Lourenço Francisco Dutra Junior é escritor, autor de O olhar dos outros.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha rotina pela manhã é a de acordar, tomar café e ir para o trabalho. Trabalhei como bibliotecário por alguns anos. Tal ofício, confesso, era bem prazeroso já que me permitia ler bons livros e esboçar algumas ideias em relação à escrita.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo melhor depois de uma boa noite de sono, mas com uma filha pequena e o horário de trabalho, o que me sobra são as noites. Geralmente, escrevo depois que a minha filha se deita apesar do fato que ela acorda várias vezes à noite. E quanto ao ritual, confesso, não tenho nenhum. Tomo um banho, coloco uma roupa limpa ou até mesmo o pijama e vou para o computador.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Passo meses sem escrever nada. Leio, vou ao cinema, cuido da minha filha, escuto as demandas da esposa e eis que um belo ou tenebroso dia, as ideias começam a brotar ou melhor: a me incomodar. Alguma notícia no telejornal, algo que preciso expelir, um ponto de vista que veladamente necessito externar.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não sofro para escrever. Nunca sofri. E confesso, gosto de escrever dentro da minha zona de conforto, com os conhecimentos que possuo, com as leituras que fiz, com a minha percepção de mundo sobre as relações humanas que presenciei e vivenciei. Se escrevo algo mais extenso, pesquiso, é claro. A internet está aí para isso também, não é mesmo? E volta e meia saco algo na estante da minha pequena biblioteca e procuro confirmar a informação da qual necessito.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Como já escrevi, não tenho travas. Quando começo a escrever, posso em um ou dois meses escrever material para dois ou três livros. Claro, leio e releio e procuro adequar os textos ao formato de um livro. Temas, ideias, fluxo narrativo, personagens. E quanto às expectativas, na verdade, gosto de suprir primeiro as minhas. De colocar para fora a minha necessidade de escrever. Penso no leitor, claro, mas não muito na crítica. Como sou relativamente desconhecido, isso é ótimo. Estar fora de confrarias, de patotas de queridinhos dos cadernos de cultura e do radar da maioria dos acadêmicos, faz com que eu seja mais livre. Livre para abordar os temas que abordo e usar a linguagem que uso. Ninguém me cobra a não ser a minha consciência que me cutuca. Já em relação a um projeto “longo” desses que exigem mais fôlego, domínio do enredo e das características dos personagens, tenho tranquilidade, porque sei que um dia ele será iniciado, levado à frente e concluído. Foi assim com os meus livros “Berlin Discos” (Com “m” no final em homenagem à Lou Reed), “Diário de um limpador de janelas” e “Os aliciadores”. O Diário foi inicialmente escrito em uma maquininha de datilografia Olivetti no início dos anos 1990. Depois paguei os serviços de uma digitadora no início dos anos 2000. Ela digitou tudo, salvou num disquete, cobrou os seus honorários, então paguei, levei para casa, salvei no meu computador e comecei a trabalhar. Demorou, mas o livro saiu. Quanto ao “Berlin Discos” e “Os aliciadores”, escrevi em pouco mais de um mês cada um deles. Lógico, em anos distintos. Usei o recesso escolar de julho e mandei brasa. Sou professor e nos recessos, nos feriados e nas férias costumo escrever bem mais. É o tal do ócio providencial e produtivo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Escrevo, leio e vou cortando e modificando. Concluí duas graduações, tenho uma formação razoável, mas não sou gramático. Preciso se alguém que me ajude na pincelada final. Então, envio para uma única pessoa. Uma amiga que revisa e me aponta uma ou outra incongruência. Ela envia de volta para mim, leio mais algumas vezes. Se não concordo, discutimos. Se nas minhas leituras percebo que não consigo ir além, claro, pois tenho os meus limites, dou o texto por finalizado.
Como é a sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo à mão, mas principalmente no computador. Muitas vezes na escola, corro e pego um papel e digamos: “psicografo algo”. Uma ideia, uma impressão, um absurdo que presenciei, uma cena que não consegui evitar assistir. Agora, o computador é tudo. Corto, colo, apago, reescrevo e tudo isso numa paginazinha de Word. Acho isso fantástico. Gosto do computador, mas confesso, minha relação com a tecnologia é a pior possível. Pago minhas contas no banco, ainda escuto CDs. Até hoje nunca fiz uma playlist de músicas favoritas e nunca li nada em E-book. Sou aquele cara saudoso do vinil. Daquelas capas gigantes e coloridas, daqueles encartes maravilhosos com as letras legíveis dos discos do Led Zeppelin, do Yes, do Pink Floyd e do Emerson Lake and Palmer.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Meus hábitos são aqueles de um sujeito que precisa pagar as contas. Trabalho, casa, supermercado, vez ou outra uma viagenzinha com a família. Procuro me reabastecer com a leitura e com filmes. Já fui um leitor mais voraz e com muito mais tempo. Também me recordo dos tempos em que me tornei um cinéfilo que frequentava a Cultura Inglesa e o Cine Brasília; cinemas maravilhosos daqui de Brasília que exibiam clássicos americanos, espanhóis, chineses, brasileiros, franceses. Quase tudo. Fui abastecido há anos. Mas não paro. Estou sempre à procura de livros, filmes, conversas, matérias jornalísticas, livros de História e ghaphic novels que possam me abastecer.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar a escrita de seus primeiros textos?
No início a minha escrita era, digamos, um tanto psicografada. Eu escrevia, dificilmente relia e achava que estava bom. Eu amontoava escritos à caneta em pastas de papelão que eram fechadas por elásticos. Hoje não. Só a preguiça, o relaxamento e a displicência não leva alguém que escreva a reler e a melhorar um texto. O computador mudou tudo. No processo de escrita e no processo de publicação. Hoje, pode-se muito bem publicar um livro no site da Amazon se o interessado concordar com o contrato proposto. É uma nova era, verdadeiramente. Imagina uma Clarice Lispector, um Guimarães Rosa, um Machado de Assis com um computador na mão? Lima Barreto não seria acusado de ser um escritor de rascunhos e seria muito maior do que é e foi. Nada de milhares de anotações, de cortes à caneta, de datilografar e datilografar e (re)datilografar. Seria muito mais tranquilo. Penso que escrever e publicar ficou bem mais fácil, inclusive, publicar muita porcaria. O filtro também precisa ser imenso. Em meio a muita picaretagem, editoras pequenas como a Nós, A Patuá e a Penalux vem fazendo isso. Filtrando, garimpando novos talentos e proporcionando o surgimento de uma literatura contemporânea brasileira de qualidade. E quanto à outra pergunta: bem, o que eu diria a mim mesmo se pudesse voltar aos meus primeiros textos publicados? Eu não diria. Eu reescreveria, modificaria e cortaria muita coisa. Penso que em “Os aliciadores”, por exemplo, consegui ser um ficcionista bem melhor que em “Berlin Discos”. Berlin foi publicado em 2011 e “Os aliciadores” em 2016.
Existe um abismo entre o meu primeiro livro de contos, “O olhar dos outros” que data de 2007 e o último publicado, “Diálogos em estado puro”, de 2018. Claro, existem bons contos dos quais eu gosto muito em “O olhar dos outros”. Alguns até foram publicados na íntegra em alguns cadernos de cultura, mas “Diálogos em estado puro” se assemelha a um livro. Não oscila, não tem pontos altos e baixos. É um livro homogêneo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho um projeto de escrever um livro sobre a minha infância na SQN 312. Aqui em Brasília, não temos esquinas, nomes de rua, de avenidas etc. SQN significa Super Quadra Norte. É um conjunto residencial de blocos, de prédios horizontais. Passei minha infância, minha adolescência e começo da minha vida adulta por lá. Em 1966, quando a minha família se mudou para a 312, era cercada por mato naquela época. Era normal os adultos e os porteiros dos prédios matarem corais, cobras verde e jararacas. No começo dos anos 1970, brincávamos de pipa, guerras de mamona, carrinhos de rolimã. Nos feriados e nas férias, ficávamos debaixo dos prédios até às dez da noite. A cidade era pequena, provinciana. Não existia violência. Gostaria de escrever e ler sobre isso. Brasília, a cidade projetada às voltas com sonhos, expectativas, desenvolvimentismo. Símbolo da modernidade arquitetônica. A utopia que virou uma quase distopia. A minha cidade que não existe mais. Existe apenas na minha memória.