o banho, a roupa do dia. E então o dia estraga um pouco, porque vêm as preocupações. Bem piores que as britadeiras e furadeiras e os caminhões que talvez eu já tenha xingado bastante. Mas isso vem bem depois, porque na manhã ideal por aí já são dez da manhã, e a casa está limpa, a cachorra me levou para andar e eu já escrevi, além da cama arrumada, perfumada – talvez no passeio com a cachorra eu tenha até comprado flores – os lençóis estendidos e as almofadas jogadas por cima da colcha, que nem na novela.
Mas eu gosto de pensar a primeira parte da manhã, das sete às dez, por exemplo, como um momento meu para mim, de cuidado e limpeza. Então cuidar da casa, caminhar com a cachorra, arrumar a cama, cuidar daquilo que eu como e escrever fazem parte desse cuidado. Escrever é mais uma parte dessas tarefas, está junto com essa espécie de rotina matinal ideal, que eu cumpro quando dá. Varrer a casa, arrumar a cama, andar com a cachorra, escrever. Sem hierarquia de importância, são coisas que eu faço porque eu gosto de fazer e estabelecer essa ordem e essa rotina me ajudou muito porque eu não preciso ficar nem pensando nem sentindo o que é que eu quero fazer. São passos do acordar que eu cumpro, compromissos, comigo. Desses fazeres matinais o único que não posso deixar de cumprir é o de passear com a cachorra, porque ela não pode passear sozinha, então esse é o garantido, mas é legal e me faz bem saber que há essa rotina boa para mim com etapas pré-estabelecidas e que é legal quando eu vou e cumpro.
Essa escrita da parte da manhã é uma escrita obrigatória e desobrigada. A obrigação é que ela dure trinta minutos. A desobrigação é que ela pode ser sobre qualquer coisa. Eu coloco um timer, e do momento em que o timer começa até o alarme tocar eu fico escrevendo, não importa o que seja, sem interrupções. Eu escrevo num caderno bege e sem linhas, que eu demorei para encontrar e é caro, mas eu gasto dinheiro nele porque eu fiquei achando que esse é o meu caderno ideal e é muito gostoso escrever nele. Também escrevo com caneta preta, e gosto de ver a minha letra preenchendo as páginas do caderno, gosto da minha letra e de como as linhas ficam retas, e gosto do ato físico de escrever. Tanto à mão quanto no computador. Digito rápido e gosto do som que meus dedos fazem quando tocam as teclas, assim como amava escutar o som dos dedos da minha mãe, do meu pai e do meu avô nas teclas da máquina de escrever. Era um estalado quase tão bom como o trote do cavalo no chão. Um som da minha infância. Essa parte sensorial da escrita, eu gosto bastante. Essa escrita de meia hora, antes do dia começar, é a mão, em folhas sem linhas, o caderno leve e pequeno, sem figuras na capa. Anoto a data e vou. Meia hora é um tempo ótimo porque é um tempo possível e um tempo que termina, tem começo e fim. É um tempo sem desculpas. Porque antes, quando eu não marcava um tempo de escrita no diário, eu ficava angustiada: será que tinha escrito o suficiente? Quando se para de escrever? Será que já tá bom? Já posso checar nas redes quantos curtiram o fato deu ter comido macarrão ao pesto ontem? E se não houver o que contar? Continuo escrevendo? E se já deu? Marcar o tempo me ajudou muito. Trinta minutos não é um tempo que vai me impedir de fazer nada na vida, não é um tempo que cria ansiedade ou obrigatoriedade de, por exemplo, criar uma história incrível, mas é tempo suficiente para algumas páginas diárias de relato daquilo que eu estiver precisando relatar. Não é literatura, não é a construção de uma grande obra universal, não é nada disso, nem treino eu diria que é; é simplesmente escrita, e faz parte dessa concentração na casa, no corpo, na arrumação e limpeza, do cuidado que eu gostaria de ter comigo mesma diariamente, de um tempo meu. Depois eu vou para o mundo, preparo aulas, banco, ginástica, o que quer que seja, mas o ideal são umas três horas somente minhas para começar o dia. Quando isso acontece, o dia já foi ganho.
Mas tem dias em que isso não dá, e há épocas em que eu simplesmente não consigo escrever. Então eu não escrevo. Nem varro a casa, nem lavo a louça. Também não guardo as roupas de volta no armário. Não arrumo a cama e nem penso em comprar flores. E tudo fica muito bagunçado. A Pipa, ainda bem, sempre me leva para passear. Mesmo nessas fases.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu tenho certeza que escrevo melhor pelas manhãs, bem de manhãzinha. À tarde com todo o dia já passado por mim e em mim fica mais difícil escrever, mas como toda certeza, essa também pode ser colocada em dúvida. Eu gosto de escrever muito cedo de manhã porque eu tenho mais facilidade de concentração, a tarde me parece melhor para revisão, releitura. Acho que escrever demanda sobretudo foco e concentração, não ficar abrindo e-mail checando celular, conversando, não sair para comprar o detergente ou o papel higiênico que está faltando, não ligar a tevê nem ver aquele vídeo que mandaram, e a parte do dia em que eu mais consigo isso é pela manhã. Mas há também alguma superstição nisso tudo, e também não há nada como um prazo ou um compromisso externo que me obrigue a terminar aquilo que eu preciso fazer, seja a hora que for.
Eu li uma biografia extraordinária do Graciliano Ramos, chamada O Velho Graça, um livro extraordinário que eu recomendo muito. E o Graciliano Ramos tinha um monte de filhos, trabalhava à beça, militava e ainda chegava à noite, depois da vida inteira e do mundo inteiro, e escrevia.
Então ao ler aquilo fiquei bem mexida, porque minha vida ideal de escritora de livros é no sítio, cercada por pássaros e verde, em silêncio com uma vista inteira na minha frente e o Leo (meu companheiro) e a Pipa (minha cachorra) ao lado, mas inclusive em silêncio bem pelas manhãs. Eu tenho a sorte de ter conquistado a possibilidade dessa vida duas vezes ao ano, nas férias, com o Leo, em períodos de longa duração e também vamos ao sítio sempre, durante o ano, pelo menos quinzenalmente. Então é no sítio que nascem os livros. Porque no sítio há sobretudo muito tempo, e no sítio o tempo ganha uma qualidade diferente daquela da cidade e do dia a dia. Demora uns dias, inclusive, para a adaptação à vida no sítio, porque há uma angústia até da falta do que fazer, entre caminhadas e caminhadas e pratos que a gente cozinha. Então lemos, lemos muito. E escrevemos. É ali que nascem os livros. Em meio ao tédio, ao tempo, à manhã inteira na rede, ao vento, debaixo do sol, picando legumes olhando as nuvens e os bois. Com muitos dias e horas umas depois das outras.
Então me fez muito bem ler a biografia do Graciliano, porque, entre outras coisas, está ali aquele escritor sem o sítio, a paisagem, o silêncio, o tempo, o sei lá o quê das musas ideais, que sentava, escrevia porque sim, porque era isso que tinha que ser feito, como um dever de ofício nas condições que se tem, fazendo o que se pode, com convicção naquilo que se acredita.
Mas há o sítio na minha vida, e há uma construção da vida, que eu e o Leo fizemos juntos, de possibilidade desse sítio, e esse é o cenário idílico poético quase ideal da escrita, do recolhimento e do contato com a natureza e a solidão. Eu amo esse cenário. E amo estar lá. E fico verdadeiramente feliz quando a escrita flui e nas longas temporadas construímos uma rotina comprida e longa de trabalho. Mas já houve temporadas no sítio em que nenhum livro nasceu, e nada aconteceu. Mas é mais fácil acontecer lá.
A escrita diária, de trinta minutos, é a desobrigada, que não leva a lugar nenhum a não ser ela mesma, a cama que será desfeita logo mais à noite, a poeira da casa que volta no dia seguinte. A escrita do sítio pode ter um fim, pode ser um projeto, um livro, a resposta dessa entrevista. E aí geralmente ela é direto no computador também.
Eu gostaria de falar mais uma coisa: durante uma época tinha muita vergonha das coisinhas que eu gostava de ter ao escrever. Eu achava que tinha que escrever no caderno que houvesse a mão, com a caneta que houvesse, sem gastar com isso e sem frescuras de quando, onde e como. Entretanto, um dia, eu li alguém defendendo todos os rituais, da escrita e da vida, inclusive se forem mais caros, os cadernos de cinquenta reais ou a caneta de bico de pena. Porque são sim, por um lado, pura frescura e auto indulgências, afinal não é disso que se trata a escrita e a caneta especial não garante nada, mas por outro lado, do que se trata a escrita? Muito da vida é curtição, é preenchimento de tempo com qualidade de um jeito que se acha bacana. Então eu fiquei achando que achar uma louça bonita para o café, arrumar a mesa, ter flores na casa e passar batom ou esmalte nas unhas são, talvez, mimos, não são necessários nem nada, mas talvez na construção daquilo que a gente é e quer ser, do cuidado mesmo, de si e do outro, sejam elementos importantes. E a descoberta do caderno mais legal, com a cor das páginas mais bonita, que eu posso dobrar inteiro que as páginas não caem, em que não há mancha no verso, que posso carregar comigo na bolsa, não pesa, e são todos iguais sem desenhos nem firulas foi uma espécie de alegria, que se perpetua cada vez que um desses cadernos acaba e eu escrevo no seguinte o mês e o ano em que ele começou. Esse provavelmente é um caderno dos mais caros de São Paulo, mas se eu puder, vou comprá-lo sempre, porque eu fico feliz em escrever nele. É claro que a ausência do caderno não pode se tornar uma desculpa para a imobilidade, assim como provavelmente se não houvesse o sítio em minha vida, eu quero crer que escreveria livros também, mas se o sítio e o caderno ajudam e eu posso nesse momento tê-los, que bom que eu posso aproveitá-los.
O que eu quero dizer é que se a pessoa percebe que o melhor jeito para ela de escrita é escrever pelada com tudo escuro às três da manhã, que ela escreva, pelada com tudo escuro, às três da manhã. É muito legal quando a gente descobre o que faz bem para a gente e é muito difícil assumir isso e conquistar os espaços e os tempos necessários para isso.
A gente lê livros do século XIX ou mesmo do XX e há o espaço do escritório na casa, uma espécie de lugar inviolável, onde as crianças não entram, onde se bate na porta antes de entrar, a porta fechada, onde o homem podia ficar horas sem ser incomodado, fumando charuto ou fazendo o que fosse. Há muitos relatos da violação desse espaço, de uma criança que entra na biblioteca ou escritório do pai, e ali descobre livros, ou objetos, ou segredos. Um lugar para si. Um lugar absolutamente fascinante. É muito difícil achar nos espaços da vida um lugar para si, e um tempo para si.
A conquista desse espaço e desse tempo é uma luta. Diária. Para mulheres talvez mais, mas para homens também. Envolve muita negociação. E geralmente incompreensão também, de muita gente ao redor. É falar um monte de “nãos” para um monte de coisas. E falar um monte de sins para si próprio. E assumir seus desejos. E saber que a conquista desse tempo e desse espaço também não são, nem precisam ser, sinônimos de produtividade ou brilhantismo. Antes eu falava assim: gente, eu vou ficar vinte dias no sítio, de puras férias, mas vocês vão ver o livro que vai sair disso. Mas é mentira. Pode ser que saia um livro, pode ser que não. Mas eu digo sim a esses vinte dias no sítio de puras férias, ou sim para três horas no dia que sejam de cuidados exclusivos com aquilo que eu quiser. É importante a conquista de um espaço e um tempo que sejam todos seus, como diz a Virginia Woolf, no livro que leva justamente esse nome. Às vezes a batalha é por trinta minutos matinais, às vezes por vinte dias, ou três meses, não sei. Às vezes, quando se trata da escrita de uma tese ou de um livro, devem ser cinco, sete, dez horas diárias. Mas é sempre uma batalha, que envolve derrotas e disciplina. E negociação com todo mundo ao lado. Porque é muito estranho, ficar sozinho escrevendo ou não escrevendo, mas simplesmente bestando um tanto para ver se sai alguma coisa. Não é algo que se aceita com facilidade, mas é algo fundamental. Que não se interrompe, nem para a compra do último rolo do último papel higiênico, nem para o telefonema da mãe do pai, nem para decidir se precisa comprar manteiga ou azeite ou o que se vai fazer pro almoço. Não naquela meia hora. Se der. Nem sempre dá. Mas é bom que eu pelo menos saiba que, quando dá, o dia fica melhor, e com dias melhores a vida ganha mais sentido, então vale a pena batalhar por isso.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Então, há o diário, mas o diário talvez não conte aqui, porque a meta do diário é ela mesma, é a escrita em si, e não é algo que vá dar em livro, conto, romance, artigo, nada.
Quando eu escrevia em blog, durante um ano eu me coloquei uma meta muito legal, que foi a de escrever uma crônica por dia, e isso foi legal porque me afiou o olhar para a busca de assuntos e na escrita, como nos esportes, quanto mais se treina, melhor se fica. Mas a escrita dos livros de ficção que eu escrevi, cada um deles, é um processo muito único e tortuoso, e todos escreveram a si próprios muitas vezes e de maneiras muito diferentes, então é difícil contar mais que isso.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O Minhocas foi um livro que nasceu porque eu tinha uma coisa muito importante para contar. Eu queria escrever um livro contra o narcisismo da gripe. O narcisismo da gripe é quando você está com gripe e fica em casa sofrendo pensando na sua gripe e no seu nariz vermelho e entupido e na sua dor de cabeça e nos lenços de papel e fica pensando somente em si e às vezes, pelo menos comigo isso acontece, eu fico até meio encantada com o tamanho da minha gripe. Ou dos meus problemas, ou do meu sofrimento. E as minhocas, a gripe, os problemas ou os sofrimentos às vezes crescem por si mesmos e a gente fica se achando muito sofredor e único. E eu sabia que queria escrever um livro sobre isso, sobre as minhocas que a gente tem na cabeça, e que crescem por si mesmas. Eu tenho e tive uma coleção enorme de minhocas. Que depois que eu fiquei mais velha eu percebi que eram algumas fruto de pura besteira, outras que valia a pena eu ter contado e divido com alguém, e que todo mundo tinha minhocas, até a prima perfeita, e depois eu percebi que talvez se eu tivesse falado mais sobre elas, as minhocas ficariam menores, se eu tivesse saído mais para a rua, elas ficariam menores, percebi que quando a gente ajuda um amigo, por exemplo, as minhocas podem diminuir. Então eu queria escrever um livro sobre isso.
E a primeira parte do livro foi a criação desse personagem, com todas as suas minhocas, uma compilação de minhocas vividas por mim e roubadas de outras pessoas. Mas isso não era ainda suficiente, ele deveria viver uma aventura, então fui obrigada a escrever a parte dois e a parte três, para que o Carlos Alberto que já não era eu, pudesse ter uma história. Então o livro nasceu.
No Fuga, havia a vontade de escrever sobre a vontade de fugir. E de como isso é sério. E pode nascer de pavores profundos.
No livro de contos Os animais domésticos eu fiz uma espécie de roteiro externo de escrita, que é um esqueleto de fora que me orientava na escrita do próximo conto. Não obedeci esse roteiro nem esse plano, mas foi legal.
Porque antes o que eu escrevia tinha que nascer imediatamente de uma experiência, uma emoção, geralmente alguma coisa que tinha acontecido comigo. E foi legal quando eu comecei a me colocar exercícios de criação ou um caminho com limites que eu devia seguir. Ficou mais fácil.
Mas acho que cada livro tem a sua história, e é bonito pensar nas histórias por trás das histórias… é uma linha infinita, na qual há também algum mistério.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Uma vez eu estava escrevendo o meu mestrado e estava com aquela dificuldade em escrever. Nada saía, e assim por diante. E uma pessoa me perguntou: para quem você escreve? Quem é o leitor que se forma na sua cabeça quando você escreve? Às vezes pode ser um leitor tão exigente, duro e crítico que nada pode sair mesmo. A escrita fica impossível. Pode ser às vezes meu pai ou minha mãe, meu avô ou um professor que admiro muito, ou uma pessoa que eu nem conheço ou mesmo um leitor imaginado que vai ler o que eu escrevi e entrar em profunda decepção e desgosto. Se esse leitor (que sempre existe, mesmo agora, por exemplo, quando estou escrevendo essas respostas) for exigente demais, fica impossível escrever. Impossível.
Tem uma crônica, eu acho que é do Manuel Bandeira, sobre uma moça na janela que tem uma bela risada e ele gostaria de escrever uma crônica para essa moça na janela e gostaria que ela risse e gostaria de escrever uma crônica tão engraçada que todo mundo risse, e falasse, olha que engraçada essa crônica. Eu amo essa crônica, e gosto de escrever também para essa moça da janela. Mas há aquele leitor imaginário, ou real, que nunca vai rir de nada, e se a gente pensar muito nele, se for ele que nos acompanha, a gente pode ficar com vergonha até de querer escrever uma história com graça. Há leitores na minha cabeça que me acompanham na escrita que me fazem até dar um sorrisinho de tão legais que eles são, e outros completamente imobilizadores. Há também leitores imaginários exigentíssimos a quem eu escrevo para provar alguma coisa, “olha o que eu consigo, você vai ver só o que eu farei com esse substantivo”, seja por raiva, despeito, sei lá, aqueles para quem escrevo como uma vingança. Mas também há os leitores imaginários que nem querem saber de nada do que eu puder escrever porque afinal de contas eles nem tem muito tempo e olha só o tamanho da Ilíada e da Odisseia juntas.
Se esse leitor me pergunta para quê escrever, se me mostra tudo o que há de já escrito e tudo o que há por se ler, se fica me comparando e exigindo brilhantismo e sucesso, então é impossível começar. Se esse leitor é mais de boa e diz “tudo é passageiro, então vamos lá, vamos ver o que dá para fazer”… então vamos lá. E se eu lembro da piada que tudo é passageiro menos o cobrador e o motorista, então melhor ainda! Aí dá para escrever o que der para escrever. E a gente vai lá e escreve, uai.
Teve uma época também que eu achava que só dava para escrever se seu estivesse sofrendo muito. Mas disso também já me livrei. Ainda bem.
Então, na real, eu escrevi o meu mestrado à base de muito vinho e sempre em cima da hora, os prazos foram fundamentais, porque o prazo ajuda a cumprir aqueles velhos ditados como “a perfeição não é desse mundo”, “a inspiração tem que te pegar trabalhando”, “a gente faz o que dá”… etc.
Ninguém me paga para escrever nem nada, eu gosto então eu escrevo. Se algum dia eu não estiver gostando mais, eu paro de escrever, e pronto. Gostar de escrever não quer dizer que não há angústia envolvida ou que eu escrevo sempre que eu posso, mas é uma espécie de permissão, e passa por construir um leitor ou leitora mentais mais na boa, menos censores e mais acolhedores para aquilo que der para sair. Porque na verdade não é nada de mais. Mas, para alguns, talvez a história que eu tenho para contar faça sentido e, principalmente para mim, faz sentido contar essa história. Então eu conto. Outros não vão ter paciência nem para a segunda linha. Paciência.
A liberdade da escrita mesma, quando já se conquistou a liberdade de um tempo e um espaço todos seus, é uma luta diária também, que envolve disciplina e não ligar tanto, envolve fazer.
Eu amo disciplina, mas sou muito indisciplinada.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu quase nunca sinto que meus textos estão prontos. Eu fico muito feliz quando consigo escrever algo que vá além do diário, fico muito feliz quando consigo criar uma história de uma personagem, seja homem ou mulher, que não seja eu diretamente. Eu fico muito feliz quando consigo fingir um pouco, e fico muito feliz quando crio um trajeto de escrita a ser cumprido, seja porque tem um tanto de coisa que quero contar, seja porque me impus essa ou aquela tarefa. Eu fico muito feliz quando, por exemplo, capturo algum momento, ou sentimento, ou estado de espírito e consigo congelá-lo e a partir dele escrever uma cena ou momento ou pensamento ou frase que vai me obrigar a dar alguma continuidade a isso, e me levar para algum lugar que eu nem sei direito. Eu fico verdadeiramente feliz mesmo quando escrevo. Mas eu nunca sinto que eu terminei.
Mas há os prazos, então os concursos, por exemplo, servem para mim muito para isso. Nunca ganhei nenhum concurso. Nem edital, nem nada. Mas vivo me inscrevendo. Porque o prazo do concurso me obriga a imprimir o livro, ler e reler, fechar num título, num índice, contar as páginas, ver se fica em pé, como é que está. Às vezes o concurso obriga até alguns truques, inventar uma coisa a mais para dar o número de páginas, chamar de conto aquele texto que não era bem aquilo, sei lá. Mas é uma espécie de pontuação no tempo menos infinita que a escrita e a reescrita sem fim. Quando não há um editor nem prazo, o concurso é bom, ajuda a pontuar. E há também quando se chega à exaustão, quando eu chego a saber o texto de cor, frase por frase, e já não sei mais se tanta correção está melhorando ou atrapalhando. Mas eu faço uma espécie de regra que é “na dúvida, cortar”; porque se está talvez ruim para mim, certamente estará ruim para um leitor ou leitora que não sou eu e nem me conhece direito. Mas nem sempre eu sei se o corte era para melhor. Então eu vou salvando. Um dia digitei uma frase na busca e apareceram oitenta, oitenta arquivos com diferentes versões do Fuga. Nesses oitenta, talvez haja um bem melhor que o último, mas eu nem preocupo com isso, porque senão enlouqueço. Porque não há como saber. Porque o último fica sendo o último, o pronto, e pronto. E o último é o último que eu pude mexer antes de ir pra gráfica. Se me derem mais chance, eu mudo mais um pouco. Até dizerem chega. Nunca tá pronto. Não consigo nem reler o que já foi publicado, morro de aflição porque fico querendo melhorar. Mas ainda bem que já foi editado, aí é partir pra próxima, e pronto.
Eu gosto muito de mostrar para as outras pessoas o que eu escrevi, principalmente para o Leo, que é o meu primeiro leitor e diz aquilo que pensa e geralmente está certo naquilo que diz. Se ele não ficou convencido, eu me convenço que ainda não está convincente. Mas nem sempre a gente concorda também.
Depois eu aprendi com o Marcelino Freire que ler em voz alta seus próprios textos para um grupo de pessoas é muito legal e muito importante. Porque a voz alta não perdoa. Se tem alguma coisa fora de lugar, percebe-se na hora. A gente até corrige, enquanto lê. Isso para a prosa. Poema é diferente.
Então eu tenho um grupo, um grupo muito legal, que se tornou um grupo de amigos, mas que primeiramente era um grupo de gente que gosta de escrever, e quer escrever, e quer ler o que escreveu para os outros, e consegue ser ao mesmo tempo generoso e rigoroso nos comentários que faz para os textos dos outros. Então a gente se encontra toda semana quando dá, e lê o que produziu na semana, quando produziu. Muitas vezes ninguém escreveu nada, então a gente só come, bebe e conversa, mas quando há uma produção que pode ser compartilhada é muito bom. Muitas vezes eu fiquei sem voz de tão nervosa de ler uma coisa que eu escrevi, principalmente se eu estivesse achando que aquilo era bom. E sempre, ou quase sempre, o retorno do grupo faz muito bem ao texto.
Mas também não adianta mandar para trinta pessoas. E nem sempre as pessoas estão com tempo e espaço para ler um original seu. Então isso tem que ser feito com muita delicadeza e cuidado. Mas acho uma leitura externa muito importante.
O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu diria “ainda bem que você tomou todo aquele vinho e conseguiu terminar. Parabéns”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de ler todos os livros do mundo que me fizessem bem (sendo tristes ou não) e que eu pensasse, depois de terminar, “puxa, que legal, ainda bem que uma pessoa foi lá e escreveu esse livro”. Os que existem e os que ainda não existem.