Lu Ain-Zaila (Luciene) é escritora negra, afrofuturista, pedagoga.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Geralmente eu dou uma conferida nas minhas redes sociais para responder mensagens e notificações. E depois vejo como vai ser a minha manhã no caso da escrita de algum texto ou andamento de alguma pesquisa. Anoto meu andamento em agendas físicas, gosto de escrever, rabiscar, manter esta liberdade criativa.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu prefiro desenvolver minha escrita na madrugada onde o silêncio e a falta de interrupções me permite devanear mais sobre o que quero escrever. Não tenho um ritual específico, mas gosto de iniciar revendo a linha do tempo até o ponto que estou para entrar no clima, dar uma lida num trecho anterior e conferir minhas anotações de andamento pro momento. Daí começo a retórica comigo ou com meus personagens.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho uma meta de escrita, não funciona comigo. Eu desenvolvo sobre uma linha de pensamento, de pesquisa e isso vai criando a minha escrita. Se é um artigo tenho que desenvolver uma retórica de resposta ao meu argumento ou ideia apresentada. E se é um personagem, um andamento de livro preciso sentir que sei para onde vou, mas isso tem a sua porção de instinto, intuição, pois se você tem preguiça de ler 5x o que escreveu então está ruim, não serve, para e começa de novo, pois se perdeu em algum lugar.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Tem quem faz ficha, mas meu processo é meio psicografado, como se escrevesse uma carta, no caso de um personagem escrevo uma carta sobre ele, na primeira pessoa, então quem me escreve é ele, ela, me contando o que acontece, como é sua vida e as coisas vão se conectando. Mas no caso do Afrofuturismo eu preciso também desenvolver conceitos de pensamentos, compreender a transição que faço entre as informações, as leitura e a ficção. É algo que leva tempo para construir.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Geralmente eu vejo isso como um caminho errado que estou tomando. É onde entra o instinto de perceber que está amarrando errado as coisas, algo está escapando. Então é hora de parar um dia e ver um filme, tomar um sorvete de doer a sinusite e voltar no dia seguinte para rever as notas, recuar na escrita, apagar sem medo e começar de onde sente que desandou, pois nessas horas você deve contar com você e não com técnicas. É nessa hora que a gente desenvolve uma assinatura de escrita, quando entende porque insiste em escrever.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu leio várias vezes, faço desenhos tortinhos, notinhas, por isso a agenda é importante, pois tem horas que você precisa entrar na sua escrita pelo olhar do personagem, pensar se dali ele enxerga algo, como o tempo funciona, se dá para correr, como uma pista o alcança. Enfim, tem que mergulhar na sua escrita e ver desse ponto de vista. Se consigo isso então está dando certo. E no caso da minha escrita de ficção científica nem sempre apresento tudo a alguém, eu discuto uma ideia, a intenção daquela escrita, e nem sempre tem gente disponível, mas também não gosto de ocupar as pessoas, então deixo em aberto, gravo um audio e depois me responde. E eu sei que tem profissional crítico, mas não tive boas experiências e não tenho intenção de moldar minha escrita para o mercado que me exclui. Eu tenho opinião e elas estão aí, não recuo nelas e minha escrita está impregnada, e sendo assim, tudo funciona diferente da lógica comum.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu sempre estive ligada à tecnologia, na minha adolescência de tela verde e linguagem Pascal/Cobol que fazia os protetores de tela na marra usando DOS. Sou desta vertente de programação e sempre tive a tecnologia como uma ferramenta útil de conexão, mas ela me ensinou também a testar probabilidades, imaginar a maior loucura de um usuário, ter um pensamento sequencial, ver o menor que sustenta o amplo e já fiz uso destas experiências na minha escrita, olhar os detalhes para não perder o sentido. E gostar de tecnologia sempre me levou a não ter 100% de confiança nela, pois é ferramenta, hoje funciona e manhã não liga. Não tem um complô maior do universo, faz backup do seu material.
Em relação às redes sociais não sou de catalogar o meu dia, é normal e acho isso invasivo, gosto de dar um tempo. Já tentei, mas não tenho talento para programar postagens. É de mim e se postei é por interesse. Apenas o que vou me obrigar é fixar dias para postagens de texto e leituras na semana, o máximo que consigo, pois estou lendo e escrevendo e sendo assim não posso estar nas redes o tempo todo, mas é fácil falar comigo, me marca, envia mensagem e respondo.
E que legal, nunca fui ensinada a ver a tela como uma musa, meu cérebro e a experiência de tentativa e erro precisam de tempo para fazer as novas conexões, não íamos pro computador direto, fazíamos rascunhos, tabelas e hoje também faço isso, anoto o processo na agenda, falo sozinha, pesquiso, imprimo algumas coisas. Eu preciso dessa liberdade de rabiscar, anotar, fazer setas tortas dando a volta na página. Assim eu começo o meu livro. Definitivamente teclado e mouse ficam fora deste primeiro momento.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu leio muito pensadores negros de várias frentes, meu Afrofuturismo dialoga com Milton Santos, Cheik Anta Diop e Lélia Gonzalez. Eu preciso dos meus para ter inspiração e escrever, quero que tenham mais que um livro para ler, tenham noção dos que vieram antes de nós e começaram a nossa escrita literária, fruto de um pensamento crítico negro, senão estaremos sempre começando de novo e não temos tempo para isso. Eu pessoalmente tenho um viés pesquisador que quer ver além, critica a sua própria produção para testar seu método, sua ideia, seu propósito.
Eu não quero que a base literária dos meus livros tenha racistas e nem limpo o passado e prática como fazem com Lobato e outros na ficção científica também. É afrontoso. Então se eu liberto uma pessoa negra de John Campbell e seus caminhos de heróis brancos, os que ele considerava os únicos humanos e renegava escritos negros por não ser possível considerá-los mentalmente capazes de protagonismo e coloco no lugar Clyde Ford, a filosofia do herói negro e outras referências estou mudando o centro da escrita e dando liberdade aos futuros escritores negr@s para não ter medo de escrever sob outros parâmetros. A próxima geração será mais livre.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que não voltaria no tempo para me corrigir. É um pensamento engraçado, apenas o que queria é ter mais dinheiro para poder mais, acesso para mim é poder comprar livros e não ter que parcelar, fazer um curso de línguas, queria ler em francês para ter e dar acesso ao Diop, um inglês legal, quero ter ferramentas para trabalhar melhor, fazer pesquisas. Esse é um problema real, então se voltasse no tempo seria para me dar um resultado de loteria, 🙂 de preferência mega da virada.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu já comecei, quero saber mais sobre a literatura especulativa/fantástica afrolatina, nossas identidades e ter mais interação. Já comecei a escrever, mas tenho o hábito de não falar antes de estar me sentindo disposta, estou em construção de pensamentos e a escrita segue no reboque.
A experiência gráfica de Sankofia me animou e quero continuar a desenvolvê-la em 2019.
E no meio dela, durante a escrita do Sankofia, no conto Admissão achei uma meta diferente para 2019, experimentar a culinária de vários países africanos, já fiz a minha primeira tentativa: fufu de mandioca com sopa de amendoim e peixe. Adorei e percebi também o quanto somos deslocados a ver a culinária africana como algo exótico e não tão respeitada quando a italiana, a francesa. É incrível o que fazem conosco, o nome é racismo, colonialismo, epistemicídio, a necessidade de matar o conhecimento, a prática, chamá-la de menor, menos evoluída e isso está errado. Só a luta antirracista em todas as suas frentes pode mudar isso. Até na culinária acho um viés político, mas é a verdade dos fatos.